– Por favor, seu Adamastor, me coma primeiro.
– Não, ele vai me comer primeiro. Eu sou a Beterraba e sou muito brava, por isso tenho essa cor vermelha forte.
– Esqueceram de mim, gente? Eu, o Jiló, ardido que nem pimenta, mando aqui, e por isso vou ser o primeiro a ser comido.
– Nós é que estamos por cima.
– Vocês aí, Salsinha e Cebolinha, fiquem quietinhas no seu canto, vocês são muito frágeis perante nossa força.
– Podemos ser frágeis, mas estamos sempre por cima de vocês aumentando e até corrigindo o sabor sem sabor de alguns, né seu Chuchu?
Enquanto o diálogo entre os vegetais prosseguia, Adamastor reparou que os clientes faziam a festa em todo o restaurante. Aliás, quem fazia a festa eram as hortaliças sendo ingeridas. Até que um dos clientes lhe dirigiu a palavra.
– Uai, seu moço, não vai atender aos pedidos? Vamos, coma-os, eles são uma delícia e sem eles nós morremos. Vamos moço, nós só sobrevivemos porque temos estes vegetais para comer. É a natureza, é assim mesmo, nós temos que comê-los.
– Mas, e estas deliciosas carnes? − questionou o Adamastor.
– Que carnes, homem?
– Olha só essa bisteca. E essa costela.
– Homem de Deus, fique longe disso, é coisa do capeta. Isso quando bate no estômago é que nem a explosão de uma bomba atômica. Isso está aí para nos tentar, é de propósito, são lindos e cheirosos de propósito. Quem come isso está condenado a queimar nas chamas do inferno. Não vai me dizer que comeu?
– Bem, eu dei uma mastigadinha só e…
– Ave Maria, Nossa Senhora da Abadia, Santa Mãe de Deus, depressa, homem, ainda dá tempo. Encha a boca com um pedaço de cada verdura, mastigue bem, engula e depois gargareje com suco de laranja.
– Mas… isso…
– Vamos homem, você não tem muito tempo.
– Peraí, já vou, não precisa ficar balançando meu braço.
Nesse momento, Adamastor percebeu um garçom sacudindo levemente o seu braço esquerdo.
– Meu senhor, o que houve contigo, aconteceu alguma coisa? De repente ficou parado aí, com os olhos esbugalhados olhando para o prato de salada. O senhor está passando mal?
– Sei lá o que houve, mas está tudo bem, vou voltar ao trabalho porque estou sem apetite. Pode ficar tranqüilo, está tudo bem.
A volta ao trabalho foi angustiante. O que fazer? Como estaria o humor de Geruza? Ela ainda continuava com aquela idéia fixa de fazer dieta natural. Afinal de contas, por que ele estava tão contrário à ideia da mulher? Tão contrário que já estava tendo alucinações sobre o assunto. Seria tão difícil assim deixar de comer carne, deixar suas cervejas e pingas, deixar o seu cigarrinho de palha, tudo isso para agradar à esposa? Ela merecia? Sim, é mais do que evidente que ela merecia o esforço. Uma esposa tão compenetrada em seus afazeres domésticos, tão carinhosa com ele e com os filhos, e de muita honra. Então, por que ele não satisfazia essa louca vontade da mulher?
Tudo isso e muito mais borbulhava na cabeça do Adamastor. Até que, num estalo mágico, numa clarividência espantosa, uma luz se ascendeu: estava decidido. Em nome do amor pela esposa, em nome do que ela representa para sua vida, ele, Adamastor, iria respeitar o desejo de Geruza querer introduzir no cardápio da casa uma dieta natural rigorosa. Abaixo todos os conceitos sobre alimentação. Abaixo a importância da proteína animal. Abaixo a cerveja, a pinga, as carnes gordurosas, o cigarro de palha. Abaixo todo alimento ou hábito que prejudique a saúde. Viva o natural. Viva Geruza, seu grande amor. Sim, ela merece. E tão logo chegasse em casa na sexta-feira ele imediatamente contaria a novidade.
E chegando em casa, o clima parecia bastante saudável. Cumprimentou a mulher que o recebeu com um ardente beijo e abraçou fortemente os meninos. Depois de muito tempo brincando com os filhos, estes foram recolhidos ao quarto lá pelas nove da noite para uma boa noite de sono. Estavam Adamastor e Geruza no sofá da sala, juntinhos, quando ele falou.
– Amor, estive pensando…
– Não, querido, não precisa se explicar, eu fui muito mandona com você. Entendi que as coisas não podem ser assim.
– Espere aí, Geruza, o negócio é o seguinte…
– Tudo bem amor, deixa pra lá.
– Não, Geruza, você não entendeu, não é para deixar pra lá. Eu pensei muito e resolvi fazer a sua vontade.
– O Quuuueeeeeeê?
– É isso mesmo, querida, vamos todos fazer a tal dieta que você está tanto querendo.
– Oh, meu amor, é por isso que te amo tanto.
E naquela noite, os dois viveram momentos radiantes. Mas antes de dormir, Adamastor, sem perceber ou até sem querer, sentiu que aquela empreitada não ia dar certo. Passados seis meses de convívio alimentício com beterrabas, chuchus, arroz integral, leite desnatado, jilós, quiabos, bifes de soja, pepinos, margarina light, alfaces, couves, farelo de trigo, açúcar mascavo, adoçantes, abobrinhas, cenouras, centeio e uma infinidade de produtos vegetais e naturais, Adamastor começou a sentir estranhas sensações e comportamentos nele, em Geruza e nos meninos.
