“Não há fatos eternos, como não há verdades absolutas”. (Friedrich Wilhelm Nietzsche −1844-1900)
Manhã de um novo dia, 4 de março de 1974, segunda-feira. Os raios de sol lutavam arduamente para iluminar a Vila do Córrego Dobrado. Nuvens espessas se formavam prenunciando mais chuva. Do relógio da Matriz soaram sete badaladas. Entremeadas à forte ventania que se iniciava, várias pessoas em seus afazeres tradicionais. Falavam-se e o assunto não podia deixar de ser o aviso de Deus anunciado pelo Padre Alaor. Os minutos correram céleres. Quase nove horas, o pequeno comércio já a plenos vapores e eis que Zé Limão havia acordado de sua beberagem. Chegou à padaria do Seu Bartolomeu na praça principal, e foi logo puxando papo:
– Seu Bartô, sai o cafezinho de praxe?
– Zé Limão, tenho um monte de coisa pra entregar, que tal?
– Pô, Seu Bartô, o senhor sabe muito bem que tenho reumatismo.
– Que reumatismo coisa nenhuma, o nome é alcoolismo.
– Vai logo, seu Bartô, solta aquele pãozinho com manteiga, vai, pois estou com as tripas grossas já comendo as finas de tanta fome.
– Desta vez vai falhar.
– Por favor, Seu Bar…
Seu Bartolomeu não atentou para a última fala do bêbado, pois naquele exato momento chegava à Vila o carro de reportagens da rádio de Pico da Glória com dois repórteres. Em questão de segundos a notícia se espalhou. E na porta da padaria estava presente um enorme ajuntamento de pessoas. Todos queriam falar ao mesmo tempo e os repórteres não conseguiam anotar os dados a contento. Um deles subiu no capô do carro da reportagem e berrou:
– Gente, por favor, silêncio.
Por incrível que pareça, houve silêncio. Aproveitando a oportunidade, o repórter anunciou que iria fazer umas perguntas. Solicitou aos presentes para se pronunciarem somente quando solicitados. Percebendo a massa humana tranquila, desceu do capô e tentou iniciar o seu propósito. Na primeira pergunta alguns responderam e logo a esculhambação foi geral novamente. Todos falavam ao mesmo tempo e a zoeira parecia chegar a Pico da Glória. Outra vez o repórter subiu no capô e gritou silêncio. Houve silêncio. Lá em cima ficou por uns longos cinco minutos. O silêncio era geral, tanto que foi um susto quando o relógio da Matriz soou o primeiro badalo das nove vezes. Como o silêncio continuava, imaginou que agora ia. Desceu, apontou o microfone para o primeiro à sua frente e tascou a pergunta. Mais algumas respostas e depois foi igual a explosão de uma bomba, tamanha a balbúrdia. Balbúrdia esta que chegou aos ouvidos do Padre Alaor. Este veio correndo com a ideia de que alguma tragédia estava acontecendo na praça. Quando percebeu o tumulto e viu o carro da reportagem, se preocupou. Lembrou-se das palavras do bispo. Teve um tino de consciência e foi rapidamente ao encontro dos repórteres. Teve certa dificuldade para chegar a eles, mas conseguiu convencê-los a conversarem na Matriz. Os dois se entreolharam desconfiados, mas concordaram. O povo não aceitou de primeira mão, mas a bronca do padre os calou. E calados, ficaram ao redor da igreja. Trancados em seu interior, Padre Alaor pôde conversar tranquilamente com os representantes da imprensa falada.
– Ufa, Padre, que loucura é essa? Antes de tudo, meu nome é Marcos e o do meu colega é Rogério. Somos da Rádio Clube de Pico da Glória e viemos aqui fazer uma reportagem sobre os acontecimentos misteriosos do clarão que se abateu sobre a Vila. O senhor é o Padre Alaor?
– Sou eu mesmo. O que vocês estão querendo saber?
– Padre, as notícias que chegaram a Pico da Glória dizem que Deus esteve presente aqui.
– Nada mais houve que um fenômeno da natureza.
– As notícias dão conta que um rapaz conversou com Deus, que seu pai tem um estranho colar com uma bola que irradia uma luz azul e um estranho homem prateado. Não pode se tratar de simples fenômenos da natureza, concorda comigo?
– Não concordo definitivamente. O que houve aqui foi somente um fenômeno da natureza, nada mais do que isso. Quanto às manifestações do povo, trata-se apenas de crendices, meus jovens, crendices. Seria melhor dizer que nem são crendices, mas apenas alucinações.
