Já ouvi dizer que os humanos têm alma e que ela trabalha no interior dos corpos do pai e da mãe para formatar o corpo físico a ser ocupado. Ouvi ainda que depois de haver influenciado os genitores para que o feto se formasse perfeito, a alma o ocupa para mais uma de suas vidas terrenas. Nunca consegui entender essa loucura, principalmente quando vi aqui dentro de mim uma criancinha que nasceu com os dois braços curtinhos e tortos, tadinha. E aí? E aí que não estou nem aí para essas fabulações humanas. O que me preocupa é esse prédio aí em construção e outros ao meu entorno; o que me preocupa é que muitas de nós estão sendo demolidas. Mas também não é uma preocupação de arrancar as telhas, de bater portas e janelas. Nós imóveis não temos alma, temos apenas a aura daqueles que nos habitam. E essa aura é que determina o que nós sentimos. Com auras alegres somos alegres, e com auras tristes somos tristes, é assim que a banda toca, tão simplesmente assim. Quanto ao fim, quando as auras nos abandonam, aí sim há variações nos sentimentos de cada uma de nós. Umas se exasperam por se sentirem rejeitadas até o momento de se transformarem num monte de entulhos. Outras nem tanto, quem sabe por confundirem aura com alma acabam por acreditar que vão renascer noutro lugar.
Quando surgi no mundo, essa região aqui era povoada por gente simples¹. Falavam que em algumas casas a prostituição era intensa e que certa vez um capuchinho fez uma passeata contra². No meio desse falatório, vi-me aconchegando criaturas que tiveram bom gosto com a minha estrutura. Sim, já fui considerada um dos mais interessantes imóveis das redondezas com esse alpendre chique. O tempo passou célere, acompanhei com atenção as mudanças progressistas ao meu redor, o vai e vem das pessoas, os comércios surgindo e sumindo, os automóveis se modernizando e até a gritaria da torcida da URT quando o time jogava contra o Mamoré naqueles áureos tempos. O bicho pegava! O tempo fluiu nas asas do progresso, que jamais chega sem mudanças, sem utopias e com suas engrenagens econômicas esmagando os menos preparados ou aqueles que se locupletam com ele. Hoje me sinto como um feto sendo arquitetado para que uma nova estrutura se forme e assim se vislumbre no solo patense um novo prédio. Convicta de que desde o primeiro tijolo assentado passei a pertencer à História de Patos de Minas, partirei em paz. E deixarei saudade!
* 1: O imóvel situa-se à Rua Barão do Rio Branco, entre Rua Uberlândia e Avenida Paranaíba, no Centro.
* 2: Leia “Frei Antônio de Gangi e Sua Investida Contra as Prostitutas” e “Capa Sensacionalista do Jornal Última Hora Sobre a Luta de Frei Antônio de Gangi Contra a Prostituição em 1962”.
* Texto e foto (20/07/2018): Eitel Teixeira Dannemann.