Trata-se de Antônio Delfino dos Santos e Antônio Aquino Nunes. As denúncias contra eles foram autuadas no mesmo dia: 7 de janeiro de 1890. Ambos tiveram seus autos de denúncia lavrados por Eduardo Ferreira de Noronha, então Chefe de Polícia. Contra Delfino dos Santos, lê-se: Sendo notoriamente público que no distrito desta Vila reside Antônio Delfino, moço vadio e turbulento, e devendo ser obrigado a assinar o termo de bem viver, determino que se faça mandado para ser conduzido à minha presença. Aquino Nunes é denunciado de maneira muito similar: Sendo notoriamente público que no distrito da Vila reside Antônio Aquino Nunes, que não tem ocupação honesta e é turbulento, que por palavras e ações ofende os bons costumes, a tranquilidade pública e a paz das famílias e devendo ser obrigado a assinar termo de bem viver, determino para que se passe mandado para ser conduzido à minha presença. Nos dois casos, Noronha chamou Lino Theodoro de Mendonça e Manoel de Britto Freire como testemunhas.
Tamanha similaridade em autos de denúncias não é por acaso. Ao redigir uma denúncia de vadiagem, a autoridade policial seguia um previsível “protocolo”. Dessa maneira, a repetição era de praxe, sendo um modo de tornar mais garantida a condenação do acusado. Afinal, se os acusadores construíssem um caso “padrão” de vadiagem, seria mais fácil enquadrar o réu no perfil típico de culpados. Descrever de maneira singular cada ato de vadiagem implicaria em julgamentos específicos, que seriam mais propícios a absolvições. Assim, o raciocínio de produção de um “processo” por crime (ou contravenção) de vadiagem, em muitos casos, envolve a ideia de que quanto mais típica for a descrição do ato criminalizado, melhor para o êxito dos denunciantes.
Aquino Nunes, quando inquirido, disse ter nascido no Arraial de Santana, ter quarenta anos, ser casado, morar na Vila de Santo Antônio dos Patos e saber ler e escrever. Sobre não ter “ocupação honesta”, o réu respondeu que vivia de ferrar animais e que, quando tinha “cabedal”, trabalhava como sapateiro. Porém, perguntado sobre ter incomodado a tranquilidade pública, disse que “às vezes, quando fica esquentado, tem se dado o caso de haver altercações com outros”. Apesar disso, as duas testemunhas, Manoel de Britto Freire e Lino Theodoro Mendonça, disseram apenas que só o viam trabalhar como ferrador. Mendonça, inclusive, afirmou: “o serviço de ferrador nesta Vila não dá para a subsistência”. Entretanto, o mesmo Mendonça, quando inquirido sobre se o réu perturbava o “sossego público”, disse não ter nada a dizer. O desfecho, apesar disso, foi que Aquino Nunes foi obrigado a assinar termo de bem viver e condenado à pena de 30 dias de prisão ou 30 mil réis de multa. Julgou-se que sua ocupação não era honesta e que ele incomodava a tranquilidade pública. Note-se que, apesar de ter dito saber ler e escrever, não foi Aquino Nunes que assinou o termo, mas, a rogo dele, José Antônio de Oliveira, tendo registrado que o acusado não podia escrever.
No caso de Antônio Delfino dos Santos, porém, o depoimento revela peculiaridades. O acusado tinha apenas 18 anos e disse que sua ocupação é ser moleiro, e que trabalha por dia para muitos outros e quando não acha serviço com outros, trabalha para si em sua roça e quintal, e quanto a ser turbulento é verdade que entre si e outros tem havido desordens, que tem sido preciso intervenção de outras pessoas. Na verdade, Delfino dos Santos esclareceu (ou tentou fazer isso dizendo) que “praticou delitos para apaziguar delitos entre outros”. Pelo fato de ele ser menor de 21 anos, as testemunhas não foram ouvidas e o caso, segundo consta, teria sido remetido ao Juízo de Órfãos. Delfino dos Santos, porém, foi levado para a “cela militar”168. O processo termina com sua assinatura, logo abaixo da do delegado Eduardo Ferreira de Noronha, com caligrafia acurada.
