PAZOLIANA − CAPÍTULO 6: OS ESCOLHIDOS

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“Se os bois e os cavalos tivessem mãos e pudessem pintar e produzir obras de arte similares às do homem, os cavalos pintariam os deuses sob forma de cavalos e os bois pintariam os deuses sob forma de bois”. (Xenófanes 570 a.C. – 460 a.C.)

A noite de quarta-feira, 13 de março de 1974, chegava ao final. Dois ou três botecos abertos na periferia também estavam próximos a baixar as portas. Janelas e portas da família Mantiqueira estavam todas cerradas. Ninguém presenciava a intensa luz azul que iluminava o seu interior. Nas proximidades da residência não trafegava ninguém. Arnaldo ajeitou a mulher e os três filhos em seu Maverick¹ e retirou o carro da garagem. Trancou tudo e saiu da cidade, silenciosamente. Estava passando pela ponte principal quando quase atropelou um bêbado. Com a freada brusca, ele caiu ao lado do veículo. Arnaldo saltou e examinou o etílico homem, muito conhecido na Vila que atendia pela alcunha de Zé Limão. Não descobriu nele nenhum arranhão, apenas palavras desconexas. Entrou e partiu, sem perceber os olhos que seguiam o carro sumir na escuridão.

Arnaldo percorreu os 20 quilômetros da estrada que ligava a Vila à sede do município. Em Pico da Glória rodou por toda a cidade, fazendo questão de que os que estavam nas ruas àquela hora da noite notassem a presença do veículo. Depois pegou a estrada retornando à Vila. Já próximo, entrou numa estrada de fazenda, percorreu muitos quilômetros por trechos que ele conhecia muito bem e estacionou o veículo no meio de um bambuzal, de modo que qualquer um que passasse por lá não perceberia a sua presença quando o dia amanhecesse. Cinco pessoas caminhavam por uma mata fechada. Arnaldo, à frente, segurava uma pequena lanterna que parcamente iluminava o caminho sinuoso, seguido de Mabélia, Sofia, Mara e Januário. O céu estava nublado, com poucas estrelas à vista, mas não chovia naquele momento. Mesmo com a temperatura amena, a ansiedade transformava aquela caminhada numa tremenda agonia. Estavam encharcados de suor. A filha mais nova reclamava a cada instante. Ora era a mãe que lhe acalmava, ora o pai. Até o rapaz lhe encorajava. A região montanhosa era de difícil acesso, pois se desviavam das estradas no intuito de não serem vistos. Mesmo de madrugada, poderia alguém estar vagando por uma estrada e estranhar a presença deles naquelas condições. A escuridão dificultava mais ainda o trajeto. Mesmo assim, o homem não precisava de nenhum recurso técnico para alcançar o seu objetivo, a não ser o pequeno feixe de luz para lhe apontar o caminho. A cada passo os músculos tremiam. Foi obrigado a estancar a marcha por pelo menos quinze minutos para que Sofia se restabelecesse. Sentados na relva acarpetada pelas folhagens úmidas não pronunciavam uma única palavra, apenas trocavam olhares em meio ao breu. Às vezes de dúvida, na maioria das vezes de certeza. Quando se preparavam para reiniciar a caminhada, a chuva deu sinal de vida. Serena, no início. O céu escureceu tomado por nuvens negras e já não se avistavam as estrelas. Relâmpagos passaram a iluminar o espaço. Os trovões rebimbavam fortes, cada vez mais fortes. A água aumentou em intensidade até que se transformou num verdadeiro dilúvio. O quinteto seguia moroso, a luz da lanterna mal iluminando um metro à frente, até que chegaram à beira de um grande precipício. Arnaldo olhou para Mabélia e esta deu um leve sorriso. Januário chegou mais perto do pai e apontou para baixo. De lá, despontava uma tênue luz azul, fosforescente. A luz se intensificou quando se deram as mãos. Postaram-se à beira do precipício e se deixaram levar ladeira abaixo engolidos por um intenso feixe de luz azul.

Era como se tivessem acendidos milhares e milhares de holofotes. O verde da mata, a escuridão do céu proporcionado pelas nuvens negras e a chuva intensa desapareceram. Tudo era claro, muito claro. Não havia sensação de umidade, de desconforto. Eles se sentiam planando no ar num espaço desconhecido. Para todos os lados havia luz, intensa luz. Num dado momento, a intensidade da luz foi diminuindo gradativamente. Despontou-lhes um imenso ovo, enorme, que ocupava todo o sentido da visão. Não era um ovo normal. Eles nunca haviam visto um ovo como aquele. Era de um azul claro, transparente. Perceberam que dentro do ovo havia uma substância parecida com gelatina. Esta se movimentava de um lado para outro, batendo contra a casca. A gelatina foi se moldando até se transformar em algo, à primeira vista, desconhecido. Não tinha mais a consistência de gelatina. Fixaram bem os olhares até notarem que aquele algo era simplesmente um óvulo fecundado. Logo em seguida perceberam que não era um só, eram dois óvulos. Por um longo tempo, imensurável, aqueles dois óvulos permaneceram imóveis. De repente eles começaram a se transformar. Aconteciam divisões ininterruptas e abruptas. Num piscar de olhos havia dois seres humanos dentro do ovo. Não dava para perceber se eram homens, mulheres ou então um casal. Via-se a impressão de dois corpos humanos. Estavam de pé. Estenderam-se as mãos até que, inesperadamente, começaram a lutar. Os movimentos eram brutais, agressivos. A luz azul se apagou e tudo ficou escuro no ovo. Ao ascender novamente, com uma intensidade muito fraca, os dois seres humanos continuavam se defrontando fisicamente. Surgiu uma tênue luz vermelha, que aos poucos foi se intensificando. Respingos de um vermelho intenso começaram a surgir na casca do ovo. Depois, grandes manchas vermelhas, como se alguém jogasse contra uma parede branca o conteúdo de uma lata de tinta. A luta estava frenética e quase já não se via os dois, sumidos no vermelho cor de sangue. Um grande estrondo se deu, e o ovo explodiu. O que se via eram pedaços de seres humanos misturados a sangue. O quinteto se assustou e entreolharam-se pasmados com a intensidade da cena. Mas continuaram serenos, planando num espaço desconhecido. Logo perceberam que os pedaços de seres humanos começaram a se ajuntar. Cada pedaço foi se ajuntando a outro até que dois novos seres humanos estavam formados. Não havia mais o vermelho cor de sangue. Voltara a luz azul. Os dois seres humanos estavam frente a frente. Não eram como os seres humanos do planeta Terra. Eles não sabiam explicar o porquê. Percebiam apenas que cada mão e cada pé tinham seis dedos. Os dois seres se olharam por uma eternidade, até que quatro braços se levantaram. Aproximaram-se e abraçaram-se fortemente. A luz azul ficou tão intensa que ofuscava os olhos, e por isso eles não enxergavam os dois seres. A intensidade da luz diminuiu abruptamente. Não havia mais nenhum resquício de ovo. Numa superfície limpa e brilhante estavam de frente a eles os dois seres humanos misteriosos. Eles estenderam as mãos, como que chamando-os. A família Mantiqueira nem percebeu que havia se deslocado do espaço para a mesma superfície plana onde estavam os seres. Eles se aproximaram e os abraçaram intensamente. Afastaram-se alguns metros e sentaram. Fizeram um gesto para a família se assentar em frente deles. Assim ficaram por muito tempo. Em volta deles reinava um silêncio sereno, que não era propriamente um silêncio. Havia alguns ruídos que eles não conseguiam identificar. Havia paz, uma paz que a família ainda não experimentara na vida. Por todos os lados movia-se uma névoa tênue e azulada. Num dado momento, quando pais e filhos estavam já sentindo a sensação da eternidade, um dos seres falou.

