PAZOLIANA − CAPÍTULO 15: O POVO DA VILA SE TRANSFORMA

Postado por e arquivado em CANTINHO LITERÁRIO DO EITEL.

“O verdadeiro mistério do mundo é o visível, não o invisível”. (Oscar Wilde − 1854-1900)

Mabélia havia preparado uma carne de panela daquelas de tirar qualquer um, instantaneamente, de uma greve de fome. Januário e as irmãs se continham na vontade extrema de saboreá-la ao sentir o aroma vindo do fogão. Era preciso, entretanto, aguardar a chegada de Padre Alaor. Os acontecimentos da missa dominical foram considerados positivos. As moças brincavam com Asued, enquanto Januário resolveu fazer um reparo no curral. A mãe pôs-se aos fazeres dos últimos preparativos. Na igreja, Dona Filomena estava inquieta.

– Não foi tão grande assim.

– Puxa, Padre, eu vi com estes olhos que a terra há de comer. O corte na sua testa devia ter uns cinco centímetros, e era profundo.

– Talvez você tenha se enganado.

– De jeito nenhum, parece até que foi um milagre.

– E se foi realmente um milagre?

– Padre Alaor, estou assustada.

– Com o que, Dona Filomena?

– Aquela criança que a Dona Mabélia adotou não é normal. Onde já se viu uma criança de pouco mais de um ano de vida andar como adulto e ainda por cima falar?

– Quem sabe foi outro milagre.

– Não brinca comigo. Ainda por cima o senhor falou em uma tal de nova era e, cruzes, novo Cristo e novo Deus. Estou ficando lelé da cuca ou o senhor disse mesmo?

– Serão outros milagres, Dona Filomena.

– O senhor está zombando de mim, tenho certeza. Está tudo muito confuso e não estou entendendo nada.

– O que lhe atrapalha as ideias?

– Depois da missa fui comentar com várias pessoas sobre essas coisas e fiquei abismada. A maioria considerou aquilo muito estranho e ainda não está acreditando. Outros, porém, disseram que era para eu ir acostumando. Acostumando com o que?

– Novas verdades estão prestes a cair sobre aqueles ainda incrédulos. Quem sabe a senhora também as conheça.

– Padre, o senhor está me assustando.

– Dona Filomena, quem sou eu para ter a infeliz ideia de assustá-la. A senhora é uma fiel e piedosa alma, digna de todo o meu respeito. Tenho certeza de que Januário terá prazer em tê-la conosco.

– Oh, Padre, aceitar-me em que? Por favor, não confunda a minha mente.

– Aceitá-la à nova era que já se faz presente.

– Oh, meu Deus, o que está acontecendo?

– Minha prezada Dona Filomena, faço questão de enfatizar que a senhora é uma das pessoas mais dedicadas a esta igreja. E não só à igreja. Tem bom coração e só deseja o bem às pessoas. O finado Pedro foi muito feliz. E sei o quanto ele está lhe fazendo falta. Como não vi seus filhos hoje na missa, com certeza não vieram de Pico do Glória.

– Tiveram outros compromissos e… mas… mas… nova era… novo Deus…

– Acalme-se, mulher, acalme-se. A senhora vai almoçar em casa?

– A Griselda já deve está preparando o almoço.

– A Dona Mabélia mandou-lhe convidar para almoçar hoje em sua casa.

– Que bom. Mas por que ela não me falou quando estávamos na missa?

– A Aseud teve um pequeno mal estar na saída, teve que sair às pressas, mas me pediu para te convidar. Vamos?

– Vamos sim, Padre, vai ser muito bom. Tem muito tempo que não bato um bom papo com ela. Ela ficou um pouco amuada depois da morte do Arnaldo.

– Então vamos. Pode ter certeza que Dona Mabélia, tanto quanto Januário e as irmãs, ficarão muito contentes com a sua presença.

– Oh, com certeza eu já estou contente pelo convite.

– Então vamos!

– Tá bem, então vamos. No caminho temos que passar em casa para avisar a Griselda.

