“A posse de conhecimento não mata o senso de deslumbramento e mistério. Há sempre mais mistério”. (Anaïs Nin − 21/02/1903-14/01/1977)
Todos os acontecimentos da Vila de Córrego Dobrado vinham sendo monitorados pelas Forças Armadas. Estas, com o auxílio de países enigmaticamente parceiros, tinham enorme interesse em desvendarem, de uma vez por todas, aquelas estranhas louvações. Dois dias antes da missa campal, os militares divulgaram nos principais meios de comunicação do país que iriam realizar uma simulação de guerra em Vila do Córrego Dobrado. Seria um típico exercício militar. Mas, estrategicamente, através de poderes além do desconhecido, a notícia não chegou às repetidoras de TVs de Pico da Glória, que atendiam a Vila, e muito menos às rádios. O resultado disso tudo é que ninguém da pequena localidade sabia de nada. Mas os Deuses, que a tudo acompanhavam, sabiam, e estavam de olhos grudados na invasão.
– Veja, Comandante, é um grande aparato.
– Quantos são?
– 1.212 homens muito bem equipados.
– Vários caminhões de transporte, blindados e três helicópteros a caminho. O povo ainda não percebeu. Daqui a pouco vão se assustar com o barulho das aeronaves. E quando acontecer, vai haver tumulto. Comunique-se com Januário agora. Oriente-o para levar a família para casa, acompanhado de Padre Alaor, que deve deixar a porta principal da Matriz fechada, mas destrancada. Esclareça-os sobre a realidade dos fatos e que, com todos dentro, a casa será protegida pelo escudo inviolável, dizendo a eles, é óbvio, que estarão sob o poder de Sued e que pelo poder de Sued nada transporá a barreira de proteção.
Em poucos minutos, a família Mantiqueira estava devidamente salvaguardada no interior da residência, acompanhada do Padre. Outros poucos minutos após o povo se admirou com o sobrevoo de dois helicópteros Eurocopter AS 350 Ecureuil e um Sikorsky UH-60 Black Hawk. Enquanto alguns olhos permaneciam grudados nas aeronaves, a maioria acompanhava a chegada dos homens e dos blindados. Bem treinados, fizeram um cerco sobre a Vila. Recrutas, praças, oficiais subalternos e oficiais intermediários vieram acocorados nos 20 caminhões, enquanto os oficiais superiores e oficiais generais desceram do helicóptero Sikorsky que pousou junto com os outros dois no campo de futebol. Os blindados, 5 Urutus e 5 Cascavéis, se distribuíram em torno da Vila. Quando os motores dos helicópteros foram desligados, outro som despertou a curiosidade dos habitantes. No céu, um avião C-130 Hércules da FAB lançou sobre a cidade dezenas de homens da Brigada de Infantaria Paraquedista. Aquela chuva de seres humanos encantou a todos, toda aquela movimentação encantava a todos, até que o temor se abateu sobre todos. Houve uma dispersão geral, cada um procurando a sua casa. O comércio que estava funcionando naquele domingo teve as portas fechadas com a rapidez do raio. Em poucos minutos, não havia nenhum habitante da Vila nas ruas. Excetuando os sons das máquinas e dos homens do exército, não se ouviam vozes nativas. Na praça principal, logo se armou um grande acampamento para o comando. No entorno do Córrego Dobrado, margeando a Vila, outro acampamento foi montando e as máquinas lá se postaram. Pelas frestas das janelas fechadas, o povo acompanhava aquele mistério. Em volta de uma grande mesa na tenda maior, com uma perfeita maquete da Vila e arredores, generais discutiam os últimos detalhes da operação, que até o presente momento estavam de acordo com os planos.
No planeta Terra, o húngaro Dennis Gabor, em 1948, concebeu o termo Holografia como forma de se registrar ou apresentar uma imagem em três dimensões. Mas lá nos confins das galáxias, a terra dos Deuses, a técnica de projetar imagens em qualquer ambiente como sendo uma verdade aparente era coisa banal. Era tão perfeita que, em algumas oportunidades o homem prateado, Etnaduja, esteve presente junto à família Mantiqueira apenas como uma imagem. A esta técnica, os Deuses chamam de Amsatnaf. E foi através da Amsatnaf que, após um ajudante da igreja ter aberto a porta, Etnaduja se fez presente, bem de frente ao acampamento militar. A roupa prateada e a postura de um nobre medieval correram de boca em boca. Logo se formou um cerco. Um general se apresentou iniciando o diálogo:
– Quem é o senhor?