– Olá, terráqueos, sejam bem vindos.

– Etnaduja, estamos aqui como nos ordenou – respondeu Arnaldo. Quando esteve em nossa casa para curar Januário, teve a oportunidade de conhecer minha família. Portanto, já sabe quem é quem aqui presente.

– Sim, com certeza. Temos aqui Dona Mabélia, as irmãs Mara e Sofia e o nosso prezado Januário. Sejam bem vindos. Meu primeiro conselho é este: Possue um coração puro, bondoso e radiante, para que seja tua uma soberania antiga, imperecível e eterna. Ama-me, a fim de que Eu te possa amar. Se não Me amas, de modo algum pode o Meu amor te atingir. Sabe isto, ó servo²! Vocês estão numa nova dimensão, num novo mundo. A concepção sobre a Terra que vocês conhecem não existe mais. Como eu disse a você na noite de ontem, foram escolhidos para serem a pedra fundamental de uma nova era. Serão os precursores de uma nova humanidade. A humanidade está perdida, não só agora, mas desde a sua criação. Vamos reformular tudo, sistematicamente, paulatinamente. Aos poucos vamos substituir toda a humanidade de hoje por uma nova raça, que será ordenada por nós.

– Comentei com a família que faríamos parte desta nova era. Quiseram saber como seria, nada pude explicar, porque nada ainda sei. O Senhor agora está citando novo mundo, nova humanidade e nova raça. Disse ontem que o Juízo Final estava próximo, mas que não seria como o descrito no Apocalipse de nosso Livro Sagrado. O que significa tudo isso?

– Esqueça o que está escrito no que você denomina de livro do Apocalipse. A realidade será outra totalmente diferente. Com o tempo você compreenderá tudo. Para tanto, é necessária uma total interação entre nós. Se Me amas, não te prendas a ti mesmo; e se buscas Meu prazer, não consideres o teu próprio; para que tu morras em Mim e Eu possa viver eternamente em ti².

– Sim, Etnaduja, estamos aqui unicamente pelo amor que temos em Deus. Perdoa-me se me torno inconveniente. Toda a concepção que eu e a minha família temos sobre Deus, assim como todos os cristãos, está assentada nas palavras da Bíblia. Por favor, entenda-me e aceite minha ignorância. Se tudo o que cremos está nas palavras da Bíblia, como vou assimilar a ideia de que não haverá o Apocalipse como está descrito?

– Meu bom homem, todo o planeta está corrompido, herança genética dos primeiros seres criados pelo seu antigo Deus. Mesmo assim, em todos…

– Oh Etnaduja, perdoa-me a intromissão, minha mente voltou a fervilhar de ansiedade, assim como ferve meus neurônios desde aquele clarão. Eu disse que toda a concepção dos cristãos está assentada nas palavras da Bíblia, por isso não posso imaginar a não existência do Apocalipse. Para complicar mais ainda a minha cabeça, o Senhor me fala em antigo Deus. Antigo Deus… o que seria isso?

– Arnaldo e família, Meu amor é Minha fortaleza; quem nela entrar, estará salvo e seguro; e quem dela se afastar, por certo se desviará e haverá de perecer². Sinta-se seguro em minhas palavras e não se exaspere com algumas verdades que lhe serão reveladas. Sim, não haverá o Apocalipse como está descrito no livro sagrado de vocês, assim como há o antigo Deus. Como eu estava dizendo, o planeta Terra está corrompido. Mas, invariavelmente, há exceções. Em todos os lugares da Terra há seres humanos dignos de participar da nova era. Não são muitos, mas os detectamos. Poderíamos ter iniciado a nova era com representantes em cada um destes lugares. Preferimos optar pela prudência. Seria arriscado o nosso surgimento de forma agressiva. Europa e América do Norte vivem hoje um estado de instabilidade econômica, há convulsões sociais na Ásia e na África, detectamos futuros abalos sísmicos na região da Oceania. A crise do petróleo está afetando o planeta todo, como vem ocorrendo neste país. Há problemas em vários outros locais. Observamos há muito tempo o Brasil. A enorme extensão montanhosa onde se localiza a sua cidade é rica num material que nos é vital. Há muito tempo visitamos o local. Depois de muita observação, decidimos que era o momento para nossa interferência, no sentido único de transformá-lo num local de paz eterna. Observamos o seu distrito e a todos os habitantes e decidimos por vocês. Quando você estava voltando a cavalo daquela viagem resolvemos que seria o momento ideal para mantermos um primeiro contato.

– Permita que eu possa formular perguntas sobre tudo o que não compreendo?

– Nós o trouxemos aqui para que todas as suas dúvidas sejam dissipadas. Faz-se urgência e necessidade que estejamos unidos num só pensamento, para que a nova era se estabeleça em alicerces poderosos. Exalta Minha causa, para que Eu possa revelar em ti os mistérios de Minha grandeza e fazer brilhar sobre ti a luz da eternidade². Pergunte, meu bom homem, tudo aquilo que queres saber.

– O Senhor disse antigo Deus.  Ontem o Senhor se apresentou como um anjo de Deus e agora falou num antigo Deus. Por um acaso o Senhor não é o Deus que nós conhecemos pela nossa crença cristã? Oh, perdoa a minha estupidez, mas eu não consigo compreender. Ontem, o Senhor como anjo do Deus de minha Bíblia me mostrou muita coisa, boas e ruins, principalmente a respeito de religião. Ficou claro para mim que o Senhor era verdadeiramente um anjo de Deus, o único Deus que conheço. Agora, agora… não estou entendendo. Veja, Etnaduja, repare bem as faces de minha esposa e de meus filhos. Atente bem para Januário. Desde que o Senhor esteve lá em casa e o curou ele teve consciência da presença de Deus, mas do Deus que nós conhecemos. O Senhor também falou que na nossa região há um material que é vital a vocês. O que seria esse material e por que é vital a vocês, Deus e anjos?

– Depois eu comento sobre o material que nos é vital. Você falou sobre o Deus que vocês conhecem. Diga-me, qual é o Deus que vocês conhecem?

– Ora, ora… é… é… o único que existe, o que está descrito na Bíblia. Não há outro.

– Você ou alguém de sua família já teve algum contato com este Deus?

– Nós? Contato com Deus? Seria a glória se houvesse acontecido.

– Quer dizer então que vocês nunca o viram e jamais tiveram contato com Ele, e mesmo assim vocês o consideram como real. É um pouco estranha esta atitude. Como se acreditar na existência de algo que vocês nunca viram e, pior, nunca tiveram contato?

