“As tragédias verdadeiras no mundo não são conflitos entre o certo e o errado. São conflitos entre dois direitos”. (Georg Wilhelm Friedrich Hegel − 1770-1831)
Primavera de 1980. Duas horas da madrugada na Vila do Córrego Dobrado. Fechou-se a última porta de um estabelecimento comercial especializado em bebidas alcoólicas. Cada um dos últimos quatro ocupantes tomou o rumo de casa. Zé Limão, que para variar exagerara nas doses, lutava desesperadamente para se manter em pé. Cambaleando, encostou-se na murada da ponte principal. Na cabeça, a sensação era a presença de uma colmeia de abelhas, tão intenso era o zumbido. Tudo girava em sua volta. Sem conseguir suportar o peso do corpo, as pernas arriaram e ele se viu caído encostado na mureta. Lá ficou, olhos abertos mirando as estrelas e ouvindo os zunidos. Ao longe, percebeu a aproximação de faróis. Deitou-se e fingiu estar dormindo. Um automóvel desceu a estrada lentamente. Ao chegar à ponte, deparou-se com o corpo estendido. Zé Limão se manteve imóvel e de olhos fechados. O veículo, um sedã preto, parou ao lado. Dois elementos desceram e examinaram o corpo. Acreditaram ser um caso de pré-coma alcoólico, portanto, sem risco para eles. Os dois elementos voltaram ao veículo, que prosseguiu o caminho em direção ao centro. De soslaio, o etílico reparou o carro se afastar, mantendo-se ainda fingindo de apagado. Num relance, percebeu no céu uma pequena luz azul que se movia. O sedã já havia dobrado uma esquina quando o etílico resolveu se levantar. A luz continuava a se movimentar e parecia aumentar de tamanho como se estivesse se aproximando. Logo veio à sua mente o fenômeno do clarão. Uma sensação estranha deu-lhe forças para se por de pé. Ligeiro, estranhamente não sentindo os rigores do álcool, caminhou em direção à praça. Numa esquina, olhou em direção à rua onde moravam os Mantiqueira. Lá estava parado o sedã. Havia quatro elementos, sendo que três deles fortemente armados. Um fato lhe despertou a atenção. Um dos elementos parecia que usava uma vestimenta preta que ia até os pés. Seria uma batina? Coçou os olhos e reparou bem. Apesar da visão anuviada, não teve dúvidas, sim, a roupa era uma batina. Mas raios, o que faria um sujeito vestido de batina no meio de três elementos fortemente armados em frente à casa de Dona Mabélia? Mal estes pensamentos lhe ocupavam a mente quando um tênue foco de luz azul cobriu os quatro elementos e o veículo. Num piscar de olhos não havia mais sinal deles. Olhou para o céu e viu um fino rastro azulado desaparecer. Correu até a porta da casa. Arfando e suando, se deparou com Dona Mabélia e os filhos no alpendre. Mal conseguia pronunciar uma palavra sequer. Enquanto tentava se comunicar, Januário foi até ele. Zé Limão sentou-se no passeio e abaixou a cabeça. Januário então lhe dirigiu a palavra.
– Zé Limão, o que houve? O que faz aqui na porta de casa a estas horas da noite?
– Eu vi, eu vi, eu vi…
– O que você viu, Zé Limão?
– Eu vi, eu vi… era uma forte luz azul… todos sumiram…
– Quem sumiu, homem?
– Estão todos loucos, eu… eu sei de tudo… vocês… vocês têm parte com o demônio… vocês… eu sabia… o Padre não quis acreditar…
– Oh, caro amigo, você não está dizendo coisa com coisa. Vá para casa, já é madrugada alta.