Após o apetitoso almoço, Mabélia, as filhas e Dona Filomena ficaram na sala botando os assuntos em dia. A beata estava curiosíssima para descobrir mais alguma estripulia da criança. Infelizmente, ela se comportava como qualquer criança de sua aparente idade. Mas a curiosidade era enorme. Estava fazendo uma força tremenda para não entrar no assunto, pois não queria se passar por enxerida. Enquanto isso, Januário e Padre Alaor estavam conversando no curral.

– Concordo, Padre, sempre considerei a Dona Filomena como uma boa aquisição. É muito respeitada na cidade e não conheço um que desgoste dela. E quanto ao Bispo Ednando?

– Este me preocupa, e muito. Acredito piamente que ele sabe quem foi o responsável pela morte de seu pai. O Vaticano tem muito poder e tem agentes infiltrados nos órgãos de inteligência, principalmente americanos e russos. Quando os novos fenômenos da Vila do Córrego Dobrado chegarem à imprensa, com certeza vou ser convocado. Aí vai ser barra pesada. Como vai ser barra pesada para todos nós. Raciocine sobre Asued. Só tem três meses, já está apresentando uma constituição física e psicológica que não coadunam com a idade e que vai se intensificar. A caminhada dela na igreja já foi um assombro. E quando eles descobrirem que você está novamente com o colar? Sem falar do Osorgalim. Bem, pelo menos suas radiações não podem mais ser captadas. E quando a Sofia gerar o segundo pazoliano? Parece que vai ser breve, não é?

– Com certeza os Deuses nos direcionarão as coordenadas adequadas. Sued me garantiu que estamos sendo monitorados segundo a segundo. Não precisamos nos preocupar com os riscos. Mesmo assim, o Bispo poderá nos trazer transtornos. É certo que brevemente ele te convocará para uma reunião. Quando isso acontecer, nos reuniremos para deliberações a respeito.

– Há alguma ação programada?

– Por enquanto, não fui informado. Sued está de olhos nos satélites.

– O que lhe preocupa?

– Essa turma acredita se tratar de extraterrestres. Eles são experientes nisso, Sued me explicou detalhadamente. Por isso os Deuses se afastaram por cinco anos, justamente para não serem confundidos com alienígenas. Enquanto isso, os cientistas, com os dados adquiridos, estão de prontidão para descobrirem novas pistas. Quando os fatos da Vila chegarem à imprensa, com certeza aquela turma vai imediatamente associá-los aos ETs. Aí, então, virão sobre nós. Mas, não se preocupe Padre, Sued é um Deus tão poderoso como foi o pai de Jesus Cristo. Assim como Ele protegeu os profetas, vai nos proteger igualmente. Isso te preocupa?

– Não quero dar uma de Tomé, naquela de só vendo para acreditar, nem uma de Pedro, naquela de não confiar nos poderes de Sued e seus semelhantes. Que me preocupa, não nego, mas não tenho medo e estou mais que nunca pronto para seguir em frente.

– Ótimo. Dos presentes hoje na missa, quem recomenda para o projeto?

– O povo da Vila na quase totalidade é simplório e pacífico, você os conhece muito bem. Se dependesse de mim eu já converteria todos, mas tenho este dez nomes aqui.

– Muito bom, concordo com todos.

– Quando os converteremos?

– Amanhã à noite será ideal.

– Aqui mesmo?

– Sim. Como sempre, através de seus ajudantes, você enviará um convite a cada um para uma reunião aqui em casa às oito da noite. Enfatize que é uma reunião secreta e que não devem comentar com ninguém, nem amigos e, principalmente, com familiares.

– Entendido. E quanto à Dona Filomena?

– Vamos incluí-la no grupo de amanhã.

– Você me disse que numa ocasião Sued atuou sobre a mente da população da Vila no intuito de esquecer os fenômenos do clarão. De pensar que eu fiquei quase louco com aquele esquecimento súbito do povo. Agora estamos atuando individualmente ou sobre pequenos grupos para convertê-los. Posso dar uma sugestão?

– Diga, padre.

