– Ah, tem dó Geruza, as coisas não funcionam assim não. Você não pode estabelecer sozinha um tipo de alimentação ideal para nós e tentar nos impor a qualquer custo.
– Mas Adamastor, eu fiz pensando na nossa saúde.
– Tudo bem que você fez pensando na nossa saúde, mas será que esse é o tipo de alimentação correta para os meninos? Que é isso, Geruza. Os meninos estão em fase de crescimento e precisam comer muita proteína. E a proteína animal é a mais correta no caso. E você, lembra que teve anemia? Pois é, entra nessa de comer só verde e vai acabar anêmica de novo. E dessa vez, ao invés de comer muito fígado animal como foi recomendado pelo médico, quero ver você comendo fígado de soja. Ah, ah, essa é boa, fígado de soja.
– Adamastor, estou entendendo a sua preocupação, mas faz uma forcinha, vai. Olha só, pra você não dizer que estou sendo radical, venha até aqui. Vem aqui, amor, deixa de ser ranzinza.
– Eu, ranzinza? Você joga fora quase cinco litros de uma pinga envelhecida dez anos em barril de carvalho, pinga que sofri para conseguir; doou o pacú e o surubim que levei quase uma hora para tirar d’água e que estava esperando um dia especial para fazer uma maravilhosa moqueca; doa três quilos de costela bovina que eu havia temperado na semana passada para assá-la na chapa hoje e vem você me dizer que sou ranzinza. Para com isso, mulher. Você está é merecendo uns bons tapas para deixar de ser topetuda. E esqueceu que durante a semana eu almoço e janto em restaurantes por essas cidades do Alto Paranaíba?
– Meu querido, você não vai mais comer a comida gordurosa dos restaurantes do Alto Paranaíba.
– Ah, claro, na hora do almoço eu procuro um gramado pra pastar, certo? Ou então, vou pra mata me alimentar de frutos silvestres. Melhor ainda: vou até um bambusal me refastelar de brotos. Ótimo, problema resolvido.
– Você é bocó mesmo, hêim Adamastor! Presta atenção, homem, todo restaurante aonde quer que seja tem a bancada de verduras e legumes. É só se fartar com essa alimentação saudável.
– Nunquinha, nunquinha…
– Que é isso, querido, não fica assim nervoso que isso provoca rugas. Vamos fazer o seguinte: como hoje é domingo e eu sei bem que você queria muito assar aquela costela, dá uma olhadinha no congelador da geladeira.
– Oh, minha costela!
– E aqui está, amor, um litro daquela pinga que eu guardei. Vamos assar a costela e tomar umas cervejinhas, tá bom? Amanhã a gente começa a dieta.
– Jamais!
– Adamastor, mais tarde, com você calmo, a gente conversa sobre o assunto, ok?
– Se é só pra conversar, tá ótimo.
Que domingo maravilhoso num lindo dia com sol moderado. O primeiro gole de uma cerveja estupidamente gelada desceu na goela como um néctar dos deuses. Ah, e quando os primeiros aromas da costela de boi tão carinhosamente temperada dominou o ambiente, Adamastor se sentiu o mais feliz dos homens. Sim, pois tinha uma boa esposa e dois filhos que eram a conjunção do amor do casal. Até que o domingo começou a findar, escorrer pelos seus dedos num piscar de olhos. Adamastor sentiu um pequeno calafrio por toda a extensão de sua coluna vertebral. Deitado, juntinho a Geruza, fechou os olhos e dormiu. A segunda-feira, com certeza, seria duríssima.
Manhãzinha, seis horas, Geruza já havia se levantado. Por quê? Eles sempre se levantavam juntos, e, não raramente, iniciavam o dia com excessivos carinhos. Mas onde estava Geruza? Será? Será, realmente, que a esposa já estava na cozinha nos preparativos para o café da manhã natural? Não, pelamordedeus!
– Oh, não! Você vai mesmo insistir nisso, mulher?
– Querido, te peço com todo o carinho lá bem do fundo do meu coração. Por favor, pelo nosso amor e pelos nossos filhos, apenas tente, apenas comece…
– Geruza, eu, definitivamente, não vou entrar nessa de comida natural. E além do mais, você vai criar um problema de saúde para os meninos. Eu já disse que na idade que eles estão precisam de proteína animal. E isso significa carne.
– Amorzinho, por favor, não se esqueça de que a coisa que mais detesto na vida é dormir em barraca no meio do mato. E mesmo assim, porque te amo muito, te acompanho nas suas pescadas. Viu? Agora é a sua vez de fazer sacrifício por mim.
– É, agora, além de vegetariana, você se transformou em chantagista?
– Que é isso, Adamastor, não se trata de nenhuma chantagem, estou apenas dizendo que faço um sacrifício enorme por você quando vou às suas pescarias. Eu só estou querendo que você também faça um sacrifício por mim.
– Mas eu já faço isso, um baita sacrifício.
– Que sacrifício, homem?
– Geruza, você sabe muito bem que não suporto aquelas reuniões religiosas aqui em casa. E o que eu faço? Participo de todas, certo? Pois é, isso para mim é um tremendo sacrifício.
– Puxa vida, amor, é pecado o que você está dizendo e uma falta de respeito para com Deus.
