PAZOLIANA − CAPÍTULO 27: A PAZ SE ESPALHA

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“Um pedaço de pão comido em paz é melhor do que um banquete comido com ansiedade”. (Esopo − 620 a.C. – 564 a.C)

Fevereiro de 1982. Na madrugada do dia 8, passageiros e tripulantes de um Boeing 727/200 da VASP com rota Fortaleza-São Paulo viveram uma extraordinária experiência. Aproximadamente 150 pessoas do Voo 169 tiveram a oportunidade de avistar um OVNI por mais de uma hora, um objeto discoide, apresentando uma coloração alternadamente avermelhada, cor de abóbora e azulada, girando em torno de si, ionizando gases de nossa atmosfera. O OVNI se aproximou várias vezes da aeronave, afastando-se depois com uma velocidade incompreensível aos homens de divisas, que acompanhavam o fato querendo entender o porque. O comandante do voo chegou a enviar uma mensagem de boas vindas, mas não obteve resposta.

Enquanto os tripulantes e os passageiros do Voo 169 estavam extasiados com a experiência, esta, mais do que óbvio, arrancou um monte de cabelos dos homens de divisas, que já eram poucos. Sabiam eles que os Deuses estavam aglomerados lá em cima. Não sabiam eles porque estavam aglomerados lá em cima e não desciam. Por isso, quando somente uma de suas naves vinha, e nada faziam, os neurônios se entrelaçavam numa disputa acirrada com a fisiologia intestinal. E a vida seguia inconteste. A fábrica de laticínios da COLEVICODO estava funcionando a pleno vapor. Os produtos Sued já eram xodó em Pico da Glória e em uma considerável quantidade de municípios ao redor. Os efeitos já se faziam presentes em grande número de consumidores espalhados pelas diversas cidades, que começaram a glorificar o nome de Sued. Reuniões aconteciam em casas abastadas ou nas mais simples possíveis. Ainda não era o suficiente para provocar o caos nas inúmeras religiões existentes no planeta Terra, mas estas já estavam se preocupando com o possível rumo que a nova onda de crendice pudesse tomar. Também elas se reuniam entre si para deliberarem posturas a respeito. Militarmente falando, os homens de divisas usando as principais línguas continentais continuavam como que algemados. Os radares acompanhavam as movimentações das naves. O último aparecimento ao Boeing foi demais. Depois da destruição dos 20 caças, não ousaram mais ações daquele nível. Aliás, não havia praticamente nada a fazer, a não ser manter todas as bases em estado de alerta máximo. Adiantaria alguma coisa? Mas, mil vezes raios, pelas barbas do profeta, por que ficavam lá em cima e de vez em quando enviavam uma nave?

Era necessário entrar em contato com eles. Sim, contato de terceiro grau. Mas como? Para substituir o Projeto Apollo, que levou o homem à Lua, os americanos tinham desenvolvido um veículo espacial reutilizável para chegar ao espaço, denominado ônibus espacial e batizado de Columbia, uma tecnologia terráquea pífia frente à dos Deuses. Vários testes com um protótipo acoplado a um avião Boeing 747 próprio para voos a grande altitude foram realizados com sucesso. O primeiro voo oficial aconteceu em 12 de abril de 1981, com duração de dois dias. Naquela imensidão de negritude, não se achou um único Deus sequer. Voltaram desanimados. Mas a máquina mostrou-se confiável, apesar da sua aparência pesada e desajeitada e de problemas na reentrada da atmosfera. Com os entendimentos internacionais entre os homens de divisas, resolveu-se preparar aquela nave para uma segunda tentativa de contato sereno com os Deuses. Sim, não restava alternativa a não ser tentar um contato pessoal para rogar, com todas as forças possíveis, que eles não os destruíssem. Sim, ficariam todos de joelhos rezando ao Deus de cada um para que os alienígenas os atendessem.

Os técnicos responsáveis pela criação do Columbia fizeram crer aos parceiros que tinham absoluta confiança na funcionalidade da nave, principalmente após o primeiro voo. Após todas as explicações plausíveis, o grupo de homens de divisas internacionais deu o aval final, na certeza de que o ônibus espacial era a única alternativa para se chegar onde estavam os extraterrestres. Assim, o segundo voo se deu em 12 de novembro de 1981, também com duração de dois dias. Mais uma vez os Deuses não quiseram contato. Sem desanimarem, começaram os preparativos para uma terceira tentativa. Por que, afinal de contas por que, toda aquela imensidade de naves não queria contato?

