PAZOLIANA − CAPÍTULO 25: UM ENIGMA SE APRESENTA

Postado por e arquivado em CANTINHO LITERÁRIO DO EITEL.

A guerra, a princípio, é a esperança de que a gente vai se dar bem; em seguida, é a expectativa de que o outro vai se ferrar; depois, a satisfação de ver que o outro não se deu bem; e, finalmente, a surpresa de ver que todo mundo se ferrou. (Karl Kraus − 1874-1936)

Otap e Opas singravam o espaço, cada um em sua pequena máquina de guerra, com destino ao local estabelecido para a batalha dos Deuses. Não se sabia quem estava à esquerda ou quem estava à direita. Tudo dependia do ângulo e do ponto de vista. O piloto automático cumpria a sua missão numa velocidade inimaginável aos pobres e toscos terráqueos. Dois comandantes, dois povos que outrora se cumprimentavam exaustivamente quando um visitava o planeta do outro, estavam de olhos cerrados à espera do aviso de fogo. Suas mentes se revolviam em cascatas fluídicas de pensamentos. Por que estavam indo diretamente ao juízo final? Poderiam eles, realmente, decidir a vida ou a morte de seus congêneres simplesmente apertando botões? As metamorfoses surreais e incontestáveis do Universo sem dono e sem fabricante haviam postado lado a lado os dois povos num minúsculo torrão de matéria volúvel, tão volúvel quanto os seus neurônios. Com a mesma intensidade com que a lava incandescente é cuspida do vulcão aterrador, cruel e de humor tétrico, os neurônios dos siuza e dos sedrev não estavam preparados para tornarem-se um só. As sinapses não se combinaram com tecido orgânico estranho. A rejeição foi traumática, sangrenta e ceifadora de vidas inocentes. Por pouco, dois povos quase se transformaram em nenhum povo. Após uma batalha infernal, não se sabe se o restolho doído e traumatizado de um povo se esgueirou para a esquerda, ou se o restolho doído e traumatizado do outro povo se esgueirou para a direita. Talvez para cima ou para baixo. Afinal, são tantas as dimensões do espaço infinito que, estando-se desarmado da razão, a emoção não sabe se está à esquerda, à direita, acima ou abaixo.

Entre as brasas da fogueira, antes da transformação final em cinzas mortais, o amor temperado de alusões à vida uniu um siuza a uma sedrev. Deste enlace anti-promíscuo germinou a esperança de uma futura existência isenta de sobressaltos. Foi-se ao longe, desaparecendo por detrás de milhões de estrelas, a última possibilidade de união eterna entre os siuza e os sedrev. Aonde estariam os germes desta união cósmica? Otap e Opas se perguntavam em pensamentos enrustidos quando soou o alarme. As máquinas deram o sinal da morte para a vida. As combinadas coordenadas espaciais onde se daria o início da batalha foram encontradas pelo piloto automático. A batalha se daria no entorno do planeta Marte, sendo o limite de espaço disponível para manobras a distância de 10 mil quilômetros contados a partir do solo marciano. De acordo com o plano estratégico firmado entre as partes, dado o sinal de partida, que vencesse o mais audaz. Seriam dois caçadores em busca da sobrevivência de seu povo. A partir do sinal, estava liberado o poder de fogo. Cada um que tomasse as medidas que lhe fossem mais comedidas.

Otap e Opas estavam postados lado a lado esperando o sinal que soaria dentro de poucos segundos. Não ousaram desviar os olhos para o lado do oponente. Os dois corações batiam descompassados. A tensão era tamanha que as pequenas naves tremiam em conjugação com as palpitações musculares. De olhos grudados no painel de controle, os comandantes vislumbraram a luz e o sinal sonoro. Era o reinício da vida ou início da morte. Os motores silenciosos roncaram com ardor e raiva. Partiram em linha reta, quase se tocando. Ao invés de rumarem ao solo, seguiram a linha circular da órbita. Não há como se saber quem acompanhava quem, pois os dois percorriam a trajetória quase que se tocando. Enquanto estavam juntos, não poderiam usar as armas, fato que afetaria as duas naves. E assim prosseguiram por um tempo incontável. Um ao lado do outro como ostras agarradas às pedras sendo martirizadas pelas ondas. À mínima mudança de direção que fosse de um, numa fração de segundos o outro acompanhava. Nenhum dos dois queria se afastar um do outro. Respeito? Medo? Orbitavam Marte como os ponteiros do relógio. Aos poucos, como que se unidos pela cola da salvação, foram descendo, descendo até se aproximarem do solo. Voaram rente às calotas polares; passaram triscando pelo vulcão Olympus Mons com seus 25 km de altura; planaram por desfiladeiros imensos, planícies e antigos leitos de rios secos. Quando sobrevoavam o Valles Marineris, um sistema de desfiladeiros com 4000 km de comprimento e até 7 km de profundidade, os dois pilotos, ao mesmo tempo, perceberam um sinal de alerta estridente no painel de controle. Otap se assustou.