– Como pode se tratar apenas de crendices ou alucinações? Ficamos sabendo que o senhor disse tratar-se de um aviso de Deus. Ora, prezado padre, venhamos e convenhamos, há uma incongruência em suas afirmativas.
– Prestem atenção, jovens, vocês sabem como é o povo de localidades pequenas como esta. São cristãos fervorosos e tudo o que acontece tem a ver com Deus. Há cinco dias chove muito, com relâmpagos assustadores e o córrego já está em vias de transbordar. Quer queira ou não, isso sempre assusta. De repente, houve um clarão diferente no céu que assustou até a mim, a energia se foi por poucos minutos. Depois, tudo voltou ao normal. É certo que algum fator meteorológico, muito provavelmente a queda de um meteoro, produziu o clarão e algum fator na atmosfera interferiu na rede elétrica. Acredito que um técnico entendido no assunto vai confirmar brevemente esta queda de meteoro.
– Mas, Padre, se o senhor afirma que muito provavelmente foi a queda de um meteoro, por que relacionou o fenômeno à mão de Deus?
– Confesso que foi um grande erro, sim, meus jovens, um enorme vacilo. Tem momentos em que acreditamos que uma ação irá gerar uma reação igual, mas eis que ela se dá contrária. Tive boa intenção, somente boa intenção. É, padres também cometem erros.
– Pode nos explicar melhor?
– Eu notei que a população estava assustada, pois nenhum deles havia presenciado um fenômeno como aquele, pois é realidade que nunca havia caído um meteoro nesta região. Estrelas cadentes, que vocês conhecem muito bem, são constantes, e até isso, às vezes, alguém por aqui fala que foi coisa de Deus. Então acreditei que, dizendo ser um aviso de Deus, eles se preocupariam e voltariam com mais fervor as atenções a Deus. O povo daqui é muito simplório e costuma relacionar qualquer tipo de mistério a atitudes Dele.
– Tudo bem que o senhor teve boas intenções, mas considero que foi uma atitude desleal. Que sinal poderia ser, Padre?
– Considerar a minha atitude como desleal é muito forte. O que significa a palavra desleal? Obviamente o antônimo de leal, o mesmo que infiel, pérfido ou que revela perfídia. Que é isso, meu jovem. Como pode ser desleal uma pessoa que teve boa intenção? Não. Eu apenas cometi um erro, pois não pensei a contento que depois teria que explicar as características do sinal.
– Desculpe Padre, não quis ofendê-lo. No caso então esta balbúrdia não tem nada a ver com Deus?
– Tudo foi gerado pelas minhas palavras. Estou profundamente arrependido por tê-las dito, eu não deveria ter dito aquilo.
– O que o senhor pretende fazer para desfazer este imbróglio?
– Vou dizer claramente a verdade, que foi a queda de um meteoro e que a queda do meteoro foi o aviso de Deus e que eu ainda não consegui decifrá-lo. Afinal de contas, quem criou os meteoros? Não foi Deus? Portanto, tem tudo a ver com Deus. Agora, o motivo pelo qual Deus enviou aquele meteoro são outros quinhentos. Acredito que assim eu não esteja enganando ninguém e espero que eles assimilem e se acalmem.
– É, dos males o menor. Mas, e quanto à febre do rapaz que nenhum médico conseguiu debelar?
– Apenas coincidência, um fato não tem nada a ver com o outro.
– Quer dizer que um médico que não consegue abaixar a febre de um rapaz é apenas coincidência? Coincidência com o que, padre? Raciocine bem, pois este fato deve estar encucando a cabeça do tal médico.
– Há mistérios que chegam às raias do absurdo. Quantos doentes em coma há anos de uma hora para outra voltam à vida? Quantos? Pois é, nestes casos os médicos também não encontram explicação alguma. A febre do garoto é um caso típico destes, onde o médico não encontra explicação.
– Tudo bem, tudo bem padre, sem mais delongas sobre o caso da febre do garoto. E o tal homem prateado?
– Na hora do susto o povo vê qualquer coisa. Não se esqueçam de que na Vila jamais tinha ocorrido a queda de um meteoro, e deve ter sido de bom tamanho. Deve ter explodido antes de tocar o solo, fato que explicaria a enorme luminosidade. Para um povo simplório, uma situação como essa pode gerar delírio em algumas pessoas e estas vislumbrarem coisas que não existem na realidade, como o tal homem de prata. Talvez a própria luminosidade possa ter causado esta impressão sobre a roupa de alguém. Quem sabe?