– Para nós se está escrito na Bíblia é o verdadeiro atestado de sua existência. Os profetas atestaram e seu próprio filho que morreu por nós na cruz o atestou. Para nós, não há a necessidade de sua presença física. Para nós, basta olhar para o mundo e no mundo percebemos os sinais da sua existência, pois o mundo não existiria se não tivesse sido criado por Ele. Isso não basta?

– Os profetas, o filho, a existência do mundo, hum, sei não. Está tudo no papel, absolutamente tudo no papel. Quer dizer que tudo que está naquele papel representa a essência da verdade para vocês?

-Oh, Etnaduja, eu só sei que quando o Senhor disse antigo Deus, piraram as nossas cabeças.

Ó filho do desejo! Os letrados e sábios há longos anos se esforçam, sem contudo atingirem a Presença do Todo-Glorioso; embora tenham passado as vidas em Sua busca, não contemplaram, todavia, a beleza de Seu semblante. Tu, sem o mínimo esforço, atingiste teu alvo; sem busca, alcançaste o objeto de tua aspiração².

– Sim, realmente, Senhor, perdoa a minha ignorância, procure entender o meu suplício. O Senhor é Deus? É o Deus que está descrito na Bíblia?

– O mais importante de tudo é que vocês se mantenham calmos, pois tudo será esclarecido no seu devido tempo, ainda hoje, podem ter certeza. Na verdade vos digo que nós somos os seus novos Deuses, Deuses totalmente diferentes. A seu tempo vocês compreenderão o porque eu digo que somos Deuses diferentes. O Deus que criou vocês e a este planeta se encontra longe daqui e nunca mais voltará. Por isso eu disse que não haverá o Apocalipse como descrito. Somos a nova aura deste planeta, por favor, tenham calma, pois com calma vocês vão assimilar aos poucos esta nova realidade.

– Nossos novos Deuses, nosso Deus não retornará, não haverá o Apocalipse. Ó misericórdia, ó ansiedade, ó apreensão, ó doidura da minha mente. Oh Etnaduja, por que tudo é tão complicado assim?

– Calma, logo vocês estarão relaxados e cientes desta nova realidade.

– Mas, por favor, explique-nos melhor porque Deus não mais voltará?

– Vocês entenderão perfeitamente. Juntem-se formando uma roda, colados uns aos outros e de mãos dadas. Fixem os olhares na bolinha azul do colar. Prestem muita atenção, pois vereis a verdade.

O que os olhos da família Mantiqueira vislumbraram foi um estupor de luzes e acontecimentos sobre a origem da humanidade. Primeiro perceberam uma gigantesca mão sobre trevas infinitas. Esta gigantesca mão fazia gestos suaves como que acenando para alguém. Do meio das trevas ouviram palavras que conheciam muito bem. Na escuridão infindável surgiu o protótipo de um planeta. Seguidamente, foram surgindo luzes, mares, estrelas, o sol, vegetação, animais e numa mata exuberante viram um homem e uma mulher, nus, correndo que nem crianças por entre as árvores. Num dado momento, surgiu outra mão gigantesca, de características semelhantes à primeira. As duas mãos se entrelaçaram e pareciam lutar. Enquanto as mãos se digladiavam, cenas horríveis surgiram. Multidões de pessoas lutavam ensandecidas, bombas explodiam e pedaços de corpos voavam. O barulho era ensurdecedor, muito sangue dominava cada cena, até que se fez um silêncio instigante. As imagens de fundo foram desaparecendo lentamente. As mãos se desgrudaram e, também lentamente, foram se afastando, até que saíram da amplitude de visão. Ficou um ambiente cinza escuro, quase negro, que foi aos poucos clareando. E no meio da cena surgiu um embrião de uma criança. Em volta deste embrião, inúmeras mãos de seis dedos formavam uma espécie de redoma. As mãos eram transparentes. Através delas, eles presenciaram um vertiginoso crescimento. Num lapso de segundos, surgiu um ser adulto, lindo, resplandecente com sua roupa prateada. Este ser, rodeado por uma tênue claridade azul, sentou-se e dirigiu o olhar para a família. Ficou lá, sereno, observando. Do fundo da cena, surgiram várias crianças, todas elas com roupas prateadas. Corriam para todos os lados demonstrando uma felicidade cativante. Após algum tempo, todas as crianças sentaram-se ao lado do adulto e também fixaram seus olhos em Arnaldo e sua família. Mais alguns segundos de silêncio, até que uma das crianças falou.

– Olá. Sejam bem vindos a uma nova era.

– Sim, vocês foram os escolhidos – disse o ser adulto. Eu sou o anjo Odnivmeb. O que vocês viram nada mais é do que a realidade de seu planeta desde o momento em que Deus o construiu até poucos antes do que seria a sua destruição final. Nós somos a nova criação. Nós somos os seus novos Deuses. Vocês foram escolhidos para nos ajudarem a instalar neste planeta a nova ordem. Através de vocês, os novos habitantes dominarão a nova Terra. Tudo começará com vocês. Serão lembrados eternamente entre nós por serem os pioneiros da nova ordem. Precisamos de vocês de corpo e alma. Serão devidamente informados e instruídos. Vou me retirar da presença de vocês agora. Eu, como Etnaduja, sou a imagem e a representação do seu novo Deus. Estas crianças são a imagem e a representação da nova era. A paz esteja convosco.

Quando o ser prateado pronunciou a última palavra, levantou-se juntamente com as crianças. Deram-se as mãos e caminharam para um lugar indefinido. Uma extensa névoa azul dominou o ambiente, e nessa névoa eles desapareceram. Assim como desapareceu todo aquele ambiente. Como num piscar de olhos, a família Mantiqueira se viu novamente em presença dos dois seres prateados, que os encaravam com sorrisos de satisfação.

– Irmãos, estão mais serenos agora? – perguntou Etnaduja.

– É duro, complicado, muito complicado, ter que aceitar a ideia de que toda aquela concepção que temos sobre o nosso Deus, o Deus da Bíblia, tenha que ser descartada. E quanto ao Vaticano, o Papa tem conhecimento disso? Se tiver, estão nos fazendo de bobos.

– Não queremos lhes impor goela abaixo esta nova verdade, nem ao Vaticano. Ela virá naturalmente em concordância com o que estaremos lhes apresentando.

– Onde estamos?

– Prezados terráqueos, vocês estão na morada celestial, brevemente terão oportunidade de conhecê-la em sua totalidade. Por enquanto, diga-me com sinceridade o que está passando pela suas cabeças neste exato momento. Abram-se com a gente, exponham suas opiniões sem medo. Somos Deuses, e como Deuses, queremos apenas construir um novo mundo. Diga-me, diga-me o que pensas de tudo o que presenciastes até o presente momento.

– Está muito difícil assimilar a ideia de que tudo o que aprendi sobre Deus não representou nada e que…

– Espere, meu prezado Arnaldo, antes de qualquer coisa em nenhum momento eu categorizei a inexistência do Deus que você conhece. Há algumas controvérsias geradas justamente pelos escritos. Sim, Ele criou tudo em vosso planeta. Tudo o que está descrito em vosso Livro Sagrado tem a ver com Ele. O que você compreenderá em seu devido tempo é que o Deus de seu conhecimento não se encontra mais neste planeta e que muita coisa escrita não pode ser denominada a mais pura verdade. Nós, seus novos Deuses, tomamos a responsabilidade de transparecer a verdade e reordenar a Terra.

