Poderia ter acontecido em 710 a.C. Ou em 240 d.C. Poderia ter acontecido em 1720, ou ainda em 1840. Quem sabe foi em 1999, ou não, vai ainda acontecer em 2055. Poderia, mas a grande verdade é que o fato começou em 1974. Afinal, não há data determinada para recebermos visitas do além, seja lá quem for e qual for este além. Mas, será que foi mesmo em 1974? Bem, se realmente foi mesmo em 1974, e se você for um terráqueo, quando chegar ao final desta história descobrirá que, pela lógica, não poderia estar neste exato momento lendo estas palavras. Deixa estar, são os enigmas do Universo com os seus deuses e/ou as suas lógicas matemáticas.
“Tenho a impressão de ter sido uma criança brincando à beira-mar, divertindo-me em descobrir uma pedrinha mais lisa ou uma concha mais bonita que as outras, enquanto o imenso oceano da verdade continua misterioso diante dos meus olhos”. (Isaac Newton -1643-1727)
Era um sábado de verão, 02 de março de 1974, horas avançadas da noite, a Lua e as estrelas estavam encobertas por nuvens carregadas. A chuva fina e constante, com períodos de pancadas fortes, caia teimosamente há três dias. A região montanhosa já apresentava indícios de saturação. Alguns deslizamentos se mostravam aparentes, prejudicando em demasia a cavalgada de Arnaldo nos trechos sinuosos de aclives e declives. Confiando no instinto apurado do animal, um garanhão de doze anos sem raça definida e de pelagem castanha, que tantas vezes havia percorrido aquele amontoado de morros, a dupla seguia cautelosa pelo trecho íngreme. O céu escuro era cortado incessantemente por relâmpagos e seus deslumbrantes clarões. Num deles, o cavaleiro aproveitou para conferir o relógio de pulso. Os ponteiros marcavam 22h03m. Os estrondos eram assustadores, momentos em que a montaria se assustava. Os olhos de Arnaldo não enxergavam além de dois metros à frente, mas confiava na acuidade visual do parceiro, muito mais preparada pela natureza que a dele.
A Vila já se aproximava, distante pouco menos de três quilômetros. O cavalo arfava e empinava sobre as patas traseiras a cada estrondo retumbante. O último clarão foi diferente. Arnaldo, num primeiro momento, não se atentou. Mas logo percebeu a esquisitice daquele relâmpago. Tão esquisito que não desceu célere no costumeiro ziguezague ramificado. Ele vinha lento, em linha reta. Curioso, estancou o passo da montaria. A chuva aumentara em intensidade. Mesmo com um capote a lhe cobrir cabeça e corpo, já estava todo molhado. O aguaceiro que caia diretamente nos olhos lhe prejudicava acompanhar a trajetória da luz. Ele fixou firmemente o olhar naquele risco luminoso no céu. Assustou-se quando percebeu que vinha em sua direção. No início do risco luminoso percebeu uma espécie de bola de fogo, que crescia a cada segundo. O cavalo bufou e saiu em disparada pela escuridão. Folhas e galhos batiam no rosto de Arnaldo. O espaço em sua volta se iluminou, um leve zunido se fez presente. O cavalo em disparada tentava de todas as formas se desviar dos troncos das árvores e Arnaldo não conseguia freá-lo. A luminosidade se intensificou, o suficiente para que percebesse um riacho à frente. Do jeito que chegou o cavalo se precipitou sobre o areal da margem. Não conseguiu se sustentar ao tocar o solo e cambaleou, caindo os dois n’água.
Enquanto Arnaldo se levantava, o cavalo já dava seus pinotes no outro lado do riacho e sumiu na escuridão. Arnaldo se viu só, olhando para aquela bola de fogo. Foi quando percebeu que não era bem uma bola de fogo, e sim um objeto esférico de luminosidade esplendorosa vindo em sua direção. A única reação que teve foi tapar os olhos. O zunido se fez ouvir a uns 300 metros de onde estava. Uma claridade ofuscante parecia tocar as nuvens. Pasmo, ele contemplou aquele espetáculo. Ajoelhou-se e ficou uma eternidade apreciando aquela luminosidade, até que seu ânimo voltou. Levantou-se e, passo a passo, sem se preocupar se havia perigo ou não, foi de encontro à luz.