Num salto ligeiro, o bêbado se pôs de pé e saiu em disparada pela rua gritando aos céus que havia visto o demônio em pessoa e que o demônio era azul e que havia sumido com quatro homens, sendo um deles um padre. O homem não parava de correr e gritar. O relógio marcava por volta das duas e meia da manhã. Nas casas, luzes foram se acendendo e gente chegando aos passeios. Cansado de tanto correr e gritar, Zé Limão chegou à praça da matriz e sentou-se num dos bancos. Mais calmo e calado, inúmeras pessoas chegaram até ele com uma série de perguntas. Zé Limão mantinha a cabeça abaixada sem responder a ninguém. Lembraram de chamar o Padre Alaor, que pouco tempo depois chegou. Fez outras tantas indagações, mas Zé Limão mantinha-se em silêncio. No meio de toda aquela gente, apareceu Januário. Imediatamente, Zé Limão levantou a cabeça e arregalou os olhos. Pôs-se de pé, apontou-lhe o dedo e gritou o mais alto que pôde que o demônio havia chegado. E saiu em disparada tomando o rumo de casa. Todos olharam para Januário com sorrisos sinistros. Assim, com sorrisos sinistros, cada um voltou para o aconchego do lar. Padre Alaor e Januário trocaram algumas palavras e se afastaram também. Poucos minutos depois, com exceção da família Mantiqueira, Vila do Córrego Dobrado estava novamente em profundo silêncio. No extremo norte do país, à beira da rodovia Transamazônica, surgiu o tênue foco de luz azul. Quando a luz se foi, lá estava um sedã preto com quatro tripulantes carbonizados. Ao mesmo tempo, outro foco de luz azul atingiu em cheio o corpo estropiado de Zé Limão, literalmente desmaiado no aconchego de sua cama. Teve uma das mais prazerosas noites de sono de sua vida.
De manhã, como sempre fazia logo depois de acordado, invariavelmente com a cabeça inchada, Zé Limão apareceu na padaria de Seu Bartolomeu com a intenção de ganhar um pão com manteiga e um café. Como quase sempre acontecia, foi negado.
– Ora, Zé Limão, tenha dó, todo dia é isso.
– Seu Bartô, sabe quantas padarias tem aqui na Vila?
– Que eu saiba só a minha e a da Dona Matilde.
– Então, Seu Bartô, viu como eu gosto do senhor? Ao invés de frequentar a padaria da Dona Matilde eu venho é aqui. Amigo é pra essas coisas, não é?
– Só me faltava essa. Pois eu adoraria que você passasse a frequentar o comércio da Dona Matilde.
– Gente, quanta ingratidão. Por essa meu coração não esperava. Ei-lo aqui, jorrando lágrimas de sangue e…
– Ora, bebum, vai ver se estou lá na esquina, vai.
– Pois saiba que eu vi uma coisa muita estranha hoje de madrugada.
– É, o álcool tem dessas coisas, faz a mente do bebum ver coisas que não existem.
– É verdade, Seu Bartolomeu, uma coisa incrível, sinistra e…
– Ora, tem dó, vai ver se estou lá na esquina, de novo.
– Não, não, espere, parou um carro na porta…
O padeiro, se afastando, não deu chance para o homem narrar o caso do sedã preto. E assim Zé Limão ficou por ali. Tentou contar para outro, em vão. Fez várias tentativas, em vão. Ninguém dava atenção ao bêbado. Apesar da insistência, o coitado não incomodava as pessoas, muito pelo contrário, elas se divertiam com ele. Sempre tentava ganhar o café da manhã. Depois de alguns minutos, percebendo que não seria agraciado, invariavelmente ele entrava, tomava o café com pão e pagava. Pois lá estava o Zé Limão tomando o seu café na padaria do Seu Bartolomeu quando adentrou ao estabelecimento Mara, trazendo pela mão a filha Asued, que toda a Vila já tinha ciência da origem. Quando os olhos do etílico se encontraram com os olhos da moça, sustou-se na cadeira, trêmulo. Mara parou ao lado dele e colocou a criança no colo. No mesmo instante, todos os presentes na padaria, com sorrisos serenos, agiam como que querendo participar com Mara.
– Olhe, Asued, é Zé Limão, ele precisa de ajuda – disse a mãe.
– Mamãe, ele é triste.
– Sim, ele é triste – repetiu a plateia.
– Você quer ajudá-lo, filha?
– Ele também tem uma filha. Onde está sua filha, bom homem?
– Ele tem uma filha? – perguntou em conjunto a plateia.
– É mesmo? – reforçou Mara.
