PAZOLIANA − CAPÍTULO 2: VISÕES, PARANOIA OU VERDADE?

Postado por e arquivado em CANTINHO LITERÁRIO DO EITEL.

“Tudo, aliás, é a ponta de um mistério, inclusive os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece há um milagre que não estamos vendo”. (Guimarães Rosa – 1908-1967)

Sete horas da manhã de domingo, 03 de março de 1974. O tempo continuava nublado, mas não chovia desde o fenômeno do clarão. Após uma cavalgada tumultuada e molhada, Arnaldo chegou à Vila do Córrego Dobrado, onde residia. É um lugarejo em franco desenvolvimento, encravado num vale de uma cadeia de montanhas, com pouco mais de 2000 habitantes, que surgiu às custas dos aventureiros que se embrenhavam nas matas em busca de pedras preciosas. O ciclo das pedras já havia desaparecido há tempos. A economia rural se dividia entre criadores de gado de leite, produtores de milho e lavouras de subsistência. Os produtos serviam à localidade e o excesso, quando havia, era exportado para Pico da Glória, a maior cidade daquela região montanhosa, da qual a Vila é distrito, distante pouco mais de 20 km. O comércio até bem desenvolvido para o lugar fazia da Vila um lugarejo aconchegante, com uma população ordeira e tremendamente religiosa, adepta dos preceitos católicos. A Igreja Matriz em estilo barroco era o orgulho da comunidade. Para os habitantes, a Sede não possuía uma igreja tão bonita. O nome do distrito surgiu devido ao córrego que corta a cidade. Descendo as íngremes encostas, num vale esplendoroso ele forma dois braços que praticamente transforma a Vila numa ilha. Mas sem problemas, pois esta é uma grande elevação e raramente temporadas de chuvas intensas causava algum dano, a não ser em algumas pontes rurais – a de acesso era de concreto armado – que vez ou outra eram levadas pelas águas, mas logo reconstruídas pelos próprios habitantes, pois ninguém por lá ficava esperando a boa vontade dos políticos.

Arnaldo Silva Mantiqueira já estava adentrando à Vila em seu garboso garanhão de pelagem castanha com um pouquinho de sangue Mangalarga Marchador que lhe causava um grande orgulho, sendo considerado por ele o equino mais inteligente do lugar, e que não vendia por preço algum. O dito era um pequeno produtor de leite e fabricante de um delicioso queijo tipicamente mineiro, além de um cidadão respeitado na cidade e conhecedor de algumas doenças dos animais. Por causa desta habilidade fora chamado às pressas na tarde do dia anterior para cuidar de uma vaca com problema de parto numa localidade distante seis quilômetros em linha reta. A estrada de rodagem não era tão ruim assim, apesar de forçar uma volta imensa por causa do terreno íngreme. Como gostava de cavalgar o seu querido garanhão, optou pela montaria. O trajeto sinuoso e o solo encharcado pelas chuvas, associado ao encontro com os seres misteriosos, fez-lhe demorar além do necessário. Arnaldo, nos seus quarenta e dois anos de idade e nadando em saúde, era casado com Mabélia (39), tinha três filhos, sendo uma menina de nove (Sofia), outra de quatorze (Mara) e Januário com dezoito, seu braço direito na lida com o gado e na venda dos queijos na Sede, ação que praticava duas vezes por semana. Católico ao extremo, exigia da família comportamento adequado nas missas dominicais, quando não era raro o padre lhe pedir que pronunciasse algum discurso, sempre ufanado pelos presentes. Quando dobrava uma esquina, a um quarteirão de sua residência, um conhecido lhe sustou o caminho demonstrando bastante nervosismo:

– Arnaldo, pelo amor de Deus, finalmente você chegou. Estamos agoniados com a sua ausência. Já estávamos imaginando que havia sumido.

– Que é isso, Alfredo, por que o atropelo? Até você sabia que eu estava no Pontal das Maritacas.

– Sim, a gente sabia, acontece que você demorou demais. Há um problema sério com o Januário. Desde ontem de madrugada está com uma febre infernal, uma coisa estranha pra caramba.