– Então, se o Deus que nos criou não se encontra mais aqui não haverá mais a grande batalha do Armagedon? Ainda hoje, milhares de pessoas pelo mundo afora estão constantemente recebendo graças de Deus. Como você diz, então, que Deus não está mais aqui? Por um acaso o Vaticano sabe disso? Se por um acaso o Vaticano sabe que Deus foi e nos deixou, então está fazendo todos os cristãos de bobos. Não, não pode ser.

Enquanto Etnaduja parlamentava com Arnaldo, o seu acompanhante prateado mantinha-se calado. A este último questionamento do terráqueo, o anjo olhou para o lado e seu companheiro entrou na conversa.

– Arnaldo, qual o nome do Deus que criou vocês e este planeta?

– Como assim?

– Qual o nome que vocês usam para se dirigirem a Deus?

– Ora, eu o chamo de Senhor, Criador, Todo Poderoso ou simplesmente Deus. Outros o chamam de Jeová, Javé, Adonay e por aí vai. Sei que Deus possui uma imensidade de nomes, mas não tenho muito conhecimento sobre o assunto.

– Pois pode me chamar de Sued, simplesmente Sued. Nada de Senhor, de Todo Poderoso ou coisa que o valha. Apenas e unicamente Sued.

– Sued?

– Sim, meu nome é Sued, o seu novo Deus. Depois você saberá os nomes dos outros Deuses, que são os meus anjos. Este que estava lhe falando você já o conhece. Você sabe os nomes dos semelhantes…

– Perai, você… quer dizer, o senhor é… é… o novo Deus?

Volve tua face à Minha e renuncia a tudo salvo a Mim, pois Minha soberania perdura e Meu domínio não perece. Se buscares outro, que não seja eu, ainda que procures eternamente no universo, tua busca será em vão. Esquece-te de tudo, menos de Mim, e comunga com meu Espírito. Eis a essência de Meu mandamento: volve-te, pois, a isto. Contenta-te Comigo e não busques outro para teu amparo, pois ninguém, senão Eu, jamais há de te satisfazer. Não transponhas teus limites, nem demandes o que não te é digno. Prostra-te perante a face de teu Deus, Senhor de grandeza e poder².

Aquelas palavras entraram ouvidos a dentro da família Mantiqueira como uma broca de aço a perfurar a superfície de uma camada de cera. Num rompante, prostraram os rostos no solo em adoração ao novo Deus. Sued se aproximou e acariciou a cabeça de um a um, que aos poucos voltaram a ficar sentados. Em pé diante deles, disse Sued:

Não negues a servo meu, se a ti ele algo pedir, porque sua face é Minha face. Sê humilde, pois, diante de Mim². Diga-me, qual o nome dos semelhantes de seu antigo Deus.

Num instante, Arnaldo não conseguiu proferir uma única palavra. Foi-se acalmando, respirou fundo e, tremendamente emocionado, continuou o diálogo.

– Meu bom Deus Sued, coincidentemente eles também são chamados de anjos, como Gabriel, Miguel, Rafael, Uriel, Camael e outros tantos.

– Pois então, Arnaldo, vocês já conheceram alguns de meus anjos, com o tempo vocês conhecerão os outros. Sobre o Vaticano, eles também não sabem que Deus deixou a Terra, portanto, não estão fazendo vocês de bobos. A realidade é que ninguém, absolutamente ninguém na Terra sabe que o Deus que os criou se foi. Ele e seu principal oponente, outro Deus poderosíssimo que vocês aqui chamam de Satanás, diabo ou demônio. Estão os dois se digladiando em uma galáxia longíssima daqui. Portanto, sim, não haverá mais o Armagedon como descrito no livro sagrado de vocês. Não ocorrerá mais o Armagedon, mas, se não reordenarmos a Terra, vocês mesmos se autodestruirão numa terrível guerra mundial. O planeta seria totalmente destruído por um confronto nuclear. O espaço é repleto de Deuses. Há Deuses, como o seu antigo Deus e como nós em todas as galáxias. Há embates violentíssimos entre os Deuses em cada canto do Universo. Quando o seu antigo Deus e seu principal oponente se foram daqui, outros Deuses se aproveitaram e tomaram conta da Terra. Quando aqui viemos a primeira vez era o tempo em que o filho de seu antigo Deus, que vocês chamam de Jesus Cristo, espalhava a paz entre os povos. Mas o inimigo do Pai, aliando-se a um povo chamado romano, o matou. Através desse povo, o inimigo de seu antigo Deus lhe causou uma dor profunda. Por isso, Ele, totalmente desgostoso, se afastou para sempre. Muito tempo depois, como eu havia dito, outros Deuses aqui estiveram e logo perceberam que na Terra não havia opositores aos seus poderes. Estes Deuses necessitavam de substâncias vitais abundantes no planeta, ener… quer dizer, espíritos propícios a se arrebanharem. Fizeram daqui bases estratégicas ao se infiltrarem no comando de vários governos. Líderes e ditadores sangrentos surgiram sob o comando daqueles Deuses invasores. Por causa disso, duas guerras mundiais aconteceram. Nesta época, tentamos combatê-los com astúcia, pois ainda não tínhamos o poder de força contra eles. Criamos alguns sábios físicos, matemáticos e químicos, que tentaram usar seus conhecimentos para o bem. Criamos humanos que pregavam unicamente a paz, mas que, infelizmente, não conseguiram sucesso. Centenas de anos se passaram, até que finalmente conseguimos derrotar definitivamente aqueles Deuses sangrentos. Ainda há no planeta muitos de seus representantes. Mas não contam mais com a proteção de seus Deuses. Eles vão desaparecer gradativamente. Por causa de tudo isso, constatamos que era chegado o momento de dominarmos a Terra e criarmos o novo homem. Este novo homem terá a paz como seu instrumento de trabalho. O novo mundo será harmônico para todos. Assim, quando não detectarmos perigo algum, todos seremos um só povo, pois aqui também será o nosso lar. Arnaldo, por que lhe caiu o semblante?

– Deus Sued, não…

– Apenas Sued, Arnaldo, nada mais do que isso.

– Por que o senhor não quer ser chamado de Deus, Senhor ou Todo Poderoso?

– Eu sou Deus Todo Poderoso e vou criar a nova Terra, mas não quero ser chamado de Deus nem de Todo Poderoso. Nesta nova era o mundo terá um comando central, uma diretriz geral, que sou eu, Sued, mas sem superlativos de nomes. Todos, sem exceção, serão reconhecidos pela competência de cada um, e não pelos adjetivos pomposos. Portanto, se dirija a mim simplesmente como Sued. Agora me responda por que ficastes de semblante caído.

– Sued, é muita informação para uma mente tão simplória como a minha e a de minha família. Tudo o que você disse contradiz com nossos conceitos aprendidos ao longo do tempo. Como podemos assimilar estes fatos, tão estranhos às nossas concepções?

