CASO DO EX-ESCRAVO VICTORINO, O

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Era já à tardinha do dia 2 de fevereiro de 1890, quando, na então Villa de Santo Antônio dos Patos, o jovem José Maria dos Santos foi surpreendido na casa de Dona Delminda Angélica da Silva. Ele teria se deparado com Victorino, descrito como “ex-escravo do Coronel Antônio Dias Maciel” na despensa da casa, que, dizia a denúncia, teria sido “arrombada”. Victorino, por sua vez, estaria comendo um toucinho e, uma vez flagrado, teria interrompido a degustação. Além de ter sua liberdade relativizada pelo termo “ex-escravo”, ele foi acusado de incorrer no Artigo 274 do Código Criminal de 1830, isto é, tentativa de roubo.

Victorino foi acusado de arrombar a casa de Delminda e tentaram penalizá-lo por meio da tipificação do crime de tentativa de roubo. Nessa acepção, o “sossego” da casa teria sido, então, perturbado por alguém que adentra em um lugar no qual é um indesejado, um invasor. O réu, dessa forma, não era acusado apenas de um ato, mas também por sua presença.

No depoimento de José Maria dos Santos, a principal testemunha de acusação, constrói-se a narrativa de um arrombamento, que teria ocorrido com um cabo de enxada, e até mesmo de um momento de encontro entre a testemunha e o réu. Nessa versão, as ferramentas teriam sido usadas para danificar a parede e, assim, forçar a abertura da porta. Segundo José, que tinha 16 anos de idade e disse ser jornaleiro, Victorino teria inclusive tentado convencê-lo a não relatar o ocorrido, oferecendo leite, algo mais (difícil de identificar, pela escrita estar ilegível) e uma faca. O relato de acusação, portanto, reforça a ideia do arrombamento e ainda descreve Victorino como sujeito ardiloso. A menção à faca, além disso, certamente não pesaria em favor do réu. Mais: segundo José Maria, Victorino teria o “costume antigo de furtar”.

A atribuição feita pela testemunha e sistematizada pelo escrivão José Antônio Borges não era “por acaso” nem constituiu um acontecimento isolado em relação ao período histórico. O pós-abolição envolve uma marginalização do homem negro livre “como suspeito por antecipação de crimes que poderia ou não cometer. O crime maior seria o de ser negro”. O negro marginalizado era visto através de racionalizações como sujo, incapaz de disputar com o branco a liderança da sociedade, nos seus diversos níveis.

Essa imagem dos negros no pós-abolição estava presente na tentativa da acusação de ligar Victorino a um suposto hábito de delinquência. Essa tentativa claramente fazia uso do estereótipo de marginalizado. Evidenciam isso as constantes referências a ele como “ex-escravo do Cel. Antônio Dias Maciel”, estabelecendo uma posição que certamente era levada em conta para concretizar o objetivo da denúncia.

Enquanto ele é identificado como “ex-escravo do Cel. Antônio Dias Maciel”, a cidadania de Victorino é negada no âmbito jurídico. Além disso, a menção ao nome do escravizador, figura de destaque na política local, tinha, pelo menos, dois efeitos. Por um lado, situava o réu relacionando-o à “alta sociedade” local e, de certa forma, dando ao seu caso um marcador que demandava atenção. Não que isso tenha favorecido Victorino.

Marianna de Jesus, 47 anos, costureira e fiandeira, deu um curto depoimento que colocou em dúvida as alegações registradas no depoimento de José Maria dos Santos. Perguntada sobre os acontecimentos em questão, ela disse que não sabia se Victorino tinha ou não efetuado roubo, não sabendo também (“de consciência própria ou por ouvir dizer”) se o indiciado tinha “costume de furtar”. Apesar desse depoimento destoante, os demais investiram univocamente em reafirmar a narrativa de acusação e o suposto “costume” de furtar de Victorino.

Esperidão Antônio Soares, alfaiate de 38 anos, confirmou o relato de José Maria dos Santos e ainda mencionou ter ouvido a história por parte dele e da filha de Dona Delminda, Maricota. Praticamente o mesmo relato deu José Maria Valeriano, sapateiro de pouco mais de 20 anos de idade, que apenas acrescentou que Victorino teria saído correndo pelo quintal. Manoel Cassiano, última testemunha ouvida, jornaleiro de apenas 15 anos, somente confirmou a versão de José Maria dos Santos. Fica nítido, portanto, que houve uma tentativa de direcionamento único dos depoimentos.

Depois da coleta inicial de depoimentos, o delegado Eduardo Ferreira de Noronha escreveu ter ficado comprovado, pelos testemunhos e pelo auto de corpo de delito, que houve arrombamento. O delegado registrou ainda que Victorino fugiu e não foi preso em flagrante. O processo, então, foi remetido à Promotoria de Justiça e ao juiz municipal. Quem deu efetiva continuidade ao caso, porém, foi João José dos Santos, o segundo suplente do juiz municipal. Ele mandou intimar novamente as testemunhas e, naquela vez, também Victorino. O interessante é que, na segunda vez em que se foi ouvir as testemunhas, praticamente um mês depois do início do processo, o discurso de acusação começou a complexificar a versão inicial e a repetição agora ocorria com alguns detalhes novos.