– E quanto ao colar misterioso?
– A pessoa em questão tinha voltado de uma localidade aqui perto, deve ter trazido de lá o tal colar, diferente, apenas diferente, por isso o povo estranhou.
– E quanto a uma luz azul que irradia dele?
– Muito provavelmente impressão de ótica, só isso. O colar, talvez por um processo de fabricação novo, brilhava muito e o povo, ainda dominado emocionalmente pelo fenômeno, acreditou que era sobrenatural. Resumindo, toda esta confusão foi gerada unicamente por causa daquelas minhas infelizes palavras. Por causa delas até recebi um sabão do bis… quer dizer, foram palavras que não deveriam ter sido ditas da maneira como eu disse. Se eu..
– O que o senhor disse, Padre? O Bispo Ednando já esteve aqui a parlamentar contigo?
– Quem falou em bispo? Eu estava dizendo que, se desde o início eu tivesse posicionado as palavras de modo diferente, com certeza seriam relacionadas à queda do meteoro e o tal aviso logo seria esquecido.
– O senhor não completou a frase, mas ficou claro que o bispo esteve aqui. Ele foi rápido e rasteiro, né, pois o fato se deu no sábado e ontem, domingo, ele cá esteve. E se o bispo cá esteve é porque a coisa não é tão simples assim.
– Tudo bem, tudo bem, sim, o bispo esteve aqui e não houve nesta visita a seriedade que você conclama. Ele veio com a única intenção de me ajudar a encontrar uma solução que não resvalasse para a dúvida entre os fiéis. O bispo e eu temos uma enorme preocupação para que os nossos fieis sejam tratados com toda a dignidade possível. Com a sua ajuda, encontramos um caminho, aquele que já lhe expus.
– Tudo bem, Padre, deixa prá lá. O senhor tem mais alguma coisa a nos dizer?
– Encarecidamente peço a vocês da imprensa que não alardeiem este fato, porque…
– Não alardear este fato? Desculpe a interrupção, mas essa eu não entendi. O que vamos passar aos nossos ouvintes é a verdade, isso se tivermos acesso à ela, é mais do que óbvio. Acredito que o senhor tenha lidado com a verdade conosco, pois a nossa função é justamente levar a verdade aos nossos ouvintes. Por isso, prezado padre, não entendi o seu pedido de não alardear este fato.
– O que eu quero dizer é que a verdade está incutida unicamente no que lhes transmiti e que não provoquem oportunidades de nos impingir mais transtornos.
– Transtornos? Oportunidade para impingir mais transtornos a vocês? Estamos aqui apenas querendo saber a verdade, a realidade dos fatos.
– A verdade, a realidade dos fatos é que se vocês noticiarem o que ouviram pela boca do povo vai transformar a Vila num inferno. A história da imprensa está repleta de casos sensacionalistas.
– Desde quando levar a verdade ao povo é questão de inferno e de sensacionalismo? Se por um acaso o senhor tiver por hábito ouvir o nosso noticiário, desafio-o a nos apontar uma única reportagem onde usamos de sensacionalismos para gerar audiência.
– Sinceramente lhes digo que nunca ouvi o noticiário de vocês, e mais sinceramente ainda pergunto: sobre tudo o que aconteceu aqui na Vila do Córrego Dobrado, qual é a verdade para vocês, a minha ou a do povo?
– Estamos aqui justamente para descobrir. Seja a tua ou a do povo, para nós isso nos é indiferente, o que nos importa é unicamente a verdade. Se não discernirmos entre as duas verdades a real verdade, reportaremos as duas.
– E qual a verdade vocês vão noticiar?
– Ora, prezado Padre, acabei de dizer. Se não discernirmos entre as duas verdades a real verdade, reportaremos as duas.
– A minha verdade como padre, não importa? E a verdade da nossa Religião, não importa?
– Parece que o senhor está com problemas de entendimento. Seria nervosismo? Mais uma vez vou repetir e espero que entenda definitivamente. Apuramos alguns dados do povo e agora estamos ouvindo o senhor. Se não conseguirmos identificar qual das duas versões é a verdadeira, vamos divulgar as duas, e pronto. Afinal de contas, qual é a verdade verdadeira: a sua ou a do povo? E por que o senhor colocou a Religião neste assunto?