O escritório da empresa de medicamentos na qual Adamastor trabalhava era localizado em Uberlândia. Toda última sexta-feira do mês acontecia lá uma reunião com a equipe de vendas. E nessas, o Gerente reparou na queda de produtividade do Adamastor, além de que o comportamento dele não era o habitual.
– Adamastor, já terminou o relatório?
– Relatório, que relatório, Sr. Douglas?
– O relatório sobre o que os médicos comentam sobre os nossos produtos, homem.
– Minha Nossa Senhora da Abadia, é mesmo. Sr. Douglas, hoje antes do fim da reunião ele vai estar pronto em cima de sua mesa, ok?
– Adamastor, pelo que sei, você trabalha aqui nessa empresa há dez anos. Eu estou aqui como gerente há pouco mais de três anos, tempo mais do que suficiente para conhecer as características pessoais de cada comandado meu. Por isso tenho ciência de que você tem sido um representante comercial exemplar nestes anos todos, tendo, inclusive, recebido vários prêmios por produtividade. Acredito que a continuidade desta eficiência ainda vai lhe proporcionar vôos mais altos aqui dentro, principalmente agora que se fala na abertura de um escritório em Patos de Minas. Estou certo?
– Bem, eu apenas tento fazer o meu serviço da melhor maneira possível.
– Tentava.
– Como assim, Sr. Douglas?
– Meu caro Adamastor, o que está acontecendo contigo?
– Como assim?
– Adamastor, de uns seis meses para cá você tem se comportado de uma maneira não muito conveniente para com seu passado profissional nessa empresa.
– Puxa vida, Sr. Douglas, o que eu fiz ou estou fazendo de errado?
– Em primeiro lugar, você está deixando de cumprir determinadas obrigações no tempo adequado, como o relatório que lhe solicitei na semana passada. Além disso, seus relatórios específicos sobre as visitas médicas que eram os melhores agora não passam de meia dúzia de palavras que não nos informam praticamente nada. Como essa situação surgiu inesperadamente, acredito que você esteja vivenciando um problema familiar ou qualquer outro tipo de problema. O que importa é que seu rápido raciocínio e aquela sua característica perspicácia estão se afastando de você. Isto muito me preocupa, pois não passa pela minha cabeça vê-lo fora de minha equipe.
– Mas Sr. Douglas, não estou entendendo nada, por um acaso estou prestes a ser dispensado?
– É, realmente você não entendeu nada mesmo. Eu não disse em momento algum que pretendo dispensá-lo, tanto que acabei de afirmar que não passa pela minha cabeça vê-lo fora de minha equipe. Você é um bom parceiro e é muito bem visto pela Diretoria. Só que seu desempenho caiu e nós precisamos descobrir a causa para que você volte a ser o Adamastor de antigamente.
– Mas Sr. Douglas, não tem nada de errado comigo. Está certo que me esqueci do relatório, que ando cochilando de vez em quando, que ando meio fraco…
– Adamastor, eu não sou Médico, não entendo nada disto, mas dá para perceber que você está pálido, parece até que está anêmico. Olha, você deve estar com algum problema de saúde. Talvez isto explique a sua queda de produção. Na semana que vem lá em Patos de Minas vá a um médico, faça todos os exames, porque precisamos descobrir o que está acontecendo contigo. Agora termine seu relatório e vá pra casa.
– Tudo bem, Sr. Douglas, obrigado pela preocupação e, acima de tudo, pela compreensão.
Na volta ao lar, Adamastor resolveu não comentar nada com a Geruza, pois nem ele mesmo tinha noção exata do que estava acontecendo contigo. Como era hábito chegar das reuniões sempre depois das oito da noite, a esposa estranhou o marido surgir em casa às cinco da tarde e o marido estranhou o estado de euforia da esposa.
– Uai, o que você está fazendo aqui a essa hora?
– Por um acaso cheguei numa hora imprópria?
– Meu amor, o que houve, por que chegou cedo?
– Depois eu explico. Quero saber o porquê você está tão agitada.
– Adamastor do céu, o Jerônimo desmaiou.
– Como é que é? Meu Deus, cadê ele?
– Calma, homem, ele já está melhor. Vá lá no quarto enquanto preparo um suco de beterraba.
– Pai, o Jerônimo tá morrendo?
– Que é isso, Catarina?
– Mas pai, ele morreu e depois viveu de novo.
– Filhinha, o Jerônimo não morreu e viveu de novo, ele apenas teve um mal estar.
– Pai, eu tô fraca.
– Fraca? Como assim, filha?
– Pai, no recreio lá na escola eu não aguento mais jogar queimada.
– Por que, Catarina?
– O Jerônimo também não aguenta jogar futebol. Hoje na escola ele estava jogando e morreu, depois viveu de novo.
– Explica isso pro papai.
– Sabe, pai, ele…
– Dá licença, dá licença, aqui está um delicioso suco de beterraba – anunciou a Geruza.
* Texto: Eitel Teixeira Dannemann.
* Foto: Pngitem.com, meramente ilustrativa.