Guiga, como começou seu trabalho na arte?
Tem um tempão. Eu tenho impressão que foi quando eu tinha uns 8 anos e depois disto eu não mexi com outra coisa. Acho que foi nessa época. Enquanto minha mãe contava estórias pra gente, eu viajava… e criava personagens, me identificava com alguns, fazia a minha história. Naqueles momentos, os sonhos, a fantasia, o colorido, talvez a felicidade se misturavam e eu conseguia transportar a minha infância para o papel. É, eu comecei a criar com esta idade.
Você começou a criar em escola de pintura ou com desenhos livres?
Livres. Sabe, no início era coisa de criança mesmo, espontânea. Depois eu tive com D. Terezinha um tempo, acho que uns dois anos. Foi muito bom e produtivo, apesar de nesta época estar aprendendo com cópias, eu continuei desenhando, sozinha, criando.
Qual o seu estilo?
Nossa, sério mesmo: eu até estudei para saber. É muito difícil a gente encaixar um trabalho com um estilo. O “surrealismo” é uma espécie de tentativa de exploração do inconsciente; é a “explosão do desespero”, assim, de acordo com a minha posição hoje, essa dura realidade, a minha busca de soluções e a angústia se confundem e dessa mistura de confusões e sentimentos, realidade e fantasia, “explodem” em formas, cores e ambientes irreais. Existe um contraste entre o meu mundo e o que tento transmitir. E esta forma de transmitir uma idéia, uma emoção, de sentir e criar, de ver e transpor, se você for levar a uma definição ou comparar: é surrealismo. Mas eu não posso dizer isto com certeza, não.
Como se chamam aquelas figuras que parecem “duendes”?
Eles representam o meu mundo, minha dor, minhas alegrias, sabe, é uma emoção. “Duendes” – eu os chamo assim, porque segundo a superstição, são seres fantásticos que fazem travessuras, e consegui assim representar as minhas “travessuras” dentro do mundo fantástico e irreal que criei. São os meus momentos de criação, minhas fantasias, o que penso das coisas, o que às vezes não consigo ver, tocar, então estas figuras deformadas que lembram seres de outros planetas, são daqui mesmo, saem de mim, são alimentados pela realidade. São habitantes do mundo que eu criei, pra mim, sabe, do meu mundo.
O campo de trabalho para a arte em Minas Gerais é bom? Ele dá margem de evoluir ou você tem que ir contra tudo?
Por exemplo, BH é a maior barra, não existe, não. Agora a gente tem condições de entrar em festivais, quando eles pintam pra você entrar numa exposição (ser convidado) realmente é muito difícil. Nós dependemos de críticos, e muitas vezes eles não aprovam o trabalho, mas não falam o porque. É bom, ou não é. Se dependesse do trabalho em si, seria mais fácil. Isso acontece sempre, em todo lugar a gente tem sempre que esperar por um crítico, para mostrar um trabalho.
Você já foi convidada para participar de festival com apoio de críticos?
De festival eu participei uma vez só, ano passado, através de uma seleção que eles fizeram antes, mas assim este ano eu iria como convidada do festival, depois de um mês que eu fiquei lá. Aí sim dependeu do meu trabalho, mas os críticos estavam lá no festival, sabe eu fui feliz no festival, eu consegui, mas é muito difícil o pessoal ver o trabalho seu e principalmente se você fala que é estudante de arte ainda. Aí o pessoal bota mil defeitos, não te dá uma força não. Todos os artistas estão no mesmo barco, e a gente tem que “remar” com muita força e garra, porque se cair, ninguém tá nem aí, cai sozinho mesmo. É difícil, é pesado.
Hoje como você desenvolve seu trabalho?
Sabe, é uma vontade assim, tipo fome. É quase que respirar. Eu não fico nem um dia sem criar alguma coisa. Estou sempre desenhando, assim, sem pensar se vai para uma exposição. Não é que eu desenhe só para mim, é quase que uma necessidade mesmo. Tenho impressão que se ficar um dia sem desenhar, sem criar, sem botar para fora o que sinto… Eu nem sei! Depois, se pintar oportunidades, é lógico, deixo o pessoal olhar e apresento quando possível. Todo final de ano a gente expõe no Palácio das Artes (minha turma) e a gente mostra tudo de uma vez. Existe seleção de trabalhos e dá pra entrar, sabe, é uma boa.
Como o é o mercado de trabalho?
Pra mim fechadíssimo. Só encomendas, mas também não é grande coisa.
Guiga, você acha que a “abertura” trouxe melhoria para o desenvolvimento da arte ou continua na mesma estaca?
Sempre foi difícil para o artista, por exemplo em termos de abertura eu acho que o artista sempre tentou, e continuou, apesar da censura. Ele mesmo é que conseguiu isto. Ele mesmo é que superou. Depender da abertura, acho, se ele não tivesse batalhado o tanto que batalhou, estaria na mesma. Mas acho que o artista está conseguindo sair, ele mesmo é que abriu o campo para ele. O próprio valor da pintura, a mensagem de toda obra por exemplo, porque é uma linguagem diferente, a gente fala, canta, sofre, se transporta, se embriaga, a gente faz o “tudo” num quadro. O artista está conseguindo tudo isto, é muito pessoal, sabe?