– Vocês não acham que estão faltando com respeito à minha autoridade?
– Nada a ver com falta de respeito à sua autoridade, Padre, isto é, com falta de respeito à sua pessoa como homem do Vaticano, como eclesiástico dos católicos desta vila. Se nós concordarmos com o povo, estaremos taxando o senhor de mentiroso. Se concordarmos com o senhor, estaremos taxando a população de Vila do Córrego Dobrado de louca, sem juízo. Seria justo? Uma queda de meteoro poderia enlouquecer por volta de 1.500 pessoas ao mesmo tempo?
– Por que noticiar fatos ainda não comprovados como sendo verdade só porque estão na boca do povo? Quer dizer que qualquer coisa que o povo daqui disser a vocês será noticiado como a verdade? A verdade, a verdadeira verdade está no Livro Sagrado.
– Padre, alguma coisa importante aconteceu aqui. Que seja um misterioso fenômeno natural, que seja a visita de Deus, nós apenas vamos noticiar. Vamos noticiar a sua versão e a versão do povo, nós não interferimos, não damos opinião, apenas divulgamos o que ouvimos. Jamais, em tempo algum, vamos dizer que o povo está certo e que o senhor está errado, e vice-versa, vamos unicamente informar o que ouvimos. A ciência, a religião, ou seja lá quem for, que nos apresente depois qual a versão verdadeira. O senhor já tem em mãos uma comprovação oficial dos entendidos no assunto de que o fenômeno foi a queda de um meteoro? Se não tem, então está ainda na fase da hipótese. O povo tem alguma comprovação oficial de que o clarão foi coisa de Deus? Se não tem, e o senhor é o primeiro a dizer que não foi, também está ainda na fase da hipótese. Deu para entender, Padre? Não há verdade alguma aqui. Há aqui em Vila do Córrego Dobrado a presença de duas hipóteses. São estas duas hipóteses que vamos noticiar em nosso programa.
– Meus jovens, se tem uma coisa que o Vaticano abomina são intrigas que confrontam a verdade do Livro Sagrado, e é justamente o que vocês vão fazer, desafiar a verdade dos Textos Sagrados com delírios popularescos.
– O senhor está levando a coisa estritamente para o lado religioso, como se a única verdade do mundo é o que dizem os Textos Sagrados da Igreja Católica. E os Textos Sagrados das outras religiões, são mentiras e…
– O Catolicismo é a única e verdadeira Igreja. Apesar disso, respeitamos todo aquele que professa a sua seita, simplesmente porque o indivíduo considera como a sua verdade. Mas não é, eis a questão. Nós, unicamente nós, somos a verdade. Cabe a nós, a única verdade, respeitar a cegueira do próximo e fazer de tudo para trazê-lo para nós. Que fique muito bem clara esta minha posição.
– Acho melhor parar por aqui, pois, desagradavelmente, a conversa se estendeu para um rumo inadequado. Ouvimos o senhor com todo o respeito assim como o senhor nos ouviu com todo o respeito. Dai-nos licença que agora vamos continuar ouvindo o povo.
– É um direito de vocês. Peço, por favor, que não alardeiem esta conversa de que Deus esteve aqui, será confusão na certa e vocês não têm a mínima ideia do poder do Vaticano.
– Por um acaso é uma ameaça?
– Longe de mim, estou me referindo ao poder do Vaticano em resgatar ovelhas perdidas.
– Por que o senhor está fazendo questão de colocar o Vaticano num assunto acontecido num lugarejo perdido nos confins das montanhas?
– Tudo relacionado a Deus tem a ver com o Vaticano. E quando Deus é destacado em reportagens suspeitas pode…
– Reportagens suspeitas? Padre, com todo o respeito que o senhor merece, basta e muito obrigado pela atenção e passe bem.
Os dois repórteres encerraram a conversa com o padre e saíram da igreja. Quando colocaram os pés na calçada se assustaram com o caos urbano. Parece que toda a população da Vila estava nas ruas. Homens, mulheres, adultos, crianças e até cachorros corriam para todos os lados. Aos trancos e barrancos os dois repórteres conseguiram colher outras informações necessárias, isto é, a versão do povo. Serviço terminado, entraram no veículo e se mandaram de volta para Pico da Glória. Atrás, ficou a turba ensandecida.
* Texto: Eitel Teixeira Dannemann.
* Foto: Desenho e montagem de Eitel Teixeira Dannemann.