– Santo Deus, o que será?

Esporeando o garanhão, nem se despediu do amigo e partiu para casa. Chegou bufando ao quarto do filho. Além de Mabélia, estavam suas duas filhas e mais alguns amigos. No leito, Januário ardia em febre.

– Arnaldo, até que enfim. Poxa, você ficou de voltar ainda ontem. Por que não foi de carro como eu havia lhe sugerido? Com esse tempo ruim só você para sair a cavalo. Por que demorou tanto? Gente, você está com a roupa toda enlameada. O que foi isso?

– Mas o que houve com o Januário? O Alfredo acabou de me dizer que ele ardeu em febre a noite toda.

– Sim, uma febre danada, mas ainda não sabemos a causa. Agora diga, homem, por que está com esta roupa toda enlameada. Parece até que você se lambuzou numa poça de lama.

– O garanhão se assustou com os relâmpagos e deu um pinote que me jogou ao chão. Mas não me machuquei, fique tranquila. E então, chamaram o médico?

– Sim, ele esteve aqui. Não disse coisa com coisa, parecendo não entender o que tinha o nosso Januário. Ele falou que não entendia o porquê da febre, pois tudo mais estava normal nele. Aplicou o medicamento, a febre baixou um pouco, mas não voltou ao normal.

– Por que ele está dormindo?

– O doutor aplicou um sedativo porque ele teve convulsões quando a febre estava acima de 42º. Oh, Arnaldo, será que nosso filho vai morrer?

– Gente do céu, a febre chegou a 42º? E agora, como está? O que mais disse o Médico?

– O remédio abaixou para 39, 40, depois voltou para 39 e assim ficou. Ele disse que não entendia o porquê da febre. Aplicou o sedativo e recomendou esperar até o dia amanhecer. Se a febre continuasse, orientou que o levássemos a Pico da Glória.

– Então quer dizer que o Doutor Mangabeira não sabe o motivo que causou a febre? Ele não aventou nenhuma hipótese?

– Nenhuma, nenhuma. Ainda por cima o povo da Vila aprontou um escarcéu danado com o clarão que deixou todo mundo nervoso.

– Que clarão, Mabélia?

– Foi uma coisa muito estranha, estávamos já deitados, devia ser por volta das dez horas da noite. De repente, apareceu um clarão que nos assustou. Falei pros meninos ficarem em casa e fui à rua. Quase todos tinham saído de suas casas. Foi um clarão intenso, mas tão intenso que iluminou a cidade, parecendo até que era dia. Ninguém entendeu nada. Ajoelhado na praça, Padre Alaor começou a dizer que aquilo era um aviso de Deus. Aí então é que o povo se exasperou. Depois as luzes da Vila se apagaram e logo voltaram ao normal. Como não houve mais nada, voltamos para nossas casas. Já de madrugada, devia ser por volta das três, três e meia, o Januário me chamou. Ao vê-lo, levei um susto tremendo. Estava vermelho e tremendo muito. E muito quente. Corri ao Doutor Mangabeira pedindo mil desculpas por tê-lo acordado àquela hora. Ele veio imediatamente. Ficou aqui até as seis, mas não conseguiu abaixar a febre. Antes de sair, disse que tão logo você chegasse, e se a febre continuasse assim, era para o levarmos urgente a Pico da Glória.

– Mas não tem cabimento um médico não conseguir abaixar a febre de um garoto. Poxa, e eu que considerava o Doutor Mangabeira um bom profissional.

– Não é bem assim, Arnaldo. A gente sabe muito bem que ele é um bom médico e já provou isso inúmeras vezes. Só que, sei lá, parece que o caso do Januário é muito, mas muito esquisito. O doutor conseguiu abaixar até os 39. Usou todos os medicamentos necessários e não conseguiu passar disso. Então ficou surpreso, dizendo que nunca tinha visto um caso igual, principalmente porque o Januário gritou o seu nome várias vezes.

– Gritou o meu nome várias vezes?