– Sou Etnaduja, servo do Deus Sued. Quem são os senhores?
– Deus Sued? – retrucou o homem de forma irônica em coro com os demais. Por um acaso seria o Deus das duas crianças?
– Quem são os senhores? – perguntou novamente Etnaduja.
– Somos um destacamento do Exército em exercício de guerra, apenas isso – disse o general se aproximando da larga escada de cinco degraus que dava aceso à igreja.
– Por favor, não se aproxime.
– Por um acaso pode me dizer por quê? – disse o general já tendo subido um degrau.
– Apenas não se aproxime. Diga-me o que vieram fazer aqui.
– Eu já disse. É um exercício militar – falou o militar tendo subido outro degrau.
– Pare! – gritou Etnaduja.
– Ora, o que é isso meu senhor. Estamos aqui em paz – disse o general estacando o passo e dando um sinal para os homens engatilharem as armas. Afinal, por que não quer uma aproximação?
– Vieram em paz e ordena os seus soldados a engatilharem as armas? Pois sim! Sued não os quer aqui. Este é um reduto sagrado. Vocês têm sessenta minutos para se decidirem a retirar.
– Ah, é? Nós somos o Exército, e quem dá ordens aqui somos nós. Diga, por favor, o que acontecerá a nós se não nos retirarmos?
– Verão com seus próprios olhos e com as próprias carnes.
– É uma ameaça?
– Não., apenas uma sugestão para o bem de vocês.
– E será o tal deus Sued que nos propiciará tal desgraça?
– Sim. Vocês têm sessenta minutos.
– Não deixa de ser inter…
– O militar não completou a frase, pois Etnaduja entrou na igreja. Após o assistente ter fechado a porta, a projeção se desfez. Imediatamente o general ordenou uma invasão no intuito de prender o homem. Obviamente, não o encontraram em lugar algum. Questionaram o ajudante do pároco e este disse não estar entendendo nada, pois estava sozinho na igreja. Resolveram partir imediatamente para a casa dos Mantiqueira. Quando lá chegaram, se assustaram com o homem prateado em pé no alpendre. Olharam uns para os outros sem entenderem o modo como havia chegado lá. O general já ia abrir o pequeno portão da entrada quando Etnaduja lhe dirigiu a palavra.
– Restam 18 minutos.
– Ora bolas, enfia estes 18 minutos no… ralo – disse malcriado o general abrindo o portão.
– Pare! – gritou o homem prateado.
– Olha aqui seu, seja lá quem for, sou general do exército e exijo respeito.
– Nenhum humano conseguirá entrar nesta casa. Os seus brinquedos bélicos são como espoletas para nossos poderes. Então, que seja, já que querem entrar, venham.
Sem perder tempo, o general deu ordem para avançar, e foi o primeiro a trombar no escudo invisível. Foi um reboliço. Tentaram pela frente, por trás, pelos lados e não havia modo de transpor a parede que ninguém via. Furioso, o comandante militar ordenou que um blindado Cascavel subisse até a casa. Etnaduja tentou serená-lo:
– Terráqueo, o que pretende fazer?
– Que raios de negócio é este que cerca a casa?
– É o poder de Sued.
– Isso só pode ser um escudo invisível, coisa de ficção científica.
– Terráqueo, o que pretende fazer com aquele blindado que está vindo?
– Vamos ver se esta parede invisível suporta o tranco.
– Não faça isso, é perda de tempo.
– Queremos entrar e vamos entrar.
– Se estão apenas em exercício militar, por que o interesse nesta casa?
– Porque faz parte do exercício militar apreender os habitantes desta casa, sacou?
– Sacou? O que é isso?
– Você não é um deus? Se for um deus, sabe tudo. Então, deve muito bem saber o que significa sacou. Sacou?
– Terráqueo, olhe bem em direção ao blindado. Vou dar-te uma pequena demonstração dos poderes de Sued.