No segundo depoimento de José Maria dos Santos, a nova versão foi de que Victorino teria utilizado uma chave para abrir a porta da despensa, depois de ter arrombado a porta da cozinha. Outra diferença notável foi que, apesar de reafirmar que Victorino tinha o costume de furtar, José Maria atestou que o réu, “tendo sido escravo da família, costumava entrar na casa a hora que queria”. A versão de Esperidão, em seu segundo depoimento, também teve o mesmo discurso de José Maria dos Santos. Ouvida pela segunda vez, Marianna de Jesus não reafirmou o desconhecimento alegado antes, mas apenas disse saber do que foi apontado por José Maria dos Santos. Além disso, ela teria afirmado que Victorino não efetuou o furto por causa da interrupção. Este último apontamento se repete no depoimento do sapateiro José Maria Valeriano, que apontou ser Victorino autor de outros furtos e ter “toda liberdade” na casa de Dona Delminda. Manoel Cassiano, por fim, confirmou a versão de José Maria dos Santos, não fazendo mais do que relatar o que havia sido dito a ele.

Em abril de 1890, o promotor interino Antônio Alves da Silva considerou estar “plenamente provada a criminalidade de Victorino”. Já em maio, foi feito o Libelo de acusação, que ratificava os passos do processo até então. O documento evocava, de fato, os artigos 269 e 274 do Código Criminal de 1830, de forma a acusar Victorino de tentativa de roubo, dissipando qualquer indefinição de denúncia entre furto e roubo.

Se os rumos do processo pareciam já irreversíveis, as remessas de autos posteriores ao libelo acusatório não deixam claro o que ocorreu com Victorino, de quem temos notícia apenas de um pedido do Delegado para que ele seja recolhido a uma cela. A data da prisão é 8 de fevereiro de 1892 , ou seja, dois anos depois da denúncia. Daí se segue um auto de perguntas em que Victorino diz ser filho de Manoel, que havia sido escravizado pelo Coronel Antônio Corrêa da Silva. Pelo que ficou registrado, sabemos também que Victorino disse inicialmente não saber que idade tinha e afirmou ser brasileiro, solteiro, jornaleiro e habitante de Patos. Ele não sabia ler ou escrever.

Victorino foi levado ao tribunal e, ali interrogado novamente, deixou mais algumas pistas sobre sua história. Já afirmava ter 24 anos. Com essa informação, sabemos que ele certamente conviveu com outras pessoas nascidas de “ventre livre” e, provavelmente, viu a escravidão perder o “sentido” no cotidiano, especialmente em um cenário em que a instituição nefanda tinha sua “legitimidade” contestada. Ele também alegou não ter feito arrombamento, mas ter encontrado a porta fechada e usado um buraco na parede para abri-la por dentro. De fato, os testemunhos de acusação enfatizavam muito o arrombamento, tendo nele um ponto comum, um eixo argumentativo que demonstraria a suposta violência da ação contra a casa de dona Delminda. Tal insistência, presente na fala de José Maria dos Santos e reafirmada pelas outras testemunhas (exceto Marianna, em seu primeiro depoimento), seria o fator central para sustentar uma acusação de tentativa de roubo.

A matéria jurídica acabou sendo resumida à questão do arrombamento: o júri, perguntado se houve ou não violência contra “a coisa”, isto é, se Victorino havia arrombado a parede da casa de Dona Delminda, decidiu negativamente. Por conseguinte, Victorino foi absolvido. A pena do escrivão registrou que ele disse que entrou na casa e que isto fez pela muita liberdade e confiança que tinha na mesma casa, pois tendo sido criado como escravo que foi da mesma casa, depois de liberto continuou a ser recebido com a mesma confiança pelos seus ex-senhores e por isso continuou a usar da mesma liberdade e confiança que dantes tinha e disse finalmente que não fez arrombamento algum porque o buraco que existia na parede ele já o encontrou feito.

Nos estertores da escravidão, a grande quantidade de escravos “de ganho” ou “de aluguel” era paga por jornada. O “jornaleiro”, portanto, foi a figura síntese do escravo urbano, representante por excelência da mediação entre trabalho escravo e assalariado. Figura que se manteve nos primeiros anos do pós-escravismo, mas que foi se extinguindo, substituída por formas mais modernas de relações trabalhistas. Enquanto jornaleiro negro, num contexto que envolvia lavradores, trabalhadoras domésticas, sapateiros, alfaiates e homens “da lei”, Victorino é um personagem que pode ser pensado como guia de várias reflexões possíveis. Sujeitos egressos da escravidão e/ou imersos no pós-abolição articularam-se individual ou coletivamente para conquistar ou preservar liberdades e direitos, sendo isso visível até mesmo na situação em que um ex-escravizado é réu e consegue utilizar um discurso de defesa que convence um júri e desmonta a narrativa de acusação ao mostrar que não era um “invasor”, mas alguém que estava frequentemente presente no ambiente em que o crime teria ocorrido. Ou seja, mesmo quando há marginalização, criminalização e articulação para tolher liberdades, é possível perceber a agência histórica e, assim, não prender a narrativa à experiência da coação.

* Fonte: Patos de Minas e o pós-abolição: uma proposta de abordagem para o ensino médio com uso de documentos (2022), de Arthur Willian Soares Alves.

* Edição do texto: Eitel Teixeira Dannemann.

* Foto: istockphoto.com, meramente ilustrativa.

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