– Sim, mãe, ela mora em Belo Horizonte.
– O nome, o nome – gritou a plateia.
– Sabe, mãe, Zé Limão tem uma filha chamada Lucrécia. Ele já é vovô.
Até então, Zé Limão estava com os olhos esbugalhados e com um pedaço de pão na boca, estático. Ninguém, absolutamente ninguém na Vila e nas redondezas, sabia daquela particularidade de sua vida. Ou melhor, ninguém sabia absolutamente nada de sua vida. Aliás, sabiam alguma coisa. Sabiam que num belo dia, coisa de dez a doze anos, ele surgiu na cidade. Alugou um barraco e por lá ficou fazendo o que mais gostava, que era se embriagar o dia todo. Recebia uma aposentadoria e com alguns bicos que fazia pagava as suas contas. Não era caloteiro, por isso o povo lhe aturava. Mas essa foi demais para ele. Num pulo, pôs-se de pé e saiu gritando porta a fora que Mara era a filha do demônio e irmã do demônio, que Asued era a filha e a neta do demônio de dez caudas e vinte chifres, até sumir de vista. Como se nada tivesse acontecido, Mara e Asued se foram e os presentes na padaria, sorridentes, se despediram com amenidades. Antes de voltar para casa, Mara passou na igreja e contou o incidente ao Padre Alaor. Este resolveu imediatamente conversar com a família.
– Essa eu não entendi – disse Januário.
– Pois é. Tudo leva a crer que a luz não funcionou nele – falou o Padre.
– Será isso possível? Se for, por que só com ele?
– Também não estou entendendo. Lembram-se do meu caso? Naquela vez não funcionou em mim porque eu estava fora da Vila.
– Posso dar uma sugestão? – perguntou Dona Mabélia.
– Diga, mãe.
– Estou com um pensamento na cabeça. Sei lá porque me veio este pensamento. Antes de falar nele, quero que você, Januário, e o Padre procurem os amigos do Zé Limão e falem sobre os fenômenos. Vocês sabem onde eles moram, não sabem?
– Sabemos, mas já devem estar nos botecos.
– Então rodem os botecos e os encontrem. Se toparem com o Zé Limão é certo que fugirá que nem um doido. Não importa. O que importa é que ouçam a opinião dos outros. Vão. Depois terminamos a conversa.
– É prá já, mãe. Mas, espere aí. Será que aqui na Vila só existem estes quatros bêbados? Não, eu mesmo conheço um monte de gente que bebe pra caramba.
– Tudo bem, vá primeiro fazer o que pedi e depois conversamos sobre isso.
Januário e Padre Alaor foram executar o pedido de Mabélia. Como já era esperado, foram encontrados num boteco. E como já era esperado, quando Zé Limão viu Januário, saiu em disparada, deixando os colegas de copo sem entender a reação do amigo. Foram entrevistados e os três foram unânimes nos conhecimentos sobre os fenômenos do primeiro clarão. Retornando à casa, a conversa continuou.
– Foi o que pensei – disse Mabélia. Não sei o porquê, mas a luz não faz efeito em quem está com altas concentrações de álcool no sangue.
– Será que é isso mesmo? – perguntou Januário. Será que só aqueles quatro é que bebem o suficiente para não serem afetados?
– Podem ter certeza, e isso é uma falha nos poderes dos Deuses. Precisamos saber com eles, com urgência, porque seus poderes não agem em pessoas sobre efeito de álcool. Januário, convoque urgente o anjo Etnaduja.
Passados pouco mais de dez minutos, ouviram alguém chamar. Sofia abriu a porta da sala e se deparou com um homem com o uniforme dos Correios e Telégrafos em pé no alpendre.
– Adivavon! Louvado seja Sued. Bom dia Sofia, sou Ordep. Etnaduja não pode vir.
– Louvado seja Sued. Entre, Ordep, entre.
Após ouvir detalhadamente todo o exposto por Januário, o anjo prateado de Sued pôs-se a pensar, e logo falou.
– Isto não estava nos planos, quer dizer, não poderíamos imaginar que pudesse acontecer. Mas já temos a explicação.