Não só o general, mas todos os militares direcionaram seus olhares para o blindado que se dirigia à casa. Tiveram a oportunidade de presenciarem um feixe de luz azul que desceu do céu e cobriu o veículo. Cinco a dez segundos depois a luz se apagou. O blindado havia desaparecido. Atônicos, ouviram a voz de Etnaduja pedindo-lhes que olhassem para o lado contrário. Outro feixe de luz azul desceu do céu. Cinco a dez segundos após, a luz se apagou. E lá estava o blindado. Mais atônicos ficaram ao perceberem que os dois ocupantes desceram do veículo e se dirigiram à casa. Nem o general conseguiu pronunciar uma única palavra. Os dois passaram pelo pequeno portão e subiram até o alpendre. Fizeram uma reverência a Etnaduja e entraram na casa. Boquiabertos, todos estavam estáticos olhando para a casa com os olhos fixos na figura imponente do homem prateado. Até que o general voltou a si. Chegou ao pequeno portão e não conseguia desviar os olhos daquela figura imponente. Foi então que criou coragem para falar:
– O que aconteceu com nossos homens, como entraram aí? De que planeta são vocês?
– Nós somos Deuses a serviço do Todo Poderoso Sued. Estamos aqui para substituir o pai de Jesus Cristo. Quanto a seus dois homens, estão protegidos aqui.
– Qual o seu nome?
– Etnaduja.
– O meu é General Castorino. Por favor, parem com essa de deuses. Sabemos perfeitamente que são alienígenas e…
– Todo Deus é alienígena. O Deus criador do homem, por um acaso, era terráqueo? No início, nada havia, apenas o zero absoluto. Nada existia acima, nada existia abaixo, nada existia do lado esquerdo e nada existia do lado direito, pois não existia acima, abaixo, lado direito e lado esquerdo. Era o zero absoluto, pois absolutamente nada existia. De repente, surgido num infinito inexistente, numa imensidão inexistente, veio Deus com sua vontade pré-concebida de criar o planeta Terra com sua flora, sua fauna e o homem, macho e fêmea. De onde veio Deus? Do cosmo longínquo, de uma galáxia inalcançável. Deus, portanto, era um alienígena. Assim como nós, os novos Deuses deste planeta, também somos alienígenas. Temos poderes para destruir a todos num estalar de dedos. Mas não o faremos. Olhe para este pequeno jardim à sua frente. Percebe aquelas flores? São Lírios da Paz. Estas flores são o nosso símbolo, pois o que buscamos na Terra é o ensejo da paz. Vejam vocês, olhem-se uns aos outros. Aqui vieram com intenções bélicas enquanto todos daqui pregam a paz. Reparem, não há um único habitante nas ruas, estão todos em suas casas, na proteção de Sued. Vão, voltem para onde vieram e digam ao seu comandante-mor que Vila do Córrego Dobrado é um lugar sagrado. Você, General Castorino, veio com a missão de apreender os habitantes desta casa. Mas quem foi apreendido? Como eu disse, dois de seus homens estão aqui conosco, e terão a oportunidade de fazer parte da nova era. Estendo o convite a qualquer um de vocês. Quem quiser se tornar pazoliano, que venha a nós.
Mais momentos angustiantes para o general e seus homens. Praticamente todos os militares estavam nos arredores da casa. Tentando encontrar uma saída, o general ordenou que firmasse um canal de comunicação com o comando geral. Etnaduja interveio, dizendo que todos os meios de comunicação estavam bloqueados. Fato confirmado pelos militares. O general se encontrava numa sinuca de bico. Resolveu voltar ao diálogo:
– Qual é mesmo o seu nome?
– Etnaduja.
– Pois bem, Etnoju…
– Etnaduja – reforçou o homem prateado.
– E-t-n-a-d-u-j-a. Sim, agora peguei. Pois bem, Etnaduja, você não respondeu a uma de minhas perguntas. Vou repeti-la: de qual planeta vocês vieram?
– General Castorino, eu já respondi a esta pergunta. Vou repeti-la: somos Deuses que vieram de uma parte do Universo infinito, estamos aqui para substituir o pai de Jesus Cristo.
– Mas isto é uma blasfêmia.
– De acordo com a língua de vocês, blasfêmia vem do verbo blasfemar, que, no modo transitivo indireto, significa dizer palavras ofensivas a pessoa ou coisa digna de respeito. Em nenhum momento eu disse qualquer palavra ofensiva ao pai de Jesus Cristo, que é um Deus como nós. Apenas disse que nós viemos para substituí-lo, pois ele não se encontra mais na presença de vocês.
– Blasfêmias, blasfêmias, mil vezes blasfêmias.
– Que seja então, meu prezado general, pouco nos importa a opinião de vocês. Ordeno, simplesmente, que se retirem de Vila do Córrego Dobrado imediatamente.
– Ordena? Quem é você para nos dar ordens?
– Prezado general, todos os seus comandados estão cientes de que os dois condutores daquele blindado estão aqui conosco. Portanto, não há ninguém dentro dele. Vou permitir a vocês outra demonstração dos poderes de Sued. Peço encarecidamente que todos direcionem seus olhares para lá e que se afastem o máximo que puderem.