– Sim, quando teve as convulsões. Chamava por você e ainda dizia, com a língua um pouco enrolada, que você estava conversando com Deus.  Ficamos sem entender nada e associando isso à sua demora começamos a imaginar um monte de besteiras. O doutor falou que poderia ser alucinação por causa da febre alta. Oh, Arnaldo, por que você demorou tanto? Por ter chegado agora deve ter saído de madrugada. Por que não dormiu por lá?

– Que coisa mais estranha. Mas eu não saí de madrugada. Se não me engano era umas dez horas da noite e eu já estava pertinho daqui. Não estou entendendo. Clarão, você disse que teve um clarão aqui? E o Januário disse que eu estava conversando com Deus?

– Pois é, Arnaldo, ninguém conseguiu entender. E se nem o doutor conseguiu entender, nós é que não vamos conseguir.

_ Venha comigo para a sala enquanto Mara e Sofia monitoraram a temperatura e você me conta mais sobre o clarão.

– Foi assustador, parecendo até coisa de Deus. Era por volta das dez da noite e… mas, peraí, você disse que eram dez da noite quando já estava pertinho daqui. Uai, Arnaldo, se você já estava pertinho daqui às dez da noite de ontem, por que então só chegou aqui agora e com esta roupa toda enlameada?

– Já disse que foi um tombo. O cavalo se assustou com os relâmpagos e deu um pinote. Estava descuidado e não deu tempo de me segurar. Vá, fale mais do clarão, pois este negócio está mexendo com meus miolos.

– Vou falar, vou falar, mas tem uma coisa que não está batendo nesta sua viagem de volta. Qual a distância que você estava da Vila quando percebeu que eram dez horas?

– Acredito que eu estava a uns dois a três quilômetros daqui. Mas pra que este interesse?

– Arnaldo, Arnaldo, atente pra coisa. Você chegou aqui às sete da manhã. Jamais você poderia ter consumido nove horas para percorrer dois quilômetros ou um pouco mais montado num cavalo. Além do mais, desta distância é muito do provável que você também tenha percebido o clarão, concorda comigo?

– É porque você não faz a mínima ideia de como estão as trilhas lá para cima. Mas o clarão, não me lembro…

– Mesmo assim, mesmo assim, não tem cabimento. Sabe o que acho? É isso, tá na cara. Você caiu do cavalo, desmaiou, ficou apagado um montão de tempo empapuçado na lama e não quer nos dizer. Estou certa?

– Se foi isso, por que não me lembro de nada? Só me lembro que vi… que vi… fale-me mais do clarão.

– Durou uns três minutos. Como eu disse, era tão forte que a gente via tudo em volta do córrego e todos os montes da redondeza. Os animais se apavoraram, as aves saíram de seus ninhos e voavam perdidas, trombando umas nas outras. Mesmo com a escuridão a noite pareceu dia. No meio da multidão o Padre Alaor ficou ajoelhado, rezando. De repente, o clarão se foi e as trevas voltaram. Foi quando reparamos que as luzes da Vila estavam apagadas. Era uma escuridão medonha. Logo depois tudo voltou ao normal, como se nada daquilo tivesse acontecido. Arnaldo, será que o Padre Alaor está certo e foi mesmo um aviso de Deus?

– Este clarão, este clarão. Mulher, tenho uma sensação esquisita dentro de mim, como se eu também tivesse visto o clarão.

– Não seria nada estranho, marido, pois você estava muito perto. Só pode ter sido aquilo mesmo: o clarão assustou o cavalo, ele deu um forte pinote, você caiu, bateu com a cabeça no chão e desmaiou, ficando deitado na lama até de manhãzinha.

– Sei não, sei não. Se fosse assim eu estaria com alguma contusão na cabeça. Mas tem outra coisa que está aqui na cachola que não consigo desvendar. Gente, o que é? Deixa estar por enquanto. Quer dizer então que para o Padre Alaor foi um aviso de Deus?

– Assim ele disse, deve estar certo, pois você sabe muito bem que a coisa anda meio perdida por aqui.

– Como assim, Mabélia?