– Sued ficou afastado cinco anos pelos motivos já conhecidos. Agora não há mais necessidade de acobertamento de nada. Por que não pedirmos a Sued para atuar sobre toda a Vila e convertê-los logo, para amainar o nosso serviço?

– Está aí, padre, uma ótima ideia… mas, será que todos terão perfil, sem exceção?

– Faremos a experiência. Se dentre eles detectarmos qualquer um fora do perfil, é só reverter o processo e deixá-lo de fora. O que acha?

– Concordo. Vou comunicar-Lhe ainda hoje. Acredito que Sued vai acatá-la. Nesse caso, dispensemos então o encontro de conversão de amanhã à noite aqui em casa.

– Então está tudo resolvido. Enquanto isso, ponha a cabeça para funcionar a respeito do Bispo.

– Ah, já ia me esquecendo. Viu o noticiário de ontem à noite sobre a vinda do Papa? É uma programação normal ou será que tem alguma coisa a ver conosco?

– Na última vez que conversei com o Bispo Ednando ele procurou não se ater muito neste propósito. Mas é muito certo que o Papa estará com o Presidente Figueiredo para coletar dados. Isto te preocupa?

– De maneira nenhuma, deixa estar, sigamos em frente.

– Ok! Então, até breve.

Naquele mesmo domingo, o relógio marcava onze e meia da noite. Praticamente toda a pequena população da Vila já havia se recolhido em preparação para outro dia de labuta. Obviamente, Zé Limão e mais alguns amigos ainda deveriam estar agarrados a algum produto etílico. Na residência de Januário, a luz azul do colar se fez presente, avisando-lhe que os poderes de Sued estavam prestes a descer sobre a Vila. Poucos minutos depois, uma tênue luz azul dominou toda a Vila de Córrego Dobrado. Zé Limão e quatro amigos se encontravam bebendo num boteco e sem perceberam, de tão bêbados que estavam. Mas o proprietário, sóbrio, percebeu, e reação dele foi instantânea. Num gesto brusco, botou os gambás fedorentos para fora e baixou as portas. Os cinco etílicos saíram cantando cidade afora sem ter a mínima noção do que havia acontecido.

Como já dito, Vila do Córrego Dobrado é um distrito do município de Pico da Glória. É um lugarejo em franco desenvolvimento com pouco mais de 2000 habitantes, que surgiu às custas dos aventureiros que se embrenharam nas matas em busca de pedras preciosas. O ciclo das pedras já se havia desaparecido há tempos. A economia atual se dividia entre criadores de gado, produtores de milho e pequenas lavouras de subsistência. Os produtos serviam à localidade e o excesso era exportado para Pico da Glória. O comércio até bem desenvolvido para o lugar fazia da Vila um lugarejo aconchegante, com uma população ordeira e tremendamente religiosa, adepta dos preceitos cristãos. Como fica a pouco mais de 20 km da sede, era comum os representantes comerciais trabalharem na Vila e dormirem na sede, justamente pela falta de opções para hospedagem na localidade. Dois deles, companheiros de labuta de firmas diferentes, haviam terminado o almoço na pensão de Dona Esthéfen e estavam batendo papo. Era 1º de abril de 1980, uma terça-feira.

– Você já tinha ouvido falar de Jesse Owens?

– Se não me engano foi um atleta negro que ganhou um monte de medalhas nas olimpíadas de Berlim e deixou Hitler desesperado de ódio. Acertei?

_ Ele mesmo. Ouvi no rádio que ele morreu ontem. É, foi um grande ser humano. Pena que se vão os bons e ficam os ruins. É muito esquisito. Por falar em esquisitice, há quanto tempo você trabalha este distrito?

– Coisa de três anos. E você?

– Mais um pouco, cinco anos. Não reparou nada diferente?

– Diferente? Deixa eu pensar. Ah, tem uma coisa esquisita acontecendo por aqui.

– Diga!

– Sei não, esse pessoal daqui não era assim tão sorridente e solícito.