– Prezado Arnaldo, não se preocupe, por enquanto, apenas ouça as realidades, somente isso. Você e sua família terão tempo para assimilar tudo. Chegará o momento, muito breve, que todos vocês terão como única verdade a verdade de Sued e seus semelhantes. Para você ir se acostumando aos poucos com os nossos poderes e com os poderes de nossos acessórios, mostrar-lhe-ei agora outra maravilha de nossa tecnol… quer dizer, outro fator de nossos poderes. Veja este pequeno aparelho. Chamamos-lhe Osorgalim. Não se trata de mágica, apenas o nosso poder se concentra nele em prol dos nossos irmãos de fé. Repare em mim e em meu semelhante. Ei-los em nossas mãos. Todos nós, Deuses, os temos. São úteis em diversas atividades. Vou ministrar-lhe o poder que ele tem de cicatrização de tecidos não necrosados. Quando há uma solução de continuidade, quer dizer, um corte agudo em qualquer tecido, chegando o aparelho bem próximo deste corte, radiações eletromagnéticas especiais emanadas de nossas mentes são ejetadas no corte. Estas radiações provocam divisões extraordinariamente aceleradas nas células e recomposição de vasos sanguíneos e ramificações nervosas seccionadas. O resultado é uma cicatrização do corte em questão de poucos minutos, dependendo da extensão do mesmo. Repare bem, Arnaldo, na confiança que estou depositando em você e em sua família. Vocês foram os escolhidos justamente por acreditarmos em vocês. Portanto, segredo absoluto sobre os poderes deste aparelho. Se ele cair nas mãos de um terráqueo inescrupuloso, assim como o colar, pode colocar em risco o nosso projeto. Agora, vocês retornarão à Vila. Quando lá chegarem, não digam nada a ninguém sobre a nova era. Esperem até a luz do colar se acender. Vamos atuar sobre a população para que esqueçam rapidamente daquele fenômeno. Não se exasperem. Pode ser daqui a vários dias ou até meses. Repito: não digam nada a ninguém. Quando a luz do colar se acender, juntem-se todos. Tenham a certeza de que não serão incomodados por ninguém. Mantenham todas as portas e janelas devidamente trancadas. Se for à noite, apaguem todas as luzes e sentem-se um ao lado outro com as mãos dadas formando uma roda. Em completo silêncio, receberão, através do colar, as primeiras instruções. Será o início de um novo tempo para o planeta Terra. Por enquanto, comportem-se como se nada disso tivesse acontecido. Atenção para este detalhe: nada aconteceu com vocês que os relacione com o clarão. Neguem. Somente depois das orientações do colar vocês saberão o que fazer.

– Oh Sued, graças ao Senhor. Desculpe por algumas dúvidas que ainda estão corroendo as minhas entranhas. Posso formulá-las?

– Esteja à vontade, meu bom homem.

– Por que estes nossos encontros se deram à noite no meio do mato enlameado? Por que houve aquele clarão? Que material importante para vocês se encontra aqui nas montanhas da Vila? Oh Sued, perdoa-me tanta curiosidade.

– Por enquanto, aguarde, meu bom homem. Breve terá as respostas.

Após estas palavras o homem prateado, que se autodenominou Sued, despediu-se da família Mantiqueira, que lhe prestou altas mesuras. O quinteto foi orientado a ficar um ao lado do outro, formando um círculo fechado. Um intenso feixe de luz os cobriu. Milagrosamente, pois, para eles, o que lhes acontecera só poderia ter sido uma atitude da mão bondosa do novo Deus, Arnaldo e família se viram ao lado do Maverick. A reação geral foi o estupor. A madrugada já se esvaia dando lugar às primeiras claridades do novo dia. Encostados no carro, a primeira a se manifestar foi Mabélia:

– Gente do céu, como viemos parar aqui?

– Oh, mãe, está claro que foi o Deus Sued que nos enviou até aqui – disse Januário.

– Pai, e agora? – perguntou Mara.

– A coisa é muito simples e ao mesmo tempo muito complicada. O simples é que o fato de estarmos aqui só pode ter sido mesmo, como disse Januário, um ato do poder do Deus Sued. O complicado é que quem nos trouxe aqui, então, não foi o Deus que temos no coração, aquele Deus por quem nos ajoelhamos diariamente. E agora, como aceitar estes fatos?

– Pai, o nosso Deus morreu? – perguntou Sofia inocentemente.

– Não, minha filha, não morreu, Ele simplesmente foi embora e agora o nosso novo Deus se chama Sued. Vamos fazer o seguinte: pegar o carro e chegar logo em casa, pois estou morto de cansaço e acredito que vocês também.

Antes de reiniciaram a viagem de volta, ficou combinado entre eles o que deveria ser dito à população para explicar a viagem repentina. O motivo seria um mal súbito sofrido por Dona Maricota, mãe de Mabélia, que residia em Pico da Glória. Por causa deste mal súbito, foram obrigados a viajarem de madrugada, não dando tempo de avisar a ninguém. Agora estava tudo bem com Dona Maricota, por isso estavam de volta. Quanto aos acontecimentos do clarão, eles deveriam dizer que não se lembravam de nada. Enquanto a família Mantiqueira cumpria o seu roteiro, os Deuses discutiam a respeito do projeto que tanto ambicionavam:

– Será, mesmo, a melhor estratégia? − perguntou Sued.

– Sim, comandante, nas condições em que nos encontramos precisamos dar tempo ao tempo, precisamos reparar as avarias e processar o mineral.

– Quanto tempo você calcula para terminar o serviço?

– Acredito que em noventa dias terrestres.

– Nada mau, mas se puder antecipar, ótimo, nossas reservas de energia me preocupam. Agora, sinceramente, já estou ficando saturado de ler a respeito das crenças deste povo.

– É preciso, comandante, é preciso checar o que de nossas verdades está presente na crença deles. Já assimilei praticamente tudo, o negócio é que estou um pouco desconfiado das qualidades morais dos terráqueos.

– Como assim?

– Sei lá, pelo que já estudei a respeito deles não é uma raça confiável. De qualquer maneira, vamos continuar com o roteiro como foi programado.

– Ok, mas você tem alguma desconfiança de que este seu plano de usar a crença deste povo em nosso favor poderá não funcionar?

– Com relação ao projeto da crença, não tenho o mínimo receio, apesar de, no início, é certo que vão rebater. Mas, depois, acabarão por aceitar que a coisa não foi bem assim como lhes empurraram goela abaixo. Preciso é ter mais segurança sobre o caráter dos humanos.

– Então aprofunde mais os estudos sobre eles. O que lhe garante a funcionalidade do projeto da crença? Leva fé mesmo?