– A mulher do João Notório não…

– Ora, Mabélia, pare com essa ladainha, ninguém provou nada.

– Ninguém provou, mas todo mundo sabe, e o coitado do João Notório anda desenxabido com duas saliências no alto da cabeça crescendo a cada dia.

– Mabélia, vamos parar com este papo. Que mais disse o Padre Alaor?

– Que era um sinal divino, apenas isso.

– Baseado em que o padre falou isso?

– Ele só disse isso e voltou para a Matriz. Arnaldo, que colar é esse?

– Colar, que colar?

– Esse, homem, este que está dependurado no seu pescoço?

– Gente, mas que colar é este?

Circunspecto, Arnaldo retirou o colar do pescoço e o segurou entre as duas mãos. Era um objeto lindo, com pequenos elos contorcidos brilhantes, parecendo prata. Havia um pequeno pingente arredondado do tamanho e parecendo com uma bola de gude. Mas não era de vidro como uma bola de gude convencional. Assemelhava-se a um metal transparente. No seu interior irradiava uma tênue luz azulada. Mabélia o pegou, ficando maravilhada com a beleza da joia, mas não se conteve ante a curiosidade sobre a sua procedência.

– Vamos, diga Arnaldo, eu quero saber que colar é este.

– Calma mulher, eu já disse, não me lembro deste colar. Mas… que coisa esquisita, bateu-me uma sensação estranha. Esse colar, esse colar… o clarão, o clarão… luzes, muitas luzes… Droga, não consigo concatenar as ideias.

– Arnaldo, você não tinha esse colar ontem antes de sair e me chega com ele. Quero explicações.

– Mabélia, uma pausa, por favor, não sei como esse colar veio parar no meu pescoço. Ao mesmo tempo estou sentindo que algo está querendo me dizer que conheço a origem desse colar. Gente, o que é isso?

– Ora homem, esclareça logo a origem desse colar.

– Santo Deus, como é que esse colar veio parar no meu pescoço? Minha cabeça está latejando, quase explodindo. Tem alguma coisa, tem alguma coisa com esse colar relacionado com o clarão. Mas o que é?

– Arnaldo, vamos parar de brincadeira, pois eu sei muito bem que lá pras bandas de onde você veio tem uma xicazinha que anda batendo as asas para cima de você.

– Santa misericórdia, quanta besteira. Por favor Mabélia, a coisa é séria, para de baboseiras. Esse colar, esse colar, ontem a noite de madrugada, oh, tem um monte de imagens misturadas na minha mente. Um clarão, luzes fortes…

As visitas haviam se retirado. Mara e Sofia acompanhavam a temperatura de Januário enquanto marido e mulher digladiavam-se numa discussão tradicional de casal a respeito do colar quando ouviram o bater de palmas. Arnaldo abriu a porta da sala e se deparou com um homem na calçada, alto, quase chegando a dois metros, usando uma vestimenta nada usual na época e principalmente naquela localidade. Toda a roupa em conjunto era prateada. Aparentando uns quarenta anos, cabelos curtos e negros como o petróleo, a pele do rosto alva como a neve e um olhar azul tão penetrante que paralisou Arnaldo momentaneamente, ficando no alpendre olhando-o sem saber o que fazer. Num lapso instantâneo, algumas imagens estranhas lhe vieram à mente. Viu-se numa encosta íngreme, numa floresta luxuriante, encharcado pela chuva. Viu-se caindo numa ribanceira e depois três focos de luz em seus olhos. Várias imagens se amontoavam em sua mente. Estava como que em transe, até que voltou à realidade com o chamado do estranho.

– Bom dia.

As palavras do homem misterioso despertaram totalmente a atenção de Arnaldo, que, boquiaberto, percebeu que os que transitavam pelas redondezas de sua casa não prestavam atenção naquele estranho, mas, isto sim, alguns estranhavam a postura assustada dele. Era evidente que ninguém estava percebendo a presença daquele homem. Enquanto isso, de dentro da casa ouviu-se um lamento. Era Januário que acordara com convulsões. Mabélia já tinha se levantado do sofá e ido para o quarto. Arnaldo fez meia volta e já ia entrar em casa, momento em que o estranho se manifestou.