Pode-se instigar o pensamento sobre as condições de sobrevivência naquele tempo. Afinal, os dois acusados alegaram ter ofícios. Criminaliza-se, com efeito, pelo fato de esses ofícios não serem vistos como “honestos” o suficiente, por supostamente não serem bastante para prover subsistência e por terem os acusados dado indícios de que se envolveram em confusões. Mas essa criminalização opera com base em informações vagas. Dá-se a entender que desentendimentos entre os “vadios” e os “outros” são estopins para que aconteçam as prisões daqueles, ainda que estes sequer apareçam na documentação. Não obstante, ainda que as “altercações” pesem nos processos, há uma enfática preocupação em avaliar as ocupações dos acusados.
Em contrapartida, tanto Delfino dos Santos quanto Aquino Nunes depuseram tentando demonstrarem-se seguros de suas condições de subsistência. Isso é notório porque não mencionam apenas um ofício. Ferrador e moleiro são ocupações que os acusados complementaram com outras atividades, sendo o caso de Delfino dos Santos mais emblemático, por indicar ser ele um jovem jornaleiro, tal qual Victorino. Aquino Nunes ainda entra nesse cenário como um homem mais velho, que vivenciava as dificuldades de se viver “sem emprego algum” na Vila de Santo Antônio dos Patos – ou de viver naquela Vila em que não havia empregos. Suas experiências, por certo, eram marcadas pela instabilidade.
Ao serem criminalizados, Aquino Nunes e Delfino dos Santos eram inquiridos menos pelas confusões em que se envolveram do que pela sua suposta falta de ocupação honesta. É de se subentender que autoridades como Eduardo Noronha estivessem sempre na espreita de pessoas que, por não terem garantia de subsistência ou trabalho estável, poderiam, supunha-se, provocar confusões. Esse policiamento das ocupações se encaixa no modo de construção da concepção de trabalho que vinha sendo elaborada no pós-abolição. Tal concepção envolvia constância, regularidade, certa dose de abnegação e, principalmente, a noção de que a ocupação e a renda eram garantidoras da retitude para com a ordem pública. Em oposição a essa ideia, porém, temos outra visão do trabalho, mais próxima da realidade do contexto patense: trabalho inconstante, informal, sem sossego e eventualmente relacionado a “altercações” e conflitos. É de se ponderar, além disso, em que medida esse trabalho visto como inútil e desonesto nos revela experiências de trabalhadores que organizavam costumeiramente seu tempo e seu intercâmbio material com a natureza.
Ainda que não haja evidências de que algo do tipo tenha ocorrido com Delfino dos Santos, vale pensar o uso, pelo Estado, do recrutamento militar como forma de dar destino aos “vadios” e tirá-los de circulação. Assim, deve-se destacar que a criminalização dos “vadios” compreende também uma reprimenda. Quem vivia essa experiência de trabalho inconstante, insegura socialmente, orientada por tarefas e repleta de conflitos certamente não estava nas classes dominantes. Interessante notar, porém, que a vadiagem poderia ser vista de outras maneiras, a depender da classe social de seu praticante. Por exemplo, o filho de Eduardo Ferreira de Noronha, J. Noronha, em 1967, escreveu um artigo em tom saudosista na Folha Diocesana (periódico de notável conservadorismo), lembrando dos tempos do pai e dizendo que, no ano de 1900, ele e “outros peraltas” viviam a “vadiar pelos campos e sítios adjacentes à cidade, andando, correndo, pulando, grimpando mangueiras, coqueiros, araticunzeiros”. O registro de J. Noronha, pintando um quadro idílico da Patos do pós-abolição, passa ao largo de lembrar que o pai, não fazia tanto tempo, prendia outros sujeitos que estariam “a vadiar”.
* Fonte: Patos de Minas e o pós-abolição: uma proposta de abordagem para o ensino médio com uso de documentos (2022), de Arthur Willian Soares Alves.
* Edição do texto: Eitel Teixeira Dannemann.
* Foto: Meramente ilustrativa.