Terça-feira, 09 de fevereiro. Manhã de sol radiante em Vila do Córrego Dobrado. O comércio já estava em pleno funcionamento. Padre Barbosa passeava pelo centro na tentativa de angariar simpatias. Poucos davam-lhe atenção. Quando ele comentava sobre a ausência de determinado fulano às missas, este lhe respondia que a preferência era ficar em casa louvando Sued, pois a sua igreja era o seu lar, o seu quarto. Esta informação causava furor em Bispo Ednando e uma verdadeira ojeriza ao Vaticano, visto o mesmo fenômeno estar se dando em outros lugares e se espalhando como piolho em cabeça de criança mal cuidada. A mesma ojeriza se dava com as demais religiões. Na mesma proporção que os produtos lácteos da cooperativa se espalhava, o número de adeptos à nova era crescia como pulgões em folha de couve. Jornais, revistas, rádio e televisão há muito noticiavam o crescimento da nova seita, como era chamada pelos incautos. Edis, prefeitos, deputados, senadores, governadores e o próprio presidente do país começaram a perceber, através das estatísticas policiais, que o índice de criminalidade em locais onde havia manifestações da tal seita estavam em queda progressiva. Era até assustador, positivamente, para os entendidos no assunto. As autoridades competentes puseram em ação uma infinidade de estudos nas devidas localidades. Polícias civis e militares trabalharam em conjunto em busca das estatísticas. A cada estudo ficava provada a incrível marcha à ré da criminalidade em todas as cidades e vilas em que havia, pelo menos, algum indivíduo que se dizia adepto do novo Deus.

O município de Pico da Glória virara notícia nacional por ter sido eleito naquele ano o menos violento de todo o país, sendo o distrito de Vila do Córrego Dobrado a primeira aglomeração urbana com criminalidade zero. Tal fato, é óbvio, chamou a atenção dos dráculas aproveitadores dos incautos indefesos. Os porões dos homens acobertados pelos votos dos incautos fervilhavam de imprecações sobre o modo como se aproveitariam desta bonança. Sim, eles tinham que trazer para si a responsabilidade da calmaria. Não importava se ninguém conseguia explicar o motivo de tanta serenidade. Se nem a polícia tinha a resposta, muito menos eles. Dane-se a causa, interessava unicamente a eles, os donos dos votos, o efeito. De uma forma ou de outra, eles tinham que agregar valor às suas respectivas responsabilidades como defensores do contribuinte. Não demorou muito para os menos e os mais votados se arvorarem em debates nas câmaras materialmente opulentas, mas espiritualmente nauseabundas. Tanto em Pico da Glória como em outros municípios o povo foi conclamado a participar ativamente das reuniões em que os edis seriam os personagens principais e a plateia bocó que os colocou lá teria como objetivo principal aplaudirem os heróis do novo tempo. Para Getúlio Peixoto, glorioso prefeito do município, a atitude dos vereadores não passava de arroubo em causa própria. Para os edis, a insatisfação do prefeito não passava de inveja deslavada aos dados estatísticos que surgiram positivos graças às ações deles. Este arranca-toco promíscuo entre as eternas autoridades políticas corrompidas do país, que nas palavras de Sued era um verdadeiro câncer que seria extirpado não através de bisturi, mas de genética, não estava sensibilizando o povaréu que tirava do bolso o minguado e suado dinheirinho para manter a safadeza daquela gente. Numa das reuniões, a polícia teve de intervir para acalmar os ânimos entre os votados e alguns que votaram, principalmente Januário, que já era conhecido por todos pelo fato de ser o presidente da COLEVICODO e que naquele dia estava em Pico da Glória em companhia de Mabélia e decidiu participar dos debates. O pazoliano resolveu discordar peremptoriamente do presidente da câmara, Raul Dias, quando este disse, na maior cara de pau, que a casa foi a principal responsável pela queda da criminalidade na sede do município e, principalmente, na Vila do Córrego Dobrado.

– Sim, meu prezado – disse Raul Dias passando a palavra a Januário que havia erguido o braço direito.

– O senhor afirma com muita convicção que a câmara dos vereadores foi a principal responsável por baixar os índices de criminalidade deste município. Baseado em que o senhor faz tão disparatada afirmação?

– Antes de qualquer coisa, quero agradecer a sua presença, Januário, e a de sua mãe. É uma honra para a Câmara dos Vereadores de Pico da Glória a visita de vocês a esta humilde casa. Não posso deixar de parabenizá-lo, em nome de todos os vereadores e do povo, pelo excelente trabalho à frente da cooperativa de laticínios e…

– Por favor, senhor Raul, atente-se a responder à minha pergunta.

– Bem, todos sabem como a Câmara promove os seus trabalhos. Aqui nesta casa nos reunimos para criar leis que atentem para o desenvolvimento da sede e de todos os distritos. Nosso objetivo, único objetivo, é representar com dignidade aqueles que nos depositaram confiança e que…

– Por favor, senhor Raul Dias, nobre presidente desta casa, atente-se a responder à minha pergunta sem subterfúgios.

– Não se trata de subterfúgios, pois o que esta casa representa para o povo não pode ser taxado de subterfúgio. Portanto, prezado Januário, não concordo com esta afirmação, que até considero deselegante vindo de alguém que ocupa um cargo como o seu.

– Se é deselegante ou não deselegante, pouco importa, o que me interessa é ouvir a resposta à minha pergunta.

– Bem, todos sabemos o quanto temos trabalhado para inibir a violência nesta cidade e nos distritos. Regularmente nos reunimos com o prefeito e as autoridades policiais para traçarmos ações inibitórias. Visto que…

– Diga apenas uma, unicamente uma ação de vocês que propiciou a diminuição da criminalidade deste município.

