CASO DE VICÊNCIA, O

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Era abril de 1885 quando Firmino Antônio Bezerra acusou “Vicência de tal, mulher de José Joaquim de Araújo”, a fim de fazê-la assinar um termo de bem viver e ser penalizada. Diz Firmino que, residindo em sua vizinhança uma mulher de nome Vicência, casada com José Joaquim de Araújo, esta em lugar de guardar a decência e a honestidade necessária[s], não só não respeita as famílias, como insulta com palavras ofensivas a boa moral como ainda ontem eram quatro horas da tarde, que cometeu um sem número de desatinos e escândalos proferidos na pessoa de minha mulher Justina Pereira de Carvalho, portanto, a bem da moral pública, do respeito que se deve às leis e famílias honestas representa o suplicante a Vossa Senhoria.

Note-se como o auto de denúncia é mais “rico” e pende para o campo da moralidade com muito mais intensidade do que os autos de denúncia contra outros acusados por vadiagem abordados, como no caso dos três Antônios¹.  Vicência já começa tendo seu sobrenome negado: é descrita apenas a mulher de José Joaquim de Araújo, sendo colocada como uma “de tal”. Assim como Aquino Nunes e Delfino dos Santos, ela esteve envolvida em confusão. No seu caso, contudo, o envolvimento é descrito como “desatino”, aproximando-a da noção de loucura. Além da questão da “honestidade”, presente nos processos anteriores, acrescenta-se aqui a da “decência”. Em se tratando de uma ré, a criminalização ganha contornos mais moralistas – como se o denunciante estivesse a fazer um favor para sua comunidade ao denunciá-la. A “decência”, indo além da noção de honestidade, refere-se a uma “compostura”, a um “decoro” público a ser mantido e vigiado, com a ameaça sempre presente de vexação e violências.

Entretanto, o processo não tem conclusão propriamente dita. Apesar de o oficial de justiça ter conseguido informá-la do mandado, nada mais se sabe a seu respeito pelo documento. Isso nos impele a lembrar o trabalho de Lerice Garzoni. Os estudos dessa autora podem ajudar a compreender o porquê de o caso de Vicência não ter sido levado às últimas consequências. Primeiramente, vale ressaltar que Garzoni constatou que as mulheres indiciadas por vadiagem nos arquivos pesquisados por ela eram minoria e, entre elas, a maioria (70%) eram solteiras. Nesse sentido, Vicência não estaria exatamente como um caso típico. Além disso, como Garzoni explicou, havia uma associação entre casamento e moralidade, quando mulheres eram acusadas de crime de vadiagem. Nesses casos, estar casada era fator que poderia contar favoravelmente para a acusada, especialmente se a defesa conseguisse articular o preconceito de que o casamento implicava sustentação econômica pelo marido ao fato de que o crime de vadiagem envolvia incapacidade de se sustentar.

Se isso pode ter sido um dos fatores que pesaram para que não se desse sequência ao caso de Vicência, cumpre observar que seria imprescindível complementá-lo com informações a respeito e, se possível, com exemplos de outras mulheres indiciadas – ainda que não em Patos de Minas. Para essa finalidade, valeria a utilização, por exemplo, do caso de Mariana Rosa da Silva Correa, analisado por Garzoni para formular as explicações aqui referidas. Narra a autora que Mariana foi acusada com base no artigo 402 do Código Penal, que é sobre “capoeiragem” e porte de armas, mas que o andamento do processo foi semelhante ao de um processo por vadiagem. Mariana, em sua defesa, alegou ser casada, acusou vizinhas e disse que iria se defender em juízo. Esse exemplo é importante não apenas para observar como os elementos de uma versátil “moralidade pública” atrelados ao feminino são usados por autoridades para rebaixar moralmente as acusadas, como ocorre com Vicência, mas também identificar a possibilidade de elas usarem tais papéis em suas táticas de defesa, como fez Mariana. Mesmo no caso de Vicência, não se deve descartar a hipótese de que possa ter havido alguma articulação defensiva para impedir que o processo corresse como queria a parte acusadora.

* 1: Leia “O Caso Antônio da Eva”, “O Caso dos Dois Antônios”.

* Fonte: Patos de Minas e o pós-abolição: uma proposta de abordagem para o ensino médio com uso de documentos (2022), de Arthur Willian Soares Alves.

* Edição do texto: Eitel Teixeira Dannemann.

* Foto: colorindo.org, meramente ilustrativa.

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