O medo dos poderes invisíveis, inventados ou imaginados a partir de relatos, chama-se religião. (Thomas Hobbes − 05/04/1588 – 04/12/1679)
Quarta-feira, 13 de janeiro de 1982. Discutia-se no mundo todo aquele ajuntamento de naves espaciais vindas sabe-se lá de onde. Nunca na existência humana do planeta Terra houve uma tão magnífica quantidade de objetos voadores extraterrestres pairando por entre a estratosfera do além. Os possuidores de divisas, qualquer que fosse, nada tinham a fazer senão esperar. Lá estavam eles, os Deuses, no negro vácuo da incerteza. Fazendo o que? Esperando o que? Santa misericórdia esta maldita impotência dos homens que se vangloriam com sua tecnologia. Tantos e tantos satélites em órbita ao redor da Terra. Tecnologia de altíssima monta. O gênio humano já esteve na Lua, não somente uma única vez. Já espionou vários planetas com suas magníficas e estupendas sondas espaciais. Sabia-se uma enormidade de características sobre o infinito espaço. Até corações artificiais já palpitavam nos tórax dos incautos. Jatos rasgavam os céus à velocidade do som. Havia usinas hidrelétricas gigantescas, reatores nucleares gigantescos. Sim, o átomo havia sido dominado. Era a mais pura e sensacional tecnologia, a tecnologia dos humanos repletos de neurônios contaminados pela soberba. Os humanos se consideravam a obra prima divina, o ápice do poder criativo de Deus. Eram os poderosos, os únicos e sensacionais donos de todo o Universo. E agora? Lá estavam centenas e mais centenas de máquinas espaciais pilotadas por enigmas existenciais. Que poder era aquele? Como, simplesmente como, alguém ou alguma coisa teve a petulância de confrontar o perfeito e sábio ser humano? Que tecnologia era aquela? Afinal, o que estava acontecendo? Perguntas e mais perguntas sem respostas, nenhuma sequer. O crânio humano se viu cravado por um punhal da realidade, uma realidade nua e crua. Neurônios foram dilacerados pela lâmina afiada. Trôpegos, não tinham coragem de dizer uns aos outros que não representavam absolutamente nada na imensidão do cosmo. Eram unicamente um grãozinho de areia no ajuntamento de todos os desertos e de todas as praias existentes no planeta. Lá estavam eles, os extraterrestres, altivos e magnânimos, a mostrar aos humanos que eles, tanto na razão tecnológica quanto na emoção perdulária, ainda estavam na idade da pedra.
Pois bem, discutia-se no mundo todo aquele ajuntamento de naves espaciais vindas sabe-se lá de onde. Um grupo de pessoas importantes do nosso nobre país, alheio ao que poderia vir lá de cima, discutia outro assunto, de imensos interesses para muita gente, pois envolvia milhões e mais milhões de dólares: o Projeto Jarí, do magnata americano Daniel Ludwig, que teve início em 1967. A inadaptação do projeto às condições da floresta e os prejuízos crescentes levaram o magnata, em 1981, a repassar o empreendimento a um grupo de empresários brasileiros. Lá de cima, os Deuses riam desta dinheirama jogada fora. Na diocese de Pico da Glória, Bispo Ednando discutia com seus auxiliares as alternativas possíveis do desesperado Vaticano. Em Meca, vários Ulemás de Alcorão nas mãos igualmente traçavam os planos adequados. Da mesma forma, outras religiões que tiveram acesso a um mínimo de informação sobre o que estava acontecendo não perdiam tempo e tramavam as palavras que seriam usadas para negar a seus seguidores os novos Deuses. Era o que se passava pela mente do Bispo Ednando, que havia recebido a visita do Cardeal Torentino, vindo diretamente de Roma, de novo.
– Por que eles não tomam a iniciativa de nos contatar? – perguntou o Bispo.
– Ora, Bispo, eles já fizeram contato, há muito tempo, mas não foi conosco, e sim com a família Mantiqueira.