Mil e duzentos e doze homens voltaram seus olhares para o blindado. Do céu, um feixe de luz azulada desceu de encontro ao veículo. Em questão de poucos segundos, o ferro se fez vermelho incandescente. O calor era tanto que afetava os mais próximos, que se afastaram correndo, assustados, prevendo explosões, que não aconteceram. Mais poucos segundos depois, o blindado era apenas uma massa de ferro contorcida. Foi um verdadeiro espanto. Todas aquelas pessoas, principalmente o general, não sabiam o que fazer. Aquelas cenas só haviam presenciado nos filmes de ficção científica. Uma massa de corpos humanos se ajuntou em volta dos destroços. Olhavam uns para os outros sem acreditar no que viam. Mal se refaziam, outro fecho de luz azul desceu do céu sobre algo no campo de futebol. Correram para lá. Um dos helicópteros se transformara na mesma massa amorfa de ferro contorcido. Cabisbaixos, postaram-se novamente em frente a casa. O general não sabia o que fazer e muito menos o que dizer. Etnaduja resolveu falar:
– Terráqueos, atentai para a verdade, vocês não são nada perante os nossos poderes. Não se iludam.
– Ejut… Etdaju… não importa, não consigo memorizar o seu nome. Não venha com essa de Deuses, sabemos que são extraterrestres. Responda-me, sem rodeios: vocês têm intenção de invadir a Terra?
– Meu prezado, nós já invadimos a Terra. Eis-nos aqui. Mas invadimos este planeta com armas que não atiram balas nem obuses, mas a paz. O lar de vocês está corrompido. O pai de Jesus Cristo os deixou. Ficamos sabendo e por isso aqui viemos para substituí-lo, para fazer o que Ele não conseguiu. Atentai que a nova era está em pleno vigor. Cada flor do Lírio da Paz que desabrochar representará um novo pazoliano na Terra. Venham a Sued, convertam-se e sejam felizes.
– Pare com essa ladainha de deuses, por favor. Temos ciência de que estamos lidando com seres extraterrestres possuidores de tecnologia fora de nosso alcance, e o que presenciamos não deixam dúvidas. Aqui, neste acampamento militar, sou o comandante chefe. Exijo uma retratação do seu superior.
– Prezado, em nome de Sued, aqui sou comandante superior, aqui, eu decido. O que quer?
– Quero estar na presença do comandante geral da frota de vocês.
– Frota, o que é isso, General Castorino?
– Frota, frota, ora, tem dó, pare de zombar com a minha posição. Lá no espaço estão as suas naves incrivelmente ocultas por uma tecnologia que não conhecemos, assim como a proteção desta casa e dos raios que vieram delas.
– Quando Deus destruiu a humanidade Ele se armou de alguma tecnologia? Quando Deus destruiu Sodoma e Gomorra Ele se armou de alguma tecnologia? Quando Ele criou a Terra e tudo que nela existe usou de alguma tecnologia? Ora, meu prezado, não houve tecnologia nenhuma, apenas poder, o poder dele, Deus. Quando Jesus Cristo pregava aqui na Terra, quantos o chamaram de louco e até imaginaram que era um ser de outro planeta? Foi crucificado e morreu para salvar vocês, homens horríveis como estou vendo aqui na minha presença. E o que o Pai fez? Saiu matando todos aqueles que mataram o seu filho? Nada disso. Ele, o pai de Jesus Cristo, condenou o próprio filho ao sofrimento como forma de coesão com a criação, o ser humano. Mas vocês, os seres humanos, não entenderam o gesto de Deus. Este, com seu poder, devolveu a vida ao filho. Tentou durante milênios converter as mentes dos humanos. Não conseguiu. Por isso, abandonou definitivamente a Terra. Foi por isso que resolvemos substituí-lo para implementarmos nossos projetos divinos em prol de uma nova era para gerar um novo homem, o pazoliano. Oh humano, retire seus homens daqui e vão em paz, na paz de Sued.
Lá em cima no vácuo do espaço, os Deuses acompanhavam serenamente e sorridentes o acontecimento em Vila do Córrego Dobrado. Foi quando um comunicado de uma de suas naves lhes trouxe à razão um passado longínquo de trágicas lembranças.
* Texto: Eitel Teixeira Dannemann.
* Foto: Desenho e montagem de Eitel Teixeira Dannemann.