– Calma, meu bom homem.

Arnaldo se voltou para o homem prateado. Ele abriu o pequeno portão, postou-se à sua frente e encostando uma mão na testa de Arnaldo, imediatamente ele adormeceu¹, sendo pousado lentamente num banco do alpendre. O homem passou pela sala, pelo pequeno corredor e entrou no quarto. Quando mãe e filhas o viram, se levantaram assustadas, mas sem gritar. Ficaram deslumbradas com aquele ser metálico. Com o mesmo gesto da mão sobre a testa, o homem as fez adormecer. Restabeleceu o metabolismo de Januário usando o aparelho Rotinom. O adolescente acordou, e mesmo ainda com a percepção diminuída, se exultou com aquela figura imponente e brilhante. Não reparou num estranho parado à entrada do quarto. Mas o homem prateado o viu, e quando percebeu que o outro o vira, aquele saiu em disparada. Sem se preocupar, o ser prateado disse algumas palavras a Januário. Postou-se no centro do quarto e simplesmente desapareceu no ar. O rapaz levantou-se, sereno, viu a mãe e as irmãs deitadas no chão. Saiu e foi até o alpendre, pois, sem imaginar como, sabia que seu pai estava lá.

– Pai, pai, acorda.

– Januário, você aqui? Como?

– Pai, eu vi, eu vi e depois ele sumiu.

– Sumiu, mas quem sumiu? Ei, que coisa esquisita, eu estava dormindo?

– Sim pai, mamãe e minhas irmãs também estão dormindo. Escuta, pai, ele estava ao lado de minha cama e…

– Onde está o homem?

– Que homem, pai?

– O homem que estava aqui conversando comigo.

– Não sei, pai, mas lá no quarto estava um homem com uma roupa prateada, linda, brilhante. Ele…

– Um homem com uma roupa prateada? Pois era justamente um homem com roupa prateada que estava aqui no alpendre.

– Será que era o mesmo?

– E você, Januário, como se curou assim sozinho? Desde ontem estava com uma febre medonha, tão medonha que nem o médico conseguiu baixar.

– Foi o homem prateado, pai. Foi muito esquisito, porque…

– Ele te machucou, filho? Vamos, vamos lá falar com ele…

– Para, para pai, deixa eu falar, não sei de febre nenhuma, só sei que me acordei e vi um homem com uma roupa prateada e…

– Era o mesmo, só pode ser.

– Deixa eu terminar, pai. Eu acordei e vi o homem com uma roupa prateada e brilhante olhando pra mim. Ao lado da cama estavam mamãe, Mara e Sofia deitadas no chão. Ele me sorriu e falou uma coisa que não entendi totalmente, pois ainda estava um pouco grogue. Eu estava calmo e ele olhando para mim. Depois se aproximou e falou de novo. Eu continuei sem medo. Desta vez eu entendi. Ele disse: – Conto contigo! Só isso, pai, conto contigo. Aí se afastou e ficou no meio do quarto. De repente, simplesmente de repente, ele começou a desaparecer, desaparecer e sumiu², sumiu, pai. Aí fiquei assustado. Levantei-me e vim correndo pra cá. Foi isso. Quem era aquele homem? Será que foi Deus? Diga, meu pai, foi Deus que esteve aqui?

– Oh meu filho, que loucura, eu estava na sala conversando com sua mãe, ouvi palmas e fui conferir. Estava parado na calçada um homem igual ao que você falou. Nisso você começou a ter convulsões, eu já ia voltar ao quarto quando o homem me falou. Aí fiquei parado. Ele subiu e chegou perto de mim. De repente, não vi mais nada, parece que adormeci, só acordei agora com você me chamando.

– O senhor disse que eu estava com febre?

– Uma febre que nem o médico conseguiu debelar.

– Que coisa esquisita, por que eu não me lembro de nada?

– Não tenho a mínima ideia. Só sei que aí está você como se não tivesse sofrido nada.