Quais suas metas de trabalho? O que você pensa em fazer?
Bom, o meu sonho (sonho muito!), é ter um atelier. E se eu conseguir isto, vou continuar trabalhando neste atelier. Tenho pensado num tantão de coisas, mas não tem nada certo. Por enquanto continuarei fazendo minhas litografias, desenhos e pinturas. Pretendo fazer uma porção de cursos, me preparar bastante e depois trabalhar um lugarzinho pra mim.
E o curso de publicidade, você ainda pensa nele?
Não. Porque é um outro tipo de desenho – técnico. E é um negócio que sai totalmente fora com o que eu gosto de fazer. Para trabalhar com publicidade eu teria que deixar muita coisa minha, meus princípios artísticos, por exemplo. Eu ia criar, lógico, mas eu ia criar dependendo da cabeça do pessoal. E para mim não é importante e ia acabar me bitolando, porque criar, é não ter uma pessoa, uma hora, um compromisso com alguém. Em publicidade eu teria que fazer isto. Comunicação e arte andam lado a lado, lógico, mas com objetivos diferentes, entende?
Existe algum pintor que influenciou no seu trabalho?
Existe um bem antigo que até hoje tem muita coisa comigo, que é o Renoir, impressionista, pelo estilo, pela ligeireza de traços, pelas cores, pela luminosidade e desenhos sem contorno; pelas paisagens, pelo romantismo. Ele sempre me fascinou pela sua maneira de pintar, pela figura e por sua vida. E o outro é o Salvador Dali. Surrealista assim, que eu acho que nem tem como falar. Agora o Salvador Dali porque eu me identifico muito com o trabalho, às vezes agressivo, às vezes suave, esta mistura de real e irreal, uma loucura gostosa, fascinante, misteriosa, aberta, completa em todas as suas fases. Apesar de minhas figuras representarem os meus “grilos”, uma figura que foi assim, uma espécie de “inspiração”, foi um colega de cursinho, que no início me perturbava muito por ser totalmente diferente das outras pessoas. A sua beleza estranha e diferente me levou a fazer o seu retrato. E a partir daí surgiu uma série de trabalhos meus inspirados nesta figura. Agora, quando eu deformo a figura, é um negócio que eu sinto, tipo dor, alegria, é a mesma coisa que materializar isto. É mais ou menos isto, você não pode ver nem tocar, mas sente. E quando quero falar: falo nos desenhos. Se estou muito triste, desenho a tristeza. Uma coisa que gosto muito é quando está amanhecendo, esse quadro aí, eu imaginei que o dia seria isto. Miguel Ângelo, representou o dia com uma estátua de um homem acordando e a noite, uma mulher dormindo… Eu tenho muito a ver com estes “duendes”, quando quero transmitir alguma coisa. Faço uma mistura: homem/terra/planta e animais. Eu acho fascinante o mistério que envolve a origem de todas as coisas, tudo que vem, nasce, vive e morre… este ciclo… então misturo tudo, numa harmonia mesmo, que não existe mais, mas que deveria existir. Cada desenho tem uma história. Este de Ouro Preto o “duende” aparece grávido da cidade. Foi no final do Festival de Inverno, eu fiquei apaixonada por tudo e coloquei a minha impressão da cidade, o que eu estava sentindo ali.
E Patos, nunca te inspirou nada?
Eu tenho este trabalho. Patos e seus “duendes”. É uma janela, é a Rua Major Gote, é uma espécie de janela-universo paralelo. Tem um “duende” guardando e protegendo Patos e o outro é a distância que às vezes me encontro daqui. Mas, Patos está nestes traços todos, em todos os trabalhos. Mesmo o jeito de desenhar, a gente não esquece, leva mesmo.
Você já teve algum apoio aqui em Patos para expor o seu trabalho?
Não.
Assim… oportunidade de mostrar o seu trabalho?
Foram poucas, mas pintaram sim. Eu acho que tenho muito ainda que aprender, mas já tenho alguma coisa pra mostrar. Mas eu gostaria de aproveitar estas raras oportunidades, mas junto com o pessoal daqui que tem trabalhos bons e nunca apareceram. Gostaria sinceramente que este pessoal aparecesse para que a gente mesmo batalhasse, porque acho que em termos de arte aqui o pessoal está totalmente desamparado. Temos que fazer “nossas oportunidades”, porque se ficarmos nesta de esperar… acredito que nosso trabalho jamais será visto.
E o pessoal que conhece seu trabalho, qual o tipo de aceitação?
Eles curtem demais o meu trabalho, já senti isso… e posso dizer que é a maior força para que eu continue…
NOTA: Valéria Resende Silva, a Guiga, faleceu em 17 de setembro de 1998.
* Fonte: Entrevista de Inez Marina, Marco Antônio e Vicente de Paulo publicada na edição n.º 7 da revista A Debulha de 15 de agosto de 1980, do arquivo de Dácio Pereira da Fonseca.
* Fotos: Arquivo de Rômulo Resende Silva (Loba), irmão da Guiga.