– Não entendo este silêncio deles, o que eles pretendem. De acordo com as últimas informações, há várias naves lá no espaço, sem sabermos a quantidade. Uma delas já desceu lá na Vila do Córrego Dobrado e depois ficou passeando pela estratosfera. 20 caças atacaram-na. Foram disparados 9 torpedos atômicos e aquilo para eles foi que nem cócegas. Revidaram e os 20 caças foram destruídos que nem moscas. Agora estão lá, aquele monte de naves. Fazendo o que? Esperando o que? Já tentamos todos os contatos possíveis e eles não respondem. É Cardeal, acredito que estamos próximos do fim.
– Será mesmo? Concordo que é muito estranho este silêncio. Com tantas naves lá no céu é realmente instigante eles não descerem logo para nos dominarem.
– E quanto a nós, Cardeal?
– Bispo, para falar a verdade, o Vaticano está mais perdido do que cego em tiroteio. Não há saída. As autoridades sabem muito bem que não temos como enfrentá-los. As autoridades sabem que só nos resta esperar a invasão para descobrimos se eles virão em paz ou a fim de nos massacrar.
– E quanto aos leigos? Por que a humanidade num geral não é informada sobre o que está acontecendo? Neste exato momento, no mundo todo, as pessoas estão em suas atividades rotineiras sem a noção de que sobre as suas cabeças estão centenas de naves prontas a invadir a Terra. Se as autoridades competentes preferem o silêncio, por que nós não tomemos a frente e anunciamos a verdade?
– Não podemos fazer isso. De acordo com os entendidos, é certo que o planeta se transformará num verdadeiro caos, tamanho será o desespero das pessoas. Além do mais, o Vaticano se comprometeu a não divulgar a verdade. Por falar nisso, é uma de nossas características, certo?
– Que característica é essa, Torentino?
– Camuflar a verdade, Bispo, camuflar a verdade.
– Ah, isso é. Se a verdade que está escondida nos porões do Vaticano vier a público, adeus Deus. Sem trocadilho, desculpe.
– O que irrita é a incerteza sobre o que vai acontecer. Esses caras lá em cima poderiam decidir logo se vão ou não vão nos invadir para sabermos qual caminho tomar.
– O Vaticano já traçou algum caminho?
– É complicado, Bispo, muito complicado. Se por um acaso os ETs nos destruírem, fim de papo, nada mais a conversar e muito menos a explicar, pois foi-se ralo abaixo o Cristianismo. Não só o Cristianismo, mas tudo relacionado a qualquer tipo de crença. Isto porque não sobrará ninguém para rezar ou praticar algum ritual. Por outro lado, se vierem em paz, aí a coisa vai feder horrores. Da mesma forma, adeus a todos os nossos seguidores. Bispo, se os alienígenas aqui aportarem na base da paz com aquele mundaréu de naves, ninguém mais vai acreditar em Deus. E pode escrever aí que o moral do Däniken com os seus deuses astronautas chegará lá onde estão as naves, na estratosfera. Já imaginou, Bispo, nós que massacramos os deuses astronautas do Däniken, dizendo que o cara é louco e acima de tudo ateu, que é isso, que é aquilo, que é tudo farsa, e de repente, não mais que de repente, o mundo se depara com seres alienígenas? Já imaginou se a presença dos extraterrestres chegar ao conhecimento dele? Se assim acontecer, espero que o Däniken não esteja vivo para saborear a sua vitória.
– Vamos partir da hipótese de que os ETs virão em paz e…
– Bispo, um aparte para você entender melhor a coisa, apesar de que estou tão confuso que também não estou entendendo bulhufas. Já sabemos que eles estão em contato direto com a família Mantiqueira, com o Padre Alaor e num geral com a população da Vila e das imediações. Há suspeitas fortíssimas de que as duas crianças têm a genética deles. Portanto, pelo menos por enquanto, a intenção deles é de paz, sabendo-se lá o que se passa na cabeça deles. Estou dizendo isso baseando-me apenas na realidade até o presente momento. E esta realidade nos mostra que o negócio deles é chegar em paz. O caroço do angu, como vocês costumam dizer aqui no Brasil, se reside naquelas centenas de naves espaciais estacionadas lá nas alturas. Por quê? Se até o presente momento demonstraram serenidade, qual a finalidade, então, da presença de todas aquelas naves? Eis a questão, Bispo.
– É, também não consigo compreender.