– Foi ele, pai, foi ele.

– Ele quem, Januário?

– Ele, o homem com a roupa prateada brilhante. Não era só a roupa que brilhava. Tudo nele brilhava. Pai, acho que era Deus, só pode ser isso. E Ele me curou, foi a mão de Deus, sim, agora estou percebendo tudo. Quem esteve aqui não foi nenhum homem comum, e sim Deus. Eu o vi, agora estou me lembrando que Ele colocou a mão em minha testa. Quando eu acordei, eu o vi, muito brilhante, parado no meio do quarto, foi quando me disse aquilo: conto contigo! Depois me acenou com a mão e desapareceu na minha frente. Diga-me, pai, diga-me, por favor: alguém tem a capacidade de curar e depois sumir, se evaporar no ar? Diga, pai.

– Filho, que é isto que está dizendo?

– Pai, quem esteve aqui em casa e me salvou foi Deus e nos deixou uma mensagem. Eu só não compreendo porque Ele disse que contava comigo. Será que é para eu continuar frequentando as missas e ser um católico fervoroso? Será, pai?

Aos tropeções, chegaram assustadas ao alpendre Mabélia e as duas filhas. Quando acordaram não viram Januário na cama e por isso saíram correndo desesperadas casa afora. Ao se deparar com os dois, a esposa arregalou os olhos, pasma.

– Meu Deus, o que vejo?

– Calma mãe, estou bem.

– Arnaldo, o que houve?

– O homem prateado, para onde foi o homem prateado?

Neste instante, Arnaldo saiu correndo pelas ruas da Vila, perguntando a todos se tinham visto algum homem prateado, nem se lembrando de que Januário havia lhe dito que ele desaparecera ainda no quarto. Ninguém viu, e estranharam sua atitude. Perguntou se viram o clarão da noite anterior lhe narrado pela esposa. Sim, todos se assustaram com o clarão, que de acordo com o Padre Alaor foi um sinal de Deus, mas nenhum deles havia visto um homem prateado, inclusive um primo, que perguntou:

– Arnaldo, o que é isso, que homem misterioso é este?

– Ele esteve agora conversando comigo.

– Ninguém viu esse homem na sua casa, muito menos no alpendre. Inclusive, eu passei pela calçada e vi você tirando um cochilo justamente no alpendre. Que ideia é essa?

– Eu já disse, ele esteve há pouco lá em casa e agora sumiu.

– Arnaldo, volta pra casa, você não está bem, procure o Padre Alaor.

– Como não estou bem? E o que o Padre Alaor tem a ver com isso?

– Ele disse que foi um sinal de Deus, talvez o clarão tenha confundido a sua mente e, na mente, você criou este homem prateado. Volta pra casa que o Januário está doente precisando de você.

– O Januário está lá no alpendre todo serelepe. E sabem quem o curou? Pois é, foi justamente o tal homem prateado. Por isso, onde está este danado de homem prateado?

– Então ele melhorou?

– Parece que não teve nada.

– Ótimo, volta pra casa, eu vou avisar o Doutor Mangabeira que tudo está bem.

Quando Arnaldo chegou em casa, a esposa e os três filhos estavam lanchando na cozinha. Januário, que já havia contado à mãe e às irmãs tudo o que ocorrera, estava calmo e sereno, assim como os outros. Arnaldo se juntou a eles. A alegria era contagiante. Olhando de soslaio, percebeu que os olhos do filho estavam com coloração anormal, um pouco azulada. Este falou:

– Não se preocupe em procurar o homem com a roupa prateada, tenho certeza que ele voltará, e quando voltar, o senhor vai ter a certeza de que ele é mesmo Deus.

– Oh filho, não diga isso, minha cabeça está muito confusa, estou tendo umas visões estranhas relacionadas com a minha viagem, com este misterioso colar aqui e com este homem prateado. Não consigo concatenar as ideias, gente, é só eu pegar esse colar e olhar pra bolinha azul e pronto, um monte de coisas vem aos borbotões na minha mente.