– Nada disso, de jeito algum estou faltando com respeito a Deus. Eu não disse que não suporto falar de Deus, fui claro em dizer que não aguento aquela mulherada falsa que vem aqui.
– Que é isso, homem?
– Ora, aquela mulherada vem aqui com caras de santinhas, rezam, imploram perdão ao Senhor e depois, pelas costas, aprontam um fuxico danado na rua, é uma fofocada só. Ó, pode ter certeza que estão metendo o pau em você por não ter comprado aquela rifa da igreja. Ah, já estou vendo daqui o como está vermelha a sua orelha.
– Vamos mudar de assunto.
– A carapuça serviu, né?
– Adamastor, você vai ou não vai fazer este sacrifício por mim?
– Sei não…
Naquele exato momento, Geruza olhou bem no fundo dos olhos do Adamastor. Era um olhar sofrido, pedinte, suplicante. Ele sentiu um arrepio profundo correr por todo o seu corpo. Ela olhava, um olhar fixo, longe, como se ela estivesse viajando por entre as estrelas. Foram trinta segundos parecendo uma eternidade. Até que uma lágrima se formou. Aquela gotícula escorreu por sua face até ser amparada pela palma de uma mão trêmula. Outra lágrima se formou, mais uma, até que um choro convulsivo tomou conta da mulher. Num gesto repentino, Geruza correu para o quarto e se deitou.
– Para com isso, meu amor, pra que esse choro todo?
– Você não me ama, você só pensa em carne, só pensa em você, é um egoísta.
Ouvindo a barafunda, chegaram o Jerônimo e a Catarina.
– Papai, por que a mamãe tá chorando?
– Nada não, Jerônimo, acontece que o papai não está querendo comer mato, só isso.
– Papai, por que o senhor não quer comer a comida da mamãe?
– Jerônimo e Catarina, o negócio é o seguinte, a mamãe invocou que a partir de agora só vamos comer comida natural. Isto quer dizer nada de carnes, isto quer dizer só beterraba, chuchu, abóbora, soja, nada de açúcar etc. Só que o papai não está concordando com isso, por isso a mamãe está chorando.
– É ruim aquilo né, pai? Eu não gosto de suco de beterraba.
– Nem eu, pai.
– Pois é, filhos, vegetal é importante, mas comer só isso não dá. O problema é que a mamãe está querendo muito que a gente faça essa dieta. Como eu disse que não ia fazer, ela ficou triste com o papai e começou a chorar.
– Pai, por que o senhor não quer comer a comida da mamãe?
– Acabei de dizer, Catarina. As verduras e legumes não podem faltar na nossa alimentação, mas comer só isso, entra dia e sai dia, é muito ruim. A gente enjoa.
– Pai, mas o senhor come carne todo dia e não enjoa.
– Bem, aí é diferente filho.
– Viu só, Adamastor, seu filho é mais lúcido que você.
– Ôi, amor, vem cá…
– Mãe, a senhora chorou muito?
– É nada não, Catarina, já passou. Adamastor, olha as horas, vá logo se arrumar porque você tem que ir para Patrocínio.
Enquanto dirigia, Adamastor pôs-se a pensar com seus botões. Geruza estava mesmo sentida por ele não concordar com a dieta. Puxa vida, mas riscar a carne do cardápio era demais para ele. Além disso, não teria mais as cervejas, as pingas e até o cigarro de palha teria que ser cortado. E se alimentar só de vegetais nos restaurantes seria o cúmulo do absurdo para ele. O dia de trabalho foi arrastado, ele não conseguia tirar da cabeça aquele assunto, estava sorumbático. Até os Médicos que ele visitava para vangloriar os produtos da empresa que representava perceberam. Mas ele dizia que apenas estava indisposto e que amanhã estaria bem de novo. No almoço ele pôde verificar consigo mesmo que tudo aquilo o estava afetando demasiadamente. Ele percebeu isso quando levou à boca um naco de carne. Quando deu a primeira mastigada ouviu um grito de lamentação.
– Oooohhhh, você nem olhou para mim!
Assustado, Adamastor ouviu outro lamento.
– Oooohhhh, por que não me quer?
Foi quando percebeu que aquele lamento partira de um prato de salada posta ao seu lado. Adamastor coçou os olhos e mirou a salada.
– Que bom que está olhando para a gente. Não se assuste com a dona Alface, ela é mesmo entrona. Nós, as Cenouras, somos mais tímidas, por isso temos esta cor alaranjada.
Adamastor logo pensou que estava ficando louco. Resolveu olhar para toda a extensão do refeitório e verificou que todos os presentes naquele restaurante estavam conversando com os alimentos. Interessante que eles só conversavam com os vegetais. Olhou para seu prato, que não tinha um único exemplo verde, e notou que 80% era composto de carne bovina e suína. O mais importante, ele verificou que nada daquilo tinha vida, e que apenas os vegetais falavam. Mesmo sem vida, as carnes apresentavam um esplendor fantástico, com cores influentes e odores inigualáveis. Mas estavam desfalecidos no prato. Os vegetais não, apesar de não possuírem cores e odores tão exuberantes, por todo o refeitório eles pulavam, gritavam e pediam pelo amor de Deus para serem comidos. Então, ouviu novamente aquela voz.
* Texto: Eitel Teixeira Dannemann.
* Foto: Pngitem.com, meramente ilustrativa.