– Ora, com certeza, pelos dados que consegui sobre a religião deles, o Cristianismo, tendo perdido seu ensinamento místico e esotérico, vê escapar-lhe grande número dos seus membros mais inteligentes, e o despertar destes últimos anos tem coincidido com o aparecimento de certos ensinamentos místicos. É evidente, para todo aquele que estudou a história dos quarenta últimos anos do século dezenove, que uma multidão de pessoas de caráter refletido e moralidade tem abandonado as igrejas, porque os ensinamentos que aí recebem lhes ultrajam a inteligência e lhe ofendem a moral. Basta ter estudado estas questões com cuidado para reconhecer que homens poderosamente inteligentes foram expulsos do Cristianismo, pelas ideias rudimentares que lhes foram apresentadas, pelas contradições entre doutrinas, enfim, pela noção de Deus, o homem e o universo, noções impossíveis de admissão para qualquer espírito cultivado. Não se pode, de resto, ver na revolta contra os dogmas da Igreja o índice de uma decadência moral. Os revoltados não foram de todo maus para a sua religião; a religião, ao contrário, foi sempre muito má para eles. A revolta contra o Cristianismo popular foi motivada pelo despertar da consciência e seu consequente desenvolvimento: esta levantou-se, como inteligência, contra as doutrinas que desonram não só a Deus como ao homem, doutrinas que representam a Deus como um tirano e o homem como essencialmente perverso e obrigado a merecer sua salvação por uma submissão de escravo³. Por isso…

– Você disse que não está sentindo firmeza a respeito dos terráqueos. Primeiro: esta família Mantiqueira teria o caráter que você quer? Segundo: terá inteligência suficiente para assimilar este projeto?

– Quanto a estes dois quesitos posso garantir que sim. Não se esqueça o que o Aterex nos revelou a respeito deles. Só para terminar o meu raciocínio a respeito desta problemática de religião, ela teve por causa o abaixamento gradual dos ensinos cristãos ao nível de uma pretendida simplicidade, permitindo aos mais ignorantes compreendê-los. “Não devemos pregar senão aquilo que todos possam compreender” – declaram altivamente os doutores protestantes – “a glória do Evangelho está em sua simplicidade; as crianças e os iletrados devem poder compreender e seguir os preceitos”. Isto é verdade se admitirmos que certas verdades religiosas podem ser compreendidas  por todos e que uma religião não atinge sua finalidade se os mais humildes, os mais ignorantes, mais curtos de inteligência escaparem à sua influência edificante. Mas isto é falso, absolutamente falso, se daí, concluirmos, que uma religião não encerra verdades inabordáveis para os ignorantes e que ela seja tão pobre e limitada que nada mais tenha a ensinar que seja demasiadamente elevado para o pensamento dos inteligentes ou para o estado moral dos seres degradados. Sim, se tal é o sentido da afirmação protestante, ela é falsa e fatalmente falsa. Como consequência da divulgação desta ideia, espalhada pela pregação e repetida nos templos, muitíssimas pessoas de caráter elevado – embora no desespero de renunciarem à sua primeira fé – abandonam as igrejas e deixam seus lugares aos hipócritas e aos ignorantes. Tornam-se passivamente agnósticas ou – se são jovens e entusiastas – ativamente agressivas; recusam ver a verdade suprema em uma religião que ultraja não só a inteligência como a consciência. E preferem a franqueza de uma incredulidade aberta à influência desonesta exercida sobre a inteligência por uma autoridade que nada tem, para elas, de divino³.

Entendi. Havendo já certa descrença por parte dos fiéis quanto aos parâmetros atuais da Igreja deles você considera que não será tão difícil convencê-los sobre a verdade, isto é, sobre a verdade que você criou.

– Exatamente, comandante, por isso acredito que já no próximo encontro poderemos convencê-los totalmente a respeito de nossas verdades a ponto de não mais nos negarem como novos Deuses em momento algum.

Os Deuses prosseguiram em suas rotinas e o Sol não estava nem aí para eles. Garboso, naquela manhã de terça-feira travava uma luta árdua com nuvens carregadas que não se decidiam se lá no alto ficariam ou se desceriam em forma de um aguaceiro tremendo. Seu Bartolomeu acabara de abrir as duas portas de aço da padaria quando se deparou com Zé Limão:

– Oh, não, que bela maneira de se iniciar um dia!

– Ora, que é isso, Seu Bartô, desse jeito o senhor me ofende. Hoje vai sair uma média com pão e manteiga, adivinhei?

– Mas é claro, Seu Zé Limão, aqui na minha padaria todos que pagam recebem a sua média com pão e manteiga.

– Ah, é assim? Pois então eu não conto a última novidade sobre os Mantiqueira.

– Que novidade coisa nenhuma, pois depois dos acontecimentos do clarão e da visita dos repórteres nada mais aconteceu.

– Cê que pensa, seu Bartô, cê que pensa.

– Ora, seu cana brava, isso é uma jogada para ganhar a média com o pão.

– Juro por tudo quanto é mais sagrado neste mundo que há uma novidade sobre o Arnaldo.

– É, então desembucha.

– É, antes de desembuchar, cadê a minha média com pão e manteiga?

– Tá bão, tá bão. Ô Maria, sai uma média e um pão com manteiga aqui pro Zé Limão. É por conta. Agora vamos, diga logo, ô destilaria de álcool.

– Pois então, prepare-se: a família Mantiqueira fugiu!

– O quê? Mas… fugiu… como?

– Fugiu, Seu Bartolomeu, fugiu. Por um acaso o senhor não sabe o que significa fugir?

– Mas fugiu de que e pra onde?

– Ora, ora, ora, de que todo mundo sabe. Agora, pra onde eles foram são outros quinhentos.

– Todo mundo sabe do que?

– Ora, ora, ora, Seu Bartolomeu, é por causa do Januário que viu Deus e do colar que foi um presente de Deus. Quer mais?

– Tem certeza disso, Zé Limão? Como é que você ficou sabendo?

– Já era quase meia-noite, eu estava… só um pouquinho… digamos assim… eu estava cansado e voltando dum but… quer dizer, da casa de um amigo. No meio da ponte principal me deu um sono que eu vou te contar, bravo demais. Aí resolvi descansar ali mesmo antes de ir para casa. Foi quando o conhecidíssimo Maverick do Arnaldo veio que nem uma bala e freou em cima de mim. Eu cai e ele pensou que eu tivesse machucado. Mas não tive nada. Fiquei lá fingindo que dormia. Ele me olhou, viu que não era nada, entrou no carro e se mandou. Estava toda a família dentro do carro. Agora me diga, Seu Bartolomeu, por que ele e toda a família saiu da cidade tão apressado numa hora daquelas? Vai, responda.

– Ah, não estou acreditando.

– Bem, enquanto eu saboreio a minha média e o pão com manteiga, vai lá na casa deles para ver se não está tudo fechado.

Na viagem de volta da família Mantiqueira, o silêncio dominava a todos. A Vila do Córrego Dobrado parecia se localizar do outro lado do mundo. Cada um ruminava os seus pensamentos da melhor maneira possível, ainda confusos e até complexos para aquelas mentes de pessoas do interior. Chegando à ponte principal da Vila, ao invés de seguirem o trajeto normal, viraram numa rua paralela ao córrego e a contornaram para não chamarem a atenção, chegando em casa sem maiores alardes com o sol tentando vencer a barreira de nuvens para mostrar a sua majestade. Juntaram-se todos na sala e estatelaram-se nos três sofás. Mesmo estafados, nenhum deles procurou a cama. Reinou um silêncio assustador por alguns minutos. Ninguém olhava pra ninguém, até que Mabélia resolveu falar.