– Mudando um pouco de assunto, e o novo padre da Vila?
– Assustado, Cardeal, tremendamente assustado. Os fiéis continuam assíduos às missas, mas ele me disse que estão estranhos. Eles não dizem Deus, e sim Sued. A todo momento falam de uma nova era que está próxima a chegar. Mesmo sabendo de tudo, Padre Barbosa está assustado.
– Ele já teve a oportunidade de conversar com o Padre Alaor, quer dizer, com o ex-padre Alaor?
– Já tentou, mas sem sucesso.
– São duas e meia da tarde. Que tal se nós dois aparecêssemos de surpresa na Vila para uma visita? A única coisa ruim que poderia acontecer seria não sermos recebidos.
– Boa ideia, boa ideia. Vamos então.
Na residência dos Mantiqueira, que, igualmente como toda a população civil do mundo, não sabiam que seus Deuses estavam prestes a travarem uma batalha fatídica, a vida seguia seu ritmo tradicional. Mabélia preparava uma deliciosa massa de pão de queijo. Mara e Sofia se divertiam com seus adolescentes Deuses. Januário e Padre Alaor estavam no curral. Pouco antes havia conferido os acabamentos do laticínio. Lá fora, alguém chamou. Lá dentro, a mãe pediu a Sued Filho que fosse verificar. A criança, de pouco mais de dois anos, mas com corpo de pré-adolescente, abriu a porta da sala e chegou ao alpendre. Altiva como um nobre imperador, viu quem chamara, cumprimentou-os efusivamente, entrou e os anunciou. Bispo Ednando e Cardeal Torentino ficaram pasmos, mesmo tendo pequena noção sobre a origem daquela criança. Mabélia os recebeu.
– Bom dia, senhores. Se não me engano é o Bispo Ednando, não é? Sua bênção.
– Exatamente, Dona Mabélia, Deus te abençoe. Este aqui ao meu lado é o Cardeal Torentino, de Roma, que veio…
– Um cardeal de Roma, do Vaticano?
– Sim, Dona Mabélia, do Vatic…
– Oh, quanta honra, um cardeal de Roma veio nos visitar. Sua bênção, Cardeal.
– Deus dê muitas felicidades à senhora e sua família. É um prazer conhecê-la.
– Por favor, vamos entrar. Sentem-se. Vejam, minhas filhas, é o Bispo Ednando e um cardeal do Vaticano. Bispo, Cardeal, esta é Mara e sua filha Asued e esta é Sofia e seu filho Sued Filho. Aguardem que vou buscar Januário e Alaor.
Mabélia se dirigiu ao curral. Na sala de visitas da residência dos Mantiqueira, os dois eclesiásticos se admiravam com as duas crianças. Mães e filhos estavam sentados em frente aos dois. Mabélia, Januário e Padre Alaor estavam já na cozinha quando ouviram a voz de Sued Filho. Pararam e resolveram esperar.
– Então o senhor é cardeal do Vaticano. Qual o seu nome?
– Torentino – respondeu o romano.
– Tem fé no que pratica?
– Como assim? – respondeu Torentino não acreditando no que via e ouvia.
– Tem fé em Deus?
– Mas é evidente que sim, pois sou um cardeal da Igreja Católica Apostólica Romana – respondeu Torentino incrédulo e olhando para o Bispo, pois não conseguia acreditar naquele menino tendo um comportamento de adulto.
– Mara, por que seu irmão está demorando? – atalhou o Bispo para serenar o estresse do cardeal.
– Estou aqui – disse Januário entrando na sala, pois não queria deixar Sued Filho constranger mais do que já havia constrangido o cardeal.
Enquanto Mabélia e Padre Alaor ficaram na cozinha. Mara, Sofia e as crianças, deixaram Januário à vontade com as visitas e também foram para a cozinha.
– Mas que prazer, Bispo Ednando, sua bênção.
– Deus te abençoe, Januário. Quero te apresentar o Cardeal Torentino, de Roma.
– A minha mãe me falou que aqui estava um cardeal do Vaticano. É uma honra para nós. Sua bênção, Cardeal.
– Sua bênção, filho de Deus. Prazer em conhecê-lo.