– Mas como vocês não puderam prever? – perguntou Mara.
– Vocês não entenderam. Não se trata de falha de previsão. Nós, Deuses, sabemos de tudo. Tanto é que enviamos a luz ao Zé Limão sem vocês nos pedirem, porque lá de nossa morada celestial sabíamos o que fazer. Entretanto, a luz não funcionou nele e nem em seus amigos, tanto na primeira vez como agora. Imediatamente, então, estudamos a questão. O etanol, a quem vocês chamam de álcool, afeta diversos neurotransmissores do cérebro. Têm nomes complicados como ácido gama-aminobutirico, ou GABA, sendo GABA-alfa e GABA-beta. Apenas o primeiro é estimulado pelo álcool, resultando disso uma diminuição de sensibilidade para outros estímulos. O resultado é um efeito mais inibitório no cérebro, levando ao relaxamento e sedação do organismo. Diversas partes do cérebro são afetadas, tais como aquelas responsáveis pelo movimento, memória, julgamento, respiração, etc. O que descobrimos é que nossa luz não funciona em humanos alcoolizados por causa do tal GABA-alfa. Aqueles quatro vivem constantemente com alto teor de álcool no sangue. Outros da Vila bebem muito, mas não constantemente como aqueles. Por isso os quatro ainda não foram convertidos.
– Mas por que vocês esperaram o nosso alerta? – perguntou Januário.
– Nós já conversamos sobre onisciência e onipresença. Já dissemos que o Deus de Jesus Cristo não era nem onisciente e onipresente, assim tanto quanto nós. Isso foi muito bem discutido. Por isso, desde o nosso primeiro contato, jamais lhes impusemos estes estigmas. Monitoramos vocês 24 horas por dia. Todas as pessoas que chegam próximos a vocês são monitoradas naquele momento. O último exemplo foi o caso do sedã preto de ontem. Fora isso, nossos poderes fazem uma varredura geral no mundo inteiro, mas não tão incisiva quanto a que fazemos com vocês. Precisaremos sempre que vocês nos informem sobre os fatos que acontecem longe de suas presenças. Quanto ao alerta, foi pura coincidência. Já havíamos detectado o problema. Estávamos em vias de comunicação quando vocês nos solicitaram.
– Tudo bem, Ordep. O que fazer agora?
– Que fique ciente a todos que não podemos converter nenhum ser humano com excesso de álcool no organismo, certo?
– Tem algum padrão de quantidade?
– A partir de 2g de etanol por litro de sangue. Quanto mais alta a concentração, menos eficaz será o poder da luz.
– Se a luz não funciona nesta circunstância, o que fazer?
– Não queremos usar os nossos poderes diretos sobre estes humanos, pois tememos lesioná-los. Há uma solução, bem simples. Isolá-los durante 24 horas para que não ingiram álcool. Então, use o colar e o problema estará resolvido. Lembrem-se que, depois de convertido, o álcool não mais afetará o poder da luz.
– Ainda hoje procuraremos o juiz para nos fornecer quatro mandados de prisão. Amanhã teremos, finalmente, Zé Limão e seus amigos convertidos definitivamente.
– Perfeitamente, Januário. Estaremos em nossa morada celestial prontos para qualquer chamado. Se preciso for, informaremos sobre alguma ação. A propósito, Padre Alaor, alguma resposta do Bispo Ednando?
– Ainda não. Tão logo chegue, informaremos.
– Ótimo. Então, louvado seja Sued.
– Louvado seja Sued – responderam todos.