– Foi lindo e maravilhoso tudo o que presenciamos, mas nunca estive tão confusa em minha vida, vai contra tudo o que sabemos sobre Deus. Para mim, nunca existiu outro Deus, que é onisciente e onipresente. Esse negócio de guerra entre Deuses é uma loucura. O pior é saber que Deus foi embora e nunca mais vai voltar, tem que ter um fundamento nisso. Depois daquilo tudo que passamos e de tudo o que vimos, como imaginar que tudo foi um sonho? Aqueles seres têm muito poder, não podem ser simples seres humanos. Sabe, Arnaldo, estou levada a acreditar mesmo que nosso Deus se foi e que aqueles lá são realmente novos Deuses. Mesmo assim, é difícil, muito difícil aceitar. O que faremos?

– Mabélia, você sabe muito bem o quanto sou devoto de Deus e de seus mandamentos, sei que é difícil acreditar, mas outras coisas me aconteceram e deixaram minha cabeça quente. No meu primeiro encontro com eles, eu rolei numa ribanceira e bati contra o tronco de uma árvore, tive fratura exposta na perna. No outro dia cheguei em casa sem nada. Foi incrível.

– Fratura exposta? Você não me falou nada disso.

– Como não falei?

– Não falou, tenho certeza.

– Não sei, então, porque não me lembrei, deixa estar, agora você sabe. Além do mais, viu só o poder que tem este colar? Agora ainda temos este novo aparelho e o poder que aqueles seres têm de nos transportar para lugares inimagináveis com cenas inimagináveis é incrível.

– Não seria hipnotismo? Sim, Januário, o negócio é que eles nos hipnotizaram e por isso tivemos todas aquelas alucinações.

– Sei não, Mabélia, como explicar o clarão que todos da cidade viram, incluindo você? Como explicar a febre do Januário, que você viu? Como explicar a visita do homem prateado e este colar? Será que tudo isso foi alucinação provocada por hipnotismo? Será mesmo? Quanto ao Januário, notou como está em estado de transe? As meninas até parecem tranquilas, mas o Januário está esquisito. Vamos conversar com ele.

– Filho, ficou feliz com a visita a Deus?

– Pai, foi muito legal, até agora não estou acreditando que estive frente a frente com Deus. Tudo era muito bonito. Sim, como é bonita a casa de Deus. O que vamos fazer agora para alegrar Deus, pai?

– Pense um pouquinho, filho, e reflita. Acredita mesmo que esteve presente perante Deus?

– Claro! Apesar deles se dizerem novos Deuses, acredito que eram anjos de nosso Deus. Sabe pai, somos os únicos na Terra que viram Deus, não é bacana? Vamos ficar famosos.

– Januário, pelo amor de Deus, por enquanto você precisa ficar caladinho, não diga nada a ninguém por enquanto.

– Uai, por quê?

– Não ouviu eles dizerem que as recomendações virão através do colar e que deveríamos esperar? Vamos aguardar para ver, só depois poderemos falar, ok? Além do mais você prometeu ao Padre Alaor que ficaria calado.

– Tá certo, pai.

– Oh, gente, agora o cansaço bateu de vez – choramingou Arnaldo. Quanto a vocês, não sei, quanto a mim, vou cair na cama. Vamos Mabélia? – Foram todos.

Enquanto Zé Limão saboreava sua média com pão e manteiga, Seu Bartolomeu não conseguia assimilar a notícia do etílico sobre a pretensa fuga de Arnaldo e família. Seria mesmo verdade ou o cana brava inventara aquilo para levar vantagem? Não aguentou a ansiedade e foi questionar novamente. De um lado Zé Limão dizia que não era mentiroso e que jamais sujaria o seu nome por causa de uma merreca de média e pão com manteiga. Do outro lado o comerciante enfatizava que o gambá fedorento não tinha credibilidade na Vila. Nisso, um cliente que acabara de chegar ouviu a discussão e logo perguntou se o assunto era a família Mantiqueira. A resposta, evidente, foi positiva. O que acabara de chegar noticiou aos presentes que, no caminho para a padaria, viu o Maverick sendo guardado na garagem e os Mantiqueira entrando em casa. Com a velocidade da luz a notícia se espalhou. De boca em boca os boatos diziam que Arnaldo e família tinham ido ao encontro de Deus e que tinham voltado. Não demorou muito, praticamente toda a Vila estava à porta da casa de Arnaldo. Lá dentro, foi um susto tremendo. Sobressaltados, se viram obrigados a se trocarem para verificar qual o motivo da balbúrdia. Arnaldo à frente, abriram a porta da sala e chegaram ao alpendre. Foi um verdadeiro caos. A família teve que responder a um monte de perguntas. Todas elas que relacionavam a família ao clarão foram respondidas negativamente. Ninguém estava entendendo bulhufas, muito menos o Padre Alaor, que solicitou um bate-papo, imediatamente aceito. Depois de um bom dia a todos, alegando cansaço, Arnaldo fechou a porta e o povo se dispersou, praticamente por uma ordem do padre. Mabélia e os filhos voltaram para as suas respectivas camas enquanto o eclesiástico e o marido ficaram na sala conversando.

– Desculpe, Arnaldo, por esta confusão louca desse povo desmiolado. Infelizmente está todo mundo acabrunhado por causa daquele fenômeno e de tudo relacionado com ele, que você sabe muito bem do que estou falando. Confesso que tenho lá um pouco de culpa por ter dito que foi um aviso de Deus. Apesar de vocês serem os personagens principais do fenômeno, confesso que não tenho o direito de lhe exigir explicações e sei, com certeza, que você não é obrigado a me dar satisfações, mas, por favor, perdoa-me a ingerência, me responda o porquê vocês viajaram de repente numa hora imprópria daquela.

– Oh meu bom padre, quanta preocupação por minha humilde alma. Não se preocupe, não me aborreci com a manifestação de meus conterrâneos e muito menos com o que o senhor chamou de ingerência. Entendo a sua inquietude. Para te tranquilizar, o meu enigmático desaparecimento com a família numa hora imprópria, como foi destacado, se deveu ao fato de uma visita inesperada. O senhor bem sabe que o telefone ainda não deu certo aqui na Vila, pois só funciona quando lhe dá na telha. Tentaram nos comunicar de um mal súbito de Dona Maricota, minha sogra, mas cadê que conseguiam ligar para cá. O jeito foi um parente vir aqui nos avisar. O senhor bem sabe que mal súbito não escolhe hora. A Mabélia ficou desesperada. Restou-nos a alternativa de sair às pressas, àquela hora tão imprópria destacada pelo senhor. Passamos toda a noite no hospital e lá por volta das três da madrugada, o médico deu alta à Dona Maricota. Sabe como é, a falta de leitos é tão grande que o paciente, ficando bom, tem que desocupar logo o lugar porque atrás tem um monte de doentes. Foi, nada mais e nada menos, que uma hiperglicemia aguda, pois a velha é diabética e andou descuidando da dieta. Como são poucos quilômetros de distância, resolvemos vir embora. Foi isso, padre, só isso.