– Na bucha, pois foi exatamente o que percebi. O pessoal daqui é típico de interior, um pouco retraído e, principalmente, desconfiado. Custei a adquirir a confiança dos meus clientes. E mesmo assim, continuaram sem dar muito brecha para aproximação. Não é que agora ficam sorridentes, com uma atenção tremenda. Esquisito, né? E te conto algo sinistro. Hoje de manhã, eu estava naquela loja de produtos veterinários quando chegou um rapaz de mãos dadas com uma criança que devia ter, no máximo, um ano e meio. Cara, uma criança de ano e meio de mãos dadas com um adulto, sacou? Andava como se fosse também adulta, com pose e tudo. O rapaz pediu um vermífugo, pagou e quando estava de saída, a criança parou na minha frente e deu um sorriso. Eu correspondi e sabe o que ela fez? Simplesmente me disse que meu carro estava com um vazamento no tanque de gasolina! Os dois se foram e eu fiquei de boca aberta.

– Ora, que é isso, você está me gozando. Quer dizer então que uma criança de ano e meio estava andando como adulto e ainda por cima te disse que o tanque de gasolina de seu carro estava vazando? Pare de me zoar, cara.

– Por uns instantes, fiquei paralisado. Ai o dono da loja me perguntou se eu não ia verificar o vazamento. Saí correndo até o carro e lá estava uma poça de gasolina debaixo do tanque. Que loucura.

– E o que você fez?

– O proprietário da loja na maior boa vontade trouxe um mecânico. Ele vedou provisoriamente o local para que fosse solucionado o problema em Pico da Glória. Perguntei sobre a menininha e ele me respondeu que era especial, só isso. Quando olhei o relógio, já eram onze e meia da manhã. Por isso resolvi logo almoçar para providenciar o conserto definitivo.

– Rapaz, que coisa estranha.

– Repare nesta Dona Stéphen, só fica rindo. Você já tinha almoçado antes aqui?

– Não, é a primeira vez.

– Por isso você não está estranhando nada. Essa mulher era uma tremenda duma mal educada. Ái daquele que fizesse algum comentário ruim sobre a comida. Agora, quer ver só uma coisa?

O representante comercial solicitou a presença de Dona Stéphen para simular uma reclamação. Disse que o feijão não estava bem cozido. Ela imediatamente decidiu que não deveriam pagar nenhum centavo, pediu um milhão de desculpas e decidiu ela mesma ir preparar outro feijão, que seria igualmente de graça. Foi um custo convencê-la a não trazer outra refeição.

– Rapaz, eu nunca tinha visto uma coisa assim. No mais, concordo contigo quanto à população que está muito diferente. É mesmo esquisito. Ou será que não é implicância nossa?

– Quer dizer que presenciar uma criança como aquela andar como adulto e ainda por cima falar como adulto é implicância? E ainda por cima dizerem somente que é uma criança especial. Ora, tem caroço neste angu.

– Beleza, e aí? O que podemos fazer?

– Com o pessoal daqui, absolutamente nada. Vamos comentar por aí para ver se algum colega teve a mesma impressão.

– É o melhor a fazer. O tempo urge e precisamos faturar. Até a próxima, parceiro.

– Até mais.

O tempo correu célere, não teve jeito. Os Deuses se preocupavam com a usina de combustível em Netuno. A população da Vila do Córrego Dobrado estava domada pelas benesses divinas, facilitando em demasia a continuidade dos trabalhos de Januário. A atuação dos Deuses nas mentes dos vilarinos poupou muita mão de obra. Uma das mais fervorosas ativistas era Dona Filomena, que solicitou que seus dois filhos e respectivas famílias que moravam em Pico da Glória também fossem convertidos. Ação prontamente aceita por Januário.

Foi chegado o momento da inseminação de Sofia, que, com seus quinze anos, geraria o primeiro macho da raça pazoliana. Asued, com cinco meses, parecia uma garotinha serelepe. Tudo isso acontecendo, os interessados estavam de antenas ligadas. As notícias se espalharam como fogo em capim seco. Da Vila para Pico do Glória. Desta para a capital. E da capital para o mundo. Não demorou muito, os tais interessados resolveram botar as mangas de fora novamente.

* Texto: Eitel Teixeira Dannemann.

* Foto: Desenho e montagem de Eitel Teixeira Dannemann.

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