Em torno do planeta fervilhavam diversos idiomas. Cada um tinha seus motivos aparentes e não aparentes para dirigirem suas preocupações em direção à Vila do Córrego Dobrado, especialmente para uma família composta de mãe, filho, duas filhas e uma netinha que fugia dos parâmetros considerados normais quando comparada à raça humana. Os satélites estavam funcionando à carga total. Comunicados comuns ou repletos de emblemas pictóricos viajavam de norte a sul, de leste a oeste. Não raro se cruzavam no caminho gerando discórdias, desconfianças e, acima de tudo, inveja de um poderio supostamente maior que o outro. O Eldorado se encontrava na Vila. Mentes privilegiadas queriam se apossar do ouro nela contida. Umas, em prol da ciência pura, isenta de jactâncias. Outras, em prol da ciência marrom, repleta de dólares. Mais outras, em prol de se proteger ao Deus glorioso e verdadeiro. Ainda outras, de oportunizar algum negócio da China. E tantas e tantas mais. Vila do Córrego Dobrado era uma mina de ouro, uma mina de ouro onde não existia ouro, mas crenças novas e genes diferenciados. Mas uma mina de crenças novas e genes diferenciados para poucos. As mentes privilegiadas eram poderosas, tinham o poder de comandar o satélite apontado para o olho direito da Maria direcionando-o para a mancha na perna esquerda do João. Detectavam uma agulha num palheiro de documentos exclusos, mas não conseguiam descobrir a flatulência dos Deuses. Que os Deuses continuassem no céu estrelado, pois, para os Deuses, todo dia era dia de céu estrelado. Quem não tem nave espacial, que se contentasse com um helicóptero. Assim ruminavam as mentes privilegiadas. Se não temos os Deuses, teremos os seus adeptos, vangloriavam-se os neurônios pervertidos pela solicitude do bem estar comum aos próprios. Eis a questão.
Não havia mais a necessidade da adoção simulada. Por isso toda a Vila se congratulou com a gestação de Sofia. Aos quinze anos de idade, quase dezesseis, pariu um novo Deus. Este veio ao mundo em dezembro de 1980, exatamente um ano após Asued, recebendo o nome do Deus Sued, apesar do sêmen ter sido de Etnaduja. Para eles, os Deuses, isso pouco importava. O que importava era a nova prole, a perpetuação da raça. Zé Limão e seus asseclas correram por todas as ruas, por todos os becos, por todos os comércios, por todas as casas, para levar a notícia de que o novo filho de Sued estava entre eles. A casa de Mabélia estava em polvorosa. Toda a Vila rezava em nome do novo pazoliano. Para os visitantes de qualquer natureza, era apenas mais uma criança que viera ao mundo. Assim, seguia feliz e dentro do programado a vida salutar de Vila do Córrego Dobrado.
Numa sala refrigerada, homens sisudos traçavam planos. Sobre uma mesa, uma maquete da Vila. Algumas línguas estrangeiras se misturavam com o português nativo. Na maquete, destacava-se a casa dos Mantiqueira com detalhes que talvez nem os proprietários tivessem noção. Discutiam táticas, procedimentos e ações sem risco de erros. Os militares americanos haviam desenvolvido uma rede de computadores que agilizava o contato entre os maiores interessados, eles mesmos¹. Mas, vez ou outra, os idiomas se confundiam, mas terminavam por se entenderem. Havia propósitos gêmeos, trigêmeos e até quadrigêmeos. Os interesses eram mútuos, mas cada um queria mais para si. Era preciso, mais do que nunca, e mais rápido do que nunca, se apoderarem das crenças novas e dos genes diferenciados de Vila do Córrego Dobrado. Afinal de contas, eles eram seres humanos com divisas nos ombros, portanto, os proprietários do planeta Terra. Não permitiriam, em hipótese alguma, que deuses chinfrins vindos sabem-se lá de onde se apoderassem de suas honras homéricas. Quem eram eles para se postarem por cima do pai de Jesus Cristo. E como seria benéfico se tivessem um colar como aquele. Ah se eles descobrissem a existência do Osorgalim! Mas quem ficaria com o colar? Os idiomas não entraram num acordo com relação a este pequeno detalhe. Deixaram para decidir quando estivessem com o objeto em mãos. E quanto aos genes diferenciados? Ah, poderiam, em conjunto como agora, estudá-los detalhadamente. Quem sabe poderiam aproveitá-los para fortalecer a eles, os humanos? Oh, dúvidas! Por que tais dúvidas assim faziam tremer as divisas de cada um daqueles humanos tão especiais para o planeta Terra? Dúvidas à parte, puseram mãos à obra. A ralé humana sem divisas que se danasse!