– Pois muito bem, Bispo, o que lhe trouxe à nossa humilde casa em companhia do ilustre Cardeal?
– O Padre Alaor está aqui?
– Apenas Alaor, Bispo, apenas Alaor. Não se esqueça de que ele não é mais padre. Hoje, sua missão é muito mais nobre.
– Desculpe, é a força do hábito, pois Padr…, quer dizer, Alaor foi um excelente servente de Deus. Mas por que você disse que agora a sua missão é mais nobre?
– Novos tempos, Bispo, novos tempos. Alaor, venha até nós – gritou Januário.
– Boa tarde a todos – entrou Alaor à sala cumprimentado os dois e sentou-se no sofá. Queriam falar comigo?
– Boa tarde, Alaor. Creio não ser preciso lhe apresentar o Cardeal Torentino?
– Queriam falar comigo?
– Pois é, o Cardeal Torentino considerou que naquele encontro de vocês ficou, de sua parte, algum ressentimento.
– Qual nada. Nada mais tenho a ver com padres, bispos, cardeais e tudo o que é relacionado com a hipócrita Igreja Católica e igualmente com todas as hipócritas religiões.
– Que é isso, Padre?
– Padre porra nenhuma. O que vocês querem?
– Estou assustado contigo, Alaor. Por que esta agressividade? Se não respeita a mim, pelo menos respeite a presença do Cardeal Torentino.
– Às favas com este empertigado e hipócrita.
– Ei, calma meu senhor. Não admito que… – tentou retrucar o Cardeal, mas foi logo cortado.
– Que calma porra nenhuma, vocês com suas mentiras me dão nojo. Não perco mais tempo com gente como vocês – disse Alaor e se retirou da sala.
– Desculpem o destempero de Alaor – disse Januário ao Bispo tentando serenar os ânimos.
– Deixe estar, meu amigo, o Cardeal Torentino queria apenas ser amigável.
– Por que esta reação? – perguntou o Cardeal.
– Como disse o Bispo, deixe estar. Agora vamos ao que interessa. O que querem perguntar?
– Januário, só viemos aqui…
– Bispo, me deixe falar. Responda-me, rapaz, por favor, quantos anos têm aquelas crianças que aqui estavam?
– Asued, a menina, dois anos. Sued Filho, o menino, um ano e meio. O que haveria de interessante nisso?
– Só pode ser brincadeira. Eles devem ter, no mínimo, uns dez anos.
– Só na aparência, Cardeal, só na aparência.
– Não, mil vezes não. É impossível…
– Nada é impossível para Sued?
– Sued, Sued, quem é Sued?
– Deixa estar, Cardeal, o senhor não compreenderia, seria muito para seus neurônios. Para nós não há nada de errado por aqui, muito pelo contrário. O senhor não concorda?
– Claro que não, isto é óbvio. Tem alguma coisa errada aqui.
– Alguma coisa errada aqui? Seria a decoração da sala?
– Ora seu moço, não me venha com zombarias. Já basta o ex-padre.
– Ora meu prezado e poderosíssimo Cardeal vindo diretamente de Roma, pouco me importa o que você pensa, não lhe devo nenhuma satisfação a respeito da minha família. Tenho mais o que fazer. A porta da sala pede para se retirarem. Por favor, passem bem.
Bispo Ednando e Cardeal Torentino se dirigiram para a igreja à procura do Padre Barbosa. Chegando à praça principal, estacionaram o carro, desceram e sentaram-se num banco para recuperarem os ânimos. Foi duro, duro demais. Passados uns quinze minutos, decidiram em conjunto que não estavam nem um pouquinho com vontade de conversar com o Padre Barbosa. Foi duro, muito duro. Entraram no carro e tomaram o rumo de Pico da Glória. Se os fiéis passarem a se comportar como Januário e Alaor, a situação se tornaria terrivelmente crítica para o glorioso Vaticano.
Enquanto a verborragia dicotômica comia solta nos ares terráqueos entre os homens de divisas e os considerados representantes do pai de Jesus Cristo, lá no espaço sideral, os Deuses do Cosmo estavam prontos em suas naves para o combate.
* Texto: Eitel Teixeira Dannemann.
* Foto: Desenho e montagem de Eitel Teixeira Dannemann.