Lá estava Arnaldo olhando para a bolinha azul do colar alienígena. Sua mente parece que entrou num estado de caos. Inúmeras imagens se sucediam umas às outras. Viu-se numa tempestade. Era noite, o lugar montanhoso e o caminho rodeado de ribanceiras. Seu cavalo sofreava com medo de trotar naquele caminho. Num instante, viu uma luz, uma luz resplandecente descendo do céu. Sentiu seu corpo tremer, batendo-se em árvores, misturando-se a folhas encharcadas e lama. Sentiu uma dor cruel, como se seus ossos estivessem todos partidos. Viu-se olhando para a perna esquerda. O osso estava partido, quase todo para fora do corpo. Sentiu um feixe de luz trespassar-lhe as retinas. O corpo todo tremia em convulsões quando percebeu Mabélia lhe chamando:

– Arnaldo, Arnaldo!

– O que foi, por que está me balançando assim?

– É que você estava olhando para a bolinha azul do colar e de repente ficou parado e com os olhos esbugalhados.

– Viu, foi o que te falei, toda vez que olho para essa bolinha é assim, fico tendo visões. E ainda tem esse homem prateado que eu vi e o povo jura de pés juntos que não teve homem prateado algum por aqui. Será que fiquei lelé da cuca?

– Foi Deus, pai, foi Deus – disse emocionado Januário

– Filho, calma, não pense nisso por enquanto. Não estou querendo afirmar que você está dizendo bobagens, a coisa é muito complicada. Deus aparecer a alguém não é uma coisa banal do dia a dia. Lembre-se dos profetas, não há uma única citação na Bíblia sobre o aparecimento de Deus aos profetas numa vestimenta prateada e brilhante. Sei lá, tem uma ideia louca passando pela mente, assim, assim…

– Que ideia louca é essa, marido? Por que você está rindo?

– Homem prateado e brilhante e esse colar que misteriosamente apareceu em meu pescoço. Gente, estou achando que tive um contato de terceiro grau e que aqui em casa esteve um ser de outro planeta, um extraterrestre. Ah, foi isso, um alienígena esteve aqui em casa e…

– Pai, que sandice é essa? Não fale isso, por favor, como pode chamar de alienígena o nosso Deus, que aqui veio e me curou?

– Januário, Januário, já te pedi. Eu é que te peço por favor. Portanto, por favor, por enquanto segura a barra com este negócio de Deus.

– Mas, por quê?

– Filho, a coisa é muito séria. Se você sair por aí espalhando que Deus esteve aqui em casa para te curar pode cair no ridículo e as pessoas começarem a dizer que você está com o juízo perturbado. Só por eu ter perguntando pelo homem prateado já estão pensando que fiquei louco. Imagina então você dizer que Deus esteve aqui! Entendeu? Vá, converse com o Padre Alaor e ouça a opinião dele, vamos ver o que vai dizer disso tudo.

– Tudo bem, pai, vou me segurar e procurar o Padre Alaor.

– Ótimo. O negócio é a gente pensar, pensar e pensar muito sobre tudo o que aconteceu, principalmente a respeito desse misterioso colar.

– É, esse colar é muito estranho. Será que não foi mesmo um presente daquela xicazinha lá…

– Ora Mabélia, tenha dó, eu já disse que não sei como veio parar no meu pescoço.

– Tudo bem, então me conta direitinho tudo sobre a sua viagem ao Pontal das Maritacas, tim-tim por tim-tim.

Hum, que eu me lembre, a ida foi muito tranquila, fiz o que tinha a fazer e já eram umas seis da tarde. O Seu Honório fez tudo pra eu pernoitar em sua casa dizendo que seria uma loucura sair a cavalo numa chuvarada daquela. Custei a convencê-lo de que precisava dormir em casa porque tinha agendado uma visita a uma fazenda, bem cedo, e não podia faltar, e que, além do mais, eu conhecia o caminho como a palma da mão, mesmo sendo noite sem lua. Portanto, parti. Apesar da dificuldade por causa do terreno enlameado, eu já estava chegando à Vila. Aí entra o que eu disse sobre as dez horas. Eu me lembro com certeza que um baita dum relâmpago assustou o cavalo. Foi quando cai. Daí pra frente está tudo atrapalhado na minha cabeça. Tem alguma coisa me dizendo que eu também vi o clarão. Tem alguma coisa me dizendo que sei a origem desse colar. Mas é o que eu digo: tem alguma coisa me dizendo isso tudo, mas só que não sei o que é. Além do mais o… Januário, está sentindo alguma coisa?