Sexta-feira, 23 de agosto de 1981, o astro rei despejava sobre tudo e todos seus raios divinos. No dia anterior, foi noticiada a morte do cineasta Glauber Rocha, que nada significou para Vila do Córrego Dobrado. A rotina de sempre se estabelecia em cada habitante. O comércio tilintava as caixas registradoras, ora muito aqui, ora pouco ali. Dos de fora, familiares e amigos se acobertavam nas sutilezas da nova era, enquanto fornecedores ou visitantes por qualquer outro motivo se encantavam com a sutileza cerimonial do povo nativo. Por causa da sutileza cerimonial daquele povo, a cidade se viu crescida em seres humanos perambulando por seus logradouros públicos. Fato que despertava a curiosidade dos meios de comunicação. Aqueles repórteres da Rádio Clube de Pico da Glória já estavam ensaiando uma nova visita. Não como conspiradores em prol de manchetes compulsivas e isentas de veracidade. Agora, o motivo era outro. Como novos adeptos da Era Pazoliana, necessário seria borrifar água na fogueira das vaidades dos homens com divisas. Parceria com a principal rádio da capital? Sim, faltavam os ajustes finais. Notícias reais, mas com subterfúgios, precisariam se espalhar pelo país. Depois pelo planeta. Seria um sensacionalismo às avessas, um sensacionalismo que os protegesse de olhos malignos e corações sem sentimentos. Sim, breve estariam na Vila, pois assim os Deuses, através de Januário, ordenaram.
A tarde na Vila se esvaia como o tempo de jogo dos enxadristas, sincronizado com o giro cronometrado da bola azul, o glorioso planeta Terra. Entre prós e contras, entre pão de queijo e cookie, entre feijoada e estrogonofe, entre cruzeiro e dólar, havia duas frentes de batalhas: a dos Deuses, que queriam se estabelecer, e a dos homens de divisas, que queriam impedir. Era um jogo de interesses promíscuos onde a astúcia poderia se prevalecer sobre a tecnologia. Esta, a turma do céu estrelado tinha para dar e vender. Quanto à turma que estava em baixo, só restava a astúcia. Estes últimos estavam assando num forno de macroondas uma tática, considerada por eles, infalível. Sobre a maquete primorosa da Vila, os adereços finais da fantasia de rejeição estavam por um nó. Enquanto aqueles não davam o nó, Januário preparava a sua laçada.
Naquela tarde, que por pouco deixaria de ser tarde, fios estavam sendo entrelaçados na casa de Mabélia. Todos os produtores rurais da Vila lá se encontravam. Um assunto lácteo tomou conta da reunião.
– É fantástico – ponderou um.
– Genial – destacou outro.
– Esmiúce a coisa – solicitou um terceiro a Januário.
– Como já está mais do que evidente a todos vocês, Sued prioriza a paz. Fez-nos seus representantes justamente para administrarmos o projeto. Poderia Ele, num estalar de dedos, dominar a tudo e a todos. Mas isso causaria transtornos e prejuízos físicos. Por isso optou pela serenidade e por transferir a nós, seus adeptos, a oportunidade de estabelecer os seus desígnios aqui na Terra. Sued considerou como uma boa ideia a Vila ter produtos lácteos industrializados que se espalhassem pela região e, aos poucos, pelo país para, muito em breve, por todo o planeta. Considerou Ele que assim poderíamos alavancar com mais rapidez o projeto. Os produtos serão aqueles tradicionais de qualquer usina de leite: leite de caixinha, queijos diversos, manteiga, iogurte e por aí vai. A marca já foi registrada e terá o seu nome, Sued. Então, teremos o leite Sued, o queijo Sued, a manteiga Sued, o iogurte Sued e etc. A empresa já está juridicamente legalizada com o nome de COLEVICODO – Cooperativa de Leite de Vila do Córrego Dobrado Ltda. Evidente, há anjos de Sued no solo que providenciaram tudo isso. Dentro de dois dias, as máquinas e os engenheiros responsáveis estarão chegando para iniciarem as obras. Não se preocupem com isso. Tudo foi programado pelos Deuses para que, dentro de oito meses, estejamos com a primeira partida dos produtos no comércio. Etnaduja estará aqui amanhã para acompanhar conosco o programa de sincronização de cio em todas as vacas, que vão ser inseminadas para gerarem crias altamente produtivas. Como responsável técnico da cooperativa, estará o Doutor Raimundo, que todos já conhecem. Alguma dúvida?