A cavalo já era muito difícil transitar por aquelas paragens montanhosas durante o dia. Imagine numa noite escura como breu, a pé e com o solo todo encharcado. A cada cinco passos Arnaldo escorregava e se lambuzava na lama. Já sem nenhum sentido de direção da Vila, alguma coisa o forçava a se aproximar daquele clarão. Entre caminhando e rastejando, percebeu que se aproximava da claridade. De repente, a intensidade da luz diminuiu juntamente com o zunido. Mas ela ainda era visível, não se projetando, porém, nem acima das copas das pequenas árvores. Pouco mais de cem metros e Arnaldo estaria no local, um pequeno monte de vegetação rasteira, formando uma diminuta clareira rodeada de imensas árvores. Cautelosamente, arfando, o cavaleiro se aproximou. Pouco mais de cinquenta metros o separava da luz. Com os olhos fixos na claridade, Arnaldo mal reparava por onde pisava. Não percebeu uma enorme ribanceira ao seu lado esquerdo. Já estava a menos de vinte metros do local quando pisou em falso. Seu pé esquerdo deslizou no início da ribanceira. Tentou de todas as formas se agarrar a arbustos, árvores e respectivos galhos. Não conseguiu. Seu corpo se precipitou, foi descendo de nádegas, protegendo o rosto da vegetação até que se chocou com o enorme tronco de um Ipê roxo. A pancada foi forte na perna esquerda e na cabeça.
Num rompante, abriu os olhos. Tentou se levantar. Mas todo o corpo lhe doía. Tentou três vezes, até que desistiu e ficou deitado, esperando que a dor se amainasse. A chuva diminuíra de intensidade, mas os relâmpagos continuavam assustadores. Misturados ao ruído ameno das águas caindo, seus ouvidos perceberam a volta do zunido. O clarão também voltou e iluminou a área ao seu redor. Poucos segundos depois vislumbrou um risco no céu, agora em sentido contrário. A bola iluminada subiu numa velocidade impressionante, deixando para trás um lindo caminho de luz, até sumir por trás das nuvens escuras. Durante pelo menos uns trinta segundos uma forte luz clareou o interior das nuvens, até que se apagou definitivamente. Tudo era escuridão outra vez. Como uma trégua agradável, fecharam-se as comportas do céu e a chuva parou juntamente com os relâmpagos. Fez mais uma tentativa de se levantar, em vão. Conseguiu ficar sentado encostado ao Ipê. Ao longe, viu uma pequena luz tremulante. Seria vagalume? Não, pois a luz não piscava e era clara como lâmpada fluorescente. A luz foi se intensificando, como se estivesse se aproximando dele. Ouviu barulho de passos, de galhos sendo quebrados. Percebeu outra luz, depois outra. Eram agora três focos de luz, cada vez mais próximos. Inquietou-se. Mais uma vez tentou se levantar. Sentiu um inchaço na cabeça que lhe doía muito. A perna esquerda, porém, lhe doía mais ainda. Levou a mão e esta sentiu a ponta do osso da tíbia. Era fratura exposta. As luzes já estavam quase em cima dele. Sem poder fazer nada, permaneceu na posição em que estava, com as costas no tronco do Ipê, a esperar.
Aliás, nada mais ele esperava. Apenas fixou o olhar naquelas luzes que se dirigiam à sua face. Eram tão ofuscantes que lhe obrigaram a fechar os olhos. De olhos fechados, batimentos cardíacos perto dos duzentos, sentiu a presença de algo ou alguma coisa. Não ousou abrir os olhos. Mesmo cerrados, as vistas lhe doíam com as luzes fortes. Então ouviu vozes de três pessoas conversando. Concentrou-se e atentou bem no que ouvia, mas não conseguiu entender o idioma que usavam. Eram palavras totalmente estranhas, incompreensíveis. Apesar de não entender absolutamente nada do que aquelas criaturas falavam, havia uma impressionante serenidade nas vozes. Não havia nelas qualquer indício de agressividade. Esta particularidade lhe tranquilizou o suficiente para não ter um ataque de nervos. Com a cabeça abaixada, queixo escorado no tórax, ficou ouvindo o diálogo com uma extasiante expectativa sobre o que viria depois, mas sem atinar para nada do que ouvia.