– Oh Deus, que loucura, a vida aqui na Vila era uma tranquilidade só. Depois daquele fenômeno parece até que Satanás resolveu morar conosco.

– Santa misericórdia, padre, vire essa boca pra lá.

– Arnaldo, por favor, não se aborreça comigo, eu sei que você está muito cansado e que agora deveria estar confortavelmente aconchegado numa cama. Antes d’eu me retirar, diga-me, pelo amor de Deus sem se aborrecer comigo, o que está acontecendo, que colar milagroso de Deus é este?

– Padre, acredito que há uma explicação para tudo isso. Sofri uma queda de cavalo, batendo com a cabeça numa árvore. Talvez esta queda tenha me provocado algum transtorno mental, isto é, devo ter ficado meio desmiolado por algum tempo, chegando a imaginar que este colar fosse coisa de Deus, a ponto de sair desembestado, como bem disse o senhor. Ah, até cheguei a ver um homem prateado e brilhante. Que doidice, né!

– Como lhe apareceu este colar?

– Se eu contar o senhor não vai acreditar.

– Tente.

– Isso é herança de meu avô, é um colar inglês, do século 19, nunca havia usado. Um dia a Mabélia estava dando uma faxina nas gavetas do guarda-roupa e o encontrou. Aí, resolvi usá-lo para ir à fazenda do Gumercindo. Foi isso.

– E que negócio é esse dele acender uma luz azul?

– Tem isso não, padre. Como é um metal inglês refinado, tem momentos em que a luminosidade bate nele e é refletida como se fosse uma luz azul.

– Meu Deus, que história. Você se aborreceria se lhe fizesse mais algumas perguntas?

– Tudo bem, padre, mas não vamos muito além porque estou realmente esgotado.

– Vou ser breve, prometo. Como você explica a febre do Januário? Nem o Doutor Mangabeira conseguiu.

– Essa, realmente, não tenho como explicar. Sei lá, deve ter sido uma virose muito aguda. Como o menino é muito forte de saúde, o corpo deve ter debelado logo. Também, como eu fiquei sabendo, depois de tanto antipirético que ele tomou era mais do que óbvio que a febre cederia, não é? Mudando de assunto, o senhor ainda acredita que aquele clarão foi um aviso de Deus?

– Pelo amor de Deus, não me fale nisso. Foi uma bobeira minha.

– Não estou te entendendo, você é uma pessoa muito sensata e sempre se mostrou coerente com o povo da comunidade.

– Aí é que está, fui ser sensato e coerente, mas o tiro acabou saindo pela culatra. Por quê? Você bem sabe como o povo dessa cidade é temente a Deus. Aliás, nem todos, pelo menos a maioria. Acreditei que se eu relacionasse a queda daquele meteoro com alguma ação de Deus, pudesse incutir na cabeça do povo que precisava reverter um pouco mais do tempo de cada um à igreja. Mas não foi bem assim. Por causa disso, levei uma reprimenda brava do bispo.

– O que, o Bispo Ednando esteve aqui? Só por causa daquele clarão? Esquisito isso. Mas padre, o senhor considera que aquele clarão foi mesmo consequência da queda de um meteoro?

– É mais do que lógico, aqueles sinais são clássicos.

– E a queda de energia?

– Algum fenômeno meteorológico provocado pela queda deve ter interferido nas nossas precárias instalações.

– E a subida da luz?

– Essa é que está pegando, sei lá, algum cientista poderá explicar.

– E o bispo veio até aqui só por causa disso?

– Não foi pela queda do meteoro, pelo clarão e muito menos pela queda de energia, e sim pelo que falei. Ele temeu que houvesse aqui algum tipo de idolatria sobre o ocorrido.

– Nisso eu concordo, se der linha para este assunto logo a Vila se tornará centro turístico e as pessoas virão visitar o local onde Deus apareceu. Mas tem uma coisa, padre, lembre-se que o fato foi enormemente difundido pela Rádio Clube de Pico da Glória.

– Pois é, o bispo está uma fera por causa disso. Sabe o que é que mais me preocupava? Justamente vocês.

– Nós?

– Perceba a coisa, Arnaldo. Até… posso continuar mais um pouquinho?

– Vá, padre, está até interessante.

– Então, vocês eram o centro das atenções, tudo estava baseado no Januário ter visto Deus, em você com este colar e ao súbito desaparecimento da família. De repente, vocês se fecham como se nada daquilo tivesse acontecido. Por isso estou contente, assim o povo daqui se acalma e não haverá novas notícias para satisfazer as mentes insanas daqueles repórteres bisonhos da rádio. Dentro de pouco tempo, como sempre acontece, todos vão esquecer e a cidade voltará ao seu juízo normal. Concorda? Ah, lembrei-me agora de outro fato. E o tal homem de roupa prateada? Como explicar?

– Como eu disse, claro que foi uma alucinação, padre. Mais um fruto daquela queda.

– O problema é que o Januário o viu e disse que era Deus.

– Padre, o menino chegou a quase 43 graus de febre, quase morreu torrado. Numa febre dessas, quem não tem delírios?

– É, tudo bem, deixa pra lá, mas que é uma baita coincidência pai e filho terem visto o homem prateado, isso é. Vamos esquecer. O que importa é a Vila estar nos seus dias normais como sempre foi. Vou deixá-lo agora para que tenha um bom descanso. E, o mais importante, desculpe o aborrecimento e muito obrigado pela simpática atenção. Até mais, Arnaldo.

– Até mais, Padre Alaor, a sua bênção.

Chegando à Matriz, o padre recebeu um recado da moça da estação de telefone da Vila. Fora convocado pelo bispo para, ainda esta noite, estar em Pico da Glória para participar de uma recepção a uma congregação da capital. A contragosto, porque estava cansado e preferia dormir na Vila, trocou de roupa, arrumou a mochila com peças para o outro dia e partiu. Já era tarde da noite. Enquanto o padre era um dos hóspedes na Diocese, um estranho poder celeste se abateu sobre todos os moradores de Vila do Córrego Dobrado. No dia seguinte, o fenômeno do clarão e suas consequências não era mais referência para nenhum deles. Somente a família Mantiqueira continuava possuidora do “grande saber”. Posteriormente, o comportamento dos fiéis exasperou o eclesiástico.

* 1: Automóvel criado pela Ford dos Estados Unidos que obteve grande sucesso em seu país de origem. Foi fabricado no Brasil entre 1973 e 1979. Apesar de aqui não ter obtido sucesso em vendas, tornou-se lendário e até o momento da tragédia era cultuado por pessoas de várias idades. O primeiro Maverick nacional deixou a linha de montagem em 4 de junho de 1973. A apresentação oficial à imprensa ocorreu no dia 20 de junho, no Rio de Janeiro, com uma das maiores campanhas de marketing da indústria automobilística nacional, contando inclusive com filmagens nos Andes e na Bolívia.

* 2: Do livro “As palavras ocultas”, de Bahá’u’lláh.

* 3: Do livro “O Cristianismo Esotérico”, de Annie Besant.

* Texto: Eitel Teixeira Dannemann.

* Foto: Desenho e montagem de Eitel Teixeira Dannemann.

 

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