– Quanto aos preparativos, sem dúvidas. O que eu não entendi direito foi a tal molécula – perguntou um deles.
– O que importa é a função da molécula, mas vou tentar explicar de acordo com o que eu entendi. Sued me disse que o nome da molécula é Ranimod. Esta molécula nos será fornecida por Ele para ser incorporada aos nossos produtos. Ela não pode ser detectada por nenhum exame em nenhum laboratório o mais sofisticado que seja. A tal molécula, quando ingerida com o produto, vai agir no sistema nervoso da pessoa. A Ranimod vai agir nos impulsos nervosos do cérebro, nos neurônios e nas ligações entre eles, chamadas sinapses. São dois os tipos de impulsos nervosos: os elétricos e os químicos. Os eventos elétricos propagam o sinal dentro de um neurônio, e os eventos químicos transmitem o sinal de um neurônio a outro ou para uma célula muscular. Os neurônios liberam substâncias químicas chamadas neurotransmissores. Estes neurotransmissores possibilitam que os impulsos nervosos de uma célula influenciem os impulsos nervosos de outro, permitindo assim que as células do cérebro “conversem entre si”, falando em palavras populares². Pois bem, a Ranimod vai agir justamente aí, interferindo nas mensagens que os neurônios enviam ao cérebro. Ela vai, digamos assim, sabotar as mensagens e induzir no indivíduo uma vontade que está nela, que é a adoração a Sued e seus desígnios. É por aí, foi só isso que deu para entender. O que interessa realmente para nós é que, quem se alimentar com nossos produtos, será convertido.
– Qual a quantidade o indivíduo terá que comer para ser convertido?
– Não será com uma simples fatia de queijo, um potinho de iogurte ou um copo de leite. Se o indivíduo tiver por hábito se alimentar com um dos nossos produtos todos os dias, em uma semana, no máximo, já estará convertido. Se comer mais de um todos os dias, não levará mais de dois a três dias. É mais ou menos por aí. O que importa é que os produtos terão qualidade excepcional para rapidamente serem espalhados para o mundo.
– Mas, Januário, se é assim, isto é, espalhar os produtos para o mundo, não teremos leite aqui na Vila o suficiente, né?
– Evidente que não. Na primeira etapa, com o aprimoramento genético do nosso gado, daremos conta do recado. Depois, de acordo com a demanda, estaremos recebendo leite de um monte de lugar. Seremos a maior cooperativa de leite do Brasil. O negócio agora é esperar a vinda amanhã de Etnaduja para maiores esclarecimentos.
* 1: Na década de 1960, em plena Guerra Fria, o governo americano temia um ataque russo às suas bases militares, tornando os EUA vulneráveis. Preocupados, idealizaram um modelo de troca e armazenamento de informações. Para isso criou-se uma rede de computadores denominada ARPANET. Era um sistema de transmissão de dados em rede de uso exclusivo dos militares. Em 1969 ocorreu a transmissão do que pode ser considerado o primeiro e-mail da história. Como não houve o esperado ataque e os dois países entraram numa espécie de convivência pacífica, sem as devidas alfinetadas inócuas ao planeta, o governo dos EUA permitiu que universidades pudessem entrar no sistema. Isso gerou sobrecarga, dificultando a administração por parte da ARPANET. Dividiu-se, então, em 1980, o sistema em dois grupos, a MILNET, de uso dos militares, e a nova ARPANET, de uso dos civis.
* 2: Apesar de provocar a conversão do consumidor ao Deus Sued, a grande função desta molécula, desconhecida pelos Mantiqueira, era outra: esterilidade. Quem consumisse regularmente os produtos Sued não geraria filhos, e isto seria fundamental ao projeto.
* Texto: Eitel Teixeira Dannemann.
* Foto: Desenho e montagem de Eitel Teixeira Dannemann.