– Eis o terráqueo, parece que se acalmou. Será que poderemos aproveitá-lo, comandante?
– Acredito que sim. O Aterex¹ não costuma se enganar e ele nos mostrou que este humano possui as características psicológicas que precisamos. Reparem nesta tíbia, está bem danificada.
– De acordo com o Rotinom² seu metabolismo diminuiu acentuadamente. Está desperto, mas em falsa posição de inércia. Está atento em nossa conversa esperando qual será o nosso procedimento para com ele. Excetuando a fratura exposta, não há mais nenhuma lesão preocupante. Tem uma constituição física ótima.
– Trouxeram o Osorgalim3?
– Sim, comandante.
– Recuperem agora essa perna. Pelo visto, será necessário usar o Etnades4.
– Sim, comandante, a fratura é total e houve dilaceração de tecidos.
– Algum dano cerebral?
– Apenas um pequeno coágulo.
– Então, acabem logo com isso.
Arnaldo permanecia imóvel. Através das pálpebras cerradas percebeu a luminosidade se intensificar. Fez-se um silêncio tremendo. Um segundo, dois, três minutos, dez horas? Impossível determinar. Era sufocante aquele silêncio. Será o que aquilo ou aquelas coisas estavam fazendo? Lutou contra a vontade de abrir os olhos. Apesar de lutar intensamente para se manter calmo, todo o corpo tremia em pequenos espasmos, até que sentiu alguma coisa gelada na têmpora direita, como se um pequeno objeto lhe roçasse a pele com suavidade. Imediatamente sentiu um tremendo bem estar por todo o corpo. A sensação de prazer era tamanha que resolveu abrir os olhos. Mas, estranhamente, não conseguiu abrir os olhos. Mesmo assim, não se exasperou. Sentia-se pleno, esfuziante, feliz. Não soube delimitar o tempo transcorrido. De repente, sentiu outra vez um desejo imediato de abrir os olhos. Arregalou-os e se deparou com três seres em pé bem à sua frente. Com a luminosidade, suas roupas brilhavam como metal. Estendeu os braços com as mãos espalmadas, como a pedir que não lhe fizessem mal. Uma mão macia e sedosa se encostou à sua. Sentiu como que um choque tremendo, tão intenso que se pôs de pé. A luminosidade era tal que ele enxergava uns cinquenta metros ao redor. O primeiro instinto foi olhar para a perna esquerda. Não viu o osso despontando. O que havia acontecido com a fratura exposta? Olhou para um lado e viu seu garanhão amarrado a uma árvore. O animal tinha disparado pela mata, como teria surgido ali? Uma segunda mão lhe pousou no ombro direito. Ao invés de choque, sentiu uma serenidade impressionante se apoderar de seu corpo. Sentia-se como uma criança inocente amparada por três bondosos adultos. Um dos homens luminosos alçou-lhe ao pescoço um lindo colar metálico de elos diminutos e com um pingente redondo, do tamanho e parecido com uma bola de gude tradicional. Pegou sua mão direita e o levou até o animal. Por volta das cinco horas da manhã, com uma claridade tênue já se apresentando no longínquo horizonte, Arnaldo se pôs em cima do garanhão, puxou a rédea para o lado esquerdo e partiu rumo à Vila, sem ouvir as últimas palavras dos homens prateados.
– Dentro de sete dias terráqueos, convoque-o – ordenou o comandante.
– Comandante, contato da base – disse um dos dois comandados. Houve uma reação com o filho do terráqueo. Suspeita de ondas gamma, comandante, ondas gamma5.
