Quando minhas paredes de tijolos de adobe reluziam ao sol na minha feliz juventude, ouvi muitas histórias sinistras sobre este pedaço de sertão repleto de árvores de cabaça¹. Diziam que próximo daqui vozes estranhas espantavam até os tropeiros, considerados homens cheios de coragem, mas tremendamente supersticiosos². Eu nunca liguei para esse tipo de superstição. Só o que me preocupava era a pobreza que reinava em minha volta. Falava-se muito numa máquina de beneficiar arroz da Família Garcia³. Quando nasci, esta Rua Mata dos Fernandes era uma estrada que partia do Mercado Municipal em direção à comunidade do mesmo nome e outras. As almas que me construíram tiveram a ideia de montar aqui um pequeno secos e molhados que atendia os viajantes e aqueles da vila que tinham algum dinheiro sobrando. Fui muito frequentada, querida, ponto de parada de carros de boi. Já cheguei a presenciar oito deles estacionados em minha porta, a maioria com lindos Caracus4. Ai o tempo foi passando, incomodamente célere, asfaltaram a rua, o bairro cresceu, melhorou muito o poderio econômico dessa gente e pronto, tudo se acabou. Hoje sou apenas um restolho daquele passado. Olho em volta, vejo a Vila Padre Alaor à minha frente, percebo as construções do meu tempo sendo demolidas e substituídas por outros imóveis, outras casas, e os fatídicos prédios. Eu sei que a gente nasce só com a passagem de ida, portanto em breve serei apenas lembrança para aqueles que me conheceram. Você aí que me olha com esta carinha serena e triste por pressentir o meu destino, não se apoquente e lembre-se sempre que é bom olhar pra trás e perceber que tudo o que você fez foi de alguma valia. Vou em paz, pois tenho ciência de que desde o primeiro tijolo assentado passei a pertencer à História de Patos de Minas. E deixarei saudade!
* 1: A cabaça (Lagenaria siceraria) é a designação comum dos frutos de plantas da família das cucurbitáceas. É também conhecida pelos nomes porongo, porongueiro, cabaceiro e, na Amazônia, jamaru. O fruto depois de seco é amplamente utilizado de várias maneiras, como vasilhas para refeições na forma de copos ou cuias, moringa para transporte de líquidos, entre outras utilidades.
* 2: Leia “O Vale das Cabaças Uivantes”.
* 3: Em 1947, Genésio e Mário Garcia Roza adquiriram a Fazenda Limoeiro, loteando quase toda a área que viria a ser o Bairro Vila Garcia. Nela, ingressam no comércio cerealista, construindo armazéns para 50.000 sacas de cereais, instalando maquinário para milho, feijão, arroz e café.
* 4: Raça bovina desenvolvida no Brasil Colonial, com pelos lisos e avermelhados, sendo que a maioria apresenta a cor amarela ou baia, podendo chegar ao vermelho tijolo, mas também existe aqueles quase brancos, como na raça Charolesa.
* Texto e foto (17/12/2017): Eitel Teixeira Dannemann.