– Pai, aquele homem prateado não sai da minha cabeça. Por que eu tive a febre? Eu sinto que foi ele que me curou. A cena dele evaporando-se no ar foi muito forte.

– Imagino, meu filho. Por isso eu digo e redigo. Houve algo muito sério aqui contigo por causa da febre e comigo naquelas montanhas por causa desse colar. Por que toda vez que fixo o olhar nessa bolinha azul eu fico agitado e um monte de coisas vem à mente? Por isso só nos resta esperar. Vamos ver o que o Padre Alaor vai dizer sobre isso.

Depois do lanche e do longo papo, a família Mantiqueira estava mais calma. Fato raríssimo entre eles, ausentaram-se da missa dominical. Mais do que normal porque o psicológico da turma não estava nos devidos lugares. As nuvens teimavam em dominar as alturas, mas não com tamanha intensidade dos dias anteriores. Seria até possível que o astro rei surgisse para alegrar a Vila. O relógio marcava oito e meia da manhã. Apesar dos acontecimentos nefastos, era preciso continuar com os afazeres comerciais que a vida exigia. Por isso, Arnaldo e Januário selaram dois cavalos e saíram em direção a uma fazenda de um amigo para fechar a compra de uns bezerros. Mãe e filhas estavam no alpendre quando apareceu o Padre Alaor.

– Bom dia, Mabélia, o que aconteceu de tão importante que impediu a presença de vocês na missa da manhã?

– Bom dia, Padre Alaor, sua bênção. O senhor sabe que não costumamos faltar, né, mas estamos ainda um pouco estressados com os últimos acontecimentos principalmente por causa do Januário, por isso preferimos curtir a manhã em família. Espero que não tenha ficado chateado conosco.

– De maneira alguma, Dona Mabélia. Como se diz na gíria, vocês tem muita gordura para queimar. A propósito, se fosse possível eu precisava falar com o Januário.

– Ele não está, padre, o Arnaldo precisou ir a uma fazenda aqui perto e considerou conveniente levar o Januário para espairecer a cabeça do rapaz. Quando ele chegar eu dou o recado. Ele está mesmo querendo falar com o senhor.

– Que bom, então eu o fico aguardando. Até mais ver, Dona Mabélia.

– Sua bênção, padre, e até logo.

* 1 – Esta capacidade do ser extraterrestre se deve a uma pulseira, de nome Esnart, usada no braço esquerdo, porque o Córtex Cerebral do lado direito comanda as ações neurológicas do lado esquerdo. Comandada por ondas cerebrais, ela irradia ondas eletromagnéticas. Quando estas ondas chegam ao alvo vivo, imediatamente ele entre em estado de sono REM, que perdura não mais que dez a quinze minutos. Normalmente, após este tempo transcorrido, o alvo vivo volta ao seu estado fisiológico rotineiro. Durante este tempo, se perturbado, acordará como se acorda de um sono tradicional.

2 – Aqui está presente o questionado Teletransporte, que os cientistas terráqueos afirmam categoricamente ser inviável como fora apresentado na série de ficção científica Jornada nas Estrelas. O indivíduo recebe uma radiação ou feixe de luz invisível e se desmaterializa. Comandado pela nave, o indivíduo se materializa num local pré-determinado. Depois acontecia o reverso. Bem, os cientistas daqui dizem que isso é impossível. Acontece que os cientistas daqui não conhecem o poder tecnológico dos extraterrestres, que já dominam esta técnica há séculos.

* Texto: Eitel Teixeira Dannemann.

* Foto: Desenho e montagem de Eitel Teixeira Dannemann.

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