– Bem, posso citar várias e além do mais…

– Não preciso de várias. Quero apenas uma, unicamente uma só. Diga logo, qual foi.

– Bem, ultimamente temos conversado muito sobre…

– Conversas e somente conversas não levam ninguém a lugar algum. Vamos lá, nobre vereador, defensor do dinheiro público e dos oprimidos, cite uma só ação.

– Acredito que o prezado Januário não esteja por dentro de nossos trabalhos, pois praticamente não o vejo aqui.

– Tenho mais o que fazer e não posso perder meu tempo com baboseiras. Afinal de contas, pelas barbas do profeta, você vai ou não vai me citar a tal ação?

– Como eu disse, posso citar várias ações que foram estabelecidas aqui, sabiamente sancionadas pelo prefeito, que foram salutares à população num geral.

– Ora, tenha a santa paciência com a sua lengalenga de enganar trouxas. Eu…

– Olha aqui, senhor Januário, já está partindo para o acinte e…

Havia umas trinta pessoas no auditório da câmara, que se levantaram e em conjunto dirigiram suas vozes para Raul Dias: – vá, diga, diga, diga, diga… Durante alguns minutos reinou uma balbúrdia tremenda, até que o pazoliano ergueu o braço. Incontinenti, todos se calaram. Os vereadores olharam uns para os outros como que procurando respostas para o que estava acontecendo. Estavam atônitos. Raul Dias, então, tomou a palavra.

– Povo de Pico da Glória aqui presente. A democracia é um dos grandes benefícios da humanidade. Nos primórdios, quando surgida na Grécia Antiga, ela era muito restrita, pois mulheres, estrangeiros e escravos não podiam…

O glorioso Raul Dias não pôde continuar a sua fala. Januário ergueu novamente o braço e todos os presentes voltaram a gritar pedindo ao vereador que citasse uma única ação da casa que tivesse contribuído para a diminuição do índice de criminalidade. Nova balbúrdia e novo braço levantado do pazoliano. Silêncio geral. Ele falou:

– Como percebe, nobre edil, o povo ainda está esperando o seu pronunciamento sobre a tal ação. Como tenho certeza absoluta que isso jamais vai acontecer, vou lhe dizer o motivo que propiciou esta calmaria no município. A calmaria tem nome, e se chama Sued. Não caiamos na esparrela de que chegou o novo messias, o prometido e outras baboseiras mais. Sued é o nosso novo Deus. Ele, somente ele, é o responsável pela serenidade que reina atualmente neste e outros municípios, principalmente nossos vizinhos. A criminalidade praticamente chegou a zero nestes locais onde a mão de Sued se faz presente simplesmente porque ele representa a paz. Qualquer indivíduo que se converte em Sued passa a ter como sentimento mais expressivo a paz. Não busquem explicações para o fato em mirabolantes estudos onde contam ações policiais e de autoridades mais efetivas. As ações repressivas da polícia continuam as mesmas, para não dizer que estão menos eficientes, justamente porque o grau de corrupção da máquina administrativa é tamanho que assusta ao maior dos incrédulos. A verdade, a grande verdade, é que o povo está assimilando Sued. A partir do momento em que cada indivíduo assimila Sued, este indivíduo se arma da paz, e não da pólvora. Esta se afasta, é renegada, e o convertido se arma de um Lírio da Paz para oferecer a seu oponente. Nossa arma de ataque, a maior e mais poderosa de todas, tem o nome de paz. Sabemos nós que esta casa não conhece o real significado de paz.

– Não conhece o real significado de paz? O que o senhor quis dizer com isso?

– Para bom entendedor, um pingo é letra.

– Por um acaso o senhor está insinuando que nesta Casa não há paz?

– Não estou insinuando, estou afirmando.

– Olha aqui, meu senhor…

– Olhar o quê?

O tempo fechou com a revolta dos colegas de Raul Dias, que se sentiram atacados no moral. Foi quando houve a necessidade da intervenção da polícia, que rapidamente serenou os ânimos. Com os ânimos serenados, Januário e Dona Mabélia consideraram que era o momento de voltarem a Vila do Córrego Dobrado. Estavam na calçada em frente à Câmara quando toparam com o Bispo Ednando. Educadamente, o eclesiástico cumprimentou os dois e tentou iniciar um diálogo. Neste exato momento, a bolinha do colar de Januário emitiu um alerta. Ele fechou os olhos, segurou a mão da mãe e ficou estático. Foram menos de cinco segundos. Abriu os olhos, se despediu do bispo e de mãos dadas com Mabélia se dirigiu ao Maverick estacionado a poucos metros. Bispo Ednando tentou de todas as formas conversar com Januário, em vão. O veículo arrancou e tomou o rumo da Vila. O bispo ficou a matutar sobre aquele maldito colar, para ele, é óbvio. Mabélia e Januário chegaram em casa e já estava no alpendre o homem prateado a esperá-los.

* Texto: Eitel Teixeira Dannemann.

* Foto: Desenho e montagem de Eitel Teixeira Dannemann.

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