– Ondas gamma, será possível? Se for, incrível a ligação neuro-telepática entre pai e filho. Confirmem este caso. Etnaduja, depois dê uma chegada lá e restabeleça a condição fisiológica do filho deste humano. Vá, por enquanto, em fase Arbmunep6. Mais alguma coisa?
– Tudo feito, comandante.
– Voltemos para a nave.
* 1 – Programa de computador do painel de controle de naves espaciais. Ele emite radiações não conhecidas e não detectadas pelos humanos que atingem uma distância pouco acima de 1000 km. Estas radiações são direcionadas a pessoas, objetos, formações geográficas ou o que for de interesse de estudo. O programa configura o perfil físico-químico-biológico do objeto estudado formatando-o em seis dimensões. Com este aparelho, lá do espaço o usuário, em poucos segundos, tem em mãos o molde e o que representa o objeto estudado.
* 2 – Instrumento médico portátil, 15 cm x 10 cm, que mede, controla e, se preciso for, estabelece a normalidade do metabolismo orgânico. Ele detecta em questão de segundos as deficiências agudas de nutrientes (minerais, vitaminas e aminoácidos) e disfunções em qualquer órgão do corpo. O Médico desliza suavemente o aparelho por todo o corpo do paciente. Sensores fazem a leitura e apresentam os resultados num pequeno visor. Com isso, o diagnóstico é feito quase que instantaneamente.
* 3 – Há duas versões deste aparelho médico, o portátil e o de grandes dimensões. Independente do tamanho, as funções são as mesmas. Quando há uma solução de continuidade, quer dizer, um corte agudo em qualquer tipo de tecido, ou traumas violentos como dilacerações ou rompimento de órgãos, chegando a fonte do aparelho bem próximo da lesão, radiações especiais são ejetadas na área afetada. Estas radiações fazem com que o organismo desloque para o ferimento todos os elementos necessários para restabelecê-lo, principalmente plaquetas. Este deslocamento provoca divisões extraordinariamente aceleradas nas células e recomposição de vasos sanguíneos e ramificações nervosas seccionados. O resultado é uma cicatrização do corte ou recomposição do órgão em questão de um a trinta minutos, dependendo da extensão do mesmo. Lesões simples, como pequenos ferimentos na pele, não exigem sedação, ao contrário de lesões consideradas de grande porte, como fraturas expostas e rompimento de órgãos. Neste caso, o paciente é sedado, pois a rápida restituição de tecidos provoca muita dor. O aparelho não é infalível, isto é, há situações em que as lesões são tão intensas, com comprometimento cerebral, que o organismo não consegue responder aos estímulos das radiações.
* 4 – Aparelho médico portátil com polos ativo e inativo, 8 cm x 6 cm, para sedação. Encostado à uma das têmporas do paciente na posição inativo, emite uma radiação elétrica. Em primeiro lugar a radiação elétrica age sobre a musculatura estriada, paralisando momentaneamente os miócitos (células musculares). Nenhum órgão vital é afetado. Logo depois interrompe a nocicepção (percepção da dor), ao agir nas sinapses nervosas. O tempo de sedação é determinado pela necessidade da ação curativa. Eliminada a afecção, o aparelho novamente é encostado na têmpora do paciente, desta vez na posição ativo. Imediatamente, todas as funções orgânicas se restabelecem e o paciente volta à normalidade como se nada tivesse acontecido.
* 5 – Ondas cerebrais velozes e de alta freqüência (20-60 Hz), são as responsáveis por momentos de alta criatividade e alta concentração. Alguns estudos afirmam estarem ligadas a transmissões neuro-telepáticas.
* 6 – É uma tecnologia que permite ao indivíduo ser notado num ambiente somente àqueles que lhe interessam. Um pequeno aparelho, 4 cm x 4 cm, acoplado à vestimenta, cria um campo magnético em volta do corpo tornando-o invisível. De acordo com a conveniência do usuário, quando ele quiser ser visto em sua integridade física basta acionar o mecanismo próprio e apontar o aparelho para o alvo.
* Texto: Eitel Teixeira Dannemann.
* Foto: Desenho e montagem de Eitel Teixeira Dannemann.