– Comandante Opas, percebeu o sinal de alerta vermelho?

– Sim, Comandante Otap. Há alguma coisa estranha nesse desfiladeiro.

– Temos que verificar.

– Concordo.

– Vamos fazer um armistício temporário para averiguações?

– Concordo.

– Em nome do povo siuza, declaro paz temporária.

– Em nome do povo sedrev, declaro paz temporária.

– Vamos tentar localizar com nossos sensores. Tenta daí que eu tento daqui. Estou enviando um comunicado para a minha base lunar ordenando-lhe que permaneça em estado de inércia o tempo que for necessário.

– Ok! Estou fazendo o mesmo com a minha base. Vamos nos afastar um pouco e seguir os sinais.

Os sensores das duas naves haviam detectado um imenso objeto metálico. Por uma infinidade de canais monstruosos, dois pássaros de aço alienígena batiam suas asas vagarosamente por entre paredões imensuráveis de pedra e poeira. Igualavam-se a uma larva de mosca passeando pelas alturas do Himalaia. A sinuosidade, a quantidade e a enormidade dos canais parecia não ter fim. Partindo do ponto onde os sinais foram primeiramente detectados, uma nave seguiu em direção leste enquanto a outra seguiu em direção oeste. Faziam um percurso em ziguezague, para cima e para baixo. Trinta minutos após, Otap deu o alarme. Havia encontrado algo. Rapidamente, Opas estava no local. Estavam a 5 km de profundidade. Vislumbraram o imenso objeto de metal. Era uma nave espacial incrustada numa das encostas do desfiladeiro. Estava com a terça parte adentrada ao paredão e pousada sobre uma grande laje de rocha, como se tivesse se chocado naquele local numa tentativa desesperada de pouso. A grande porta lateral de embarque e desembarque estava arriada. Este fato não passou despercebido aos comandantes. Tentaram contato e não receberam respostas. Resolveram pousar em outras lajes menores que abundavam no paredão oposto, ficando a uma distância aproximada de 300 metros. De comum acordo, Otap enviou uma pequena sonda exploratória. Excetuando o lado que se chocara no paredão, todo destruído, o restante da nave se encontrava intacto. Mas não havia sinais de vida. Parecia uma nave fantasma. Todo o interior estava às escuras e tomado por uma espessa camada de pó, evidenciando que o acidente houvera acontecido há muitos anos. A sonda vagava morosamente por todos os compartimentos. Era uma nave de grande porte, para viagens intergalácticas. A cada objeto vislumbrado nos painéis, Otap e Opas se assustavam com a semelhança estrutural daquela nave com as suas naves. Eles não se falavam. Enquanto a sonda percorria os ambientes, mantinham-se num silêncio tumular. Até que nas telas surgiu a cadeira de comando. Vislumbraram, no tecido que a revestia, um escudo com a palavra SISE. A sonda se concentrara naquele escudo com aquelas enigmáticas palavras. O que significaria aquela palavra? Resolveram continuar com as buscas para depois discutirem os fatos. Num momento, os sensores perceberam um movimento. Uma pequena quantidade de poeira se elevou ao ar. Tensão entre os comandantes. Havia vida naquela nave. Mas devia ser de pequeno porte por causa da pequena quantidade de poeira que se elevou. A sonda seguiu a pista. A poeira aumentara, dificultando a visão. Já se vislumbrava uma pequena massa escura em movimento. Cada vez mais a sonda se aproximava. De repente, a pequena massa escura estancou a marcha. A sonda ficou frente a frente com ela. A poeira foi se amainando proporcionalmente à caracterização visual da pequena massa escura pela fonte de luminosidade. Até que se fez totalmente visível os olhos dos comandantes.

– O que é isso? – perguntou Otap.

– Parece uma substância viscosa, uma espécie de gelatina.

– Olhe, está se mexendo, pôs-se ereta.

– É inacreditável conseguir ficar ereta sem pés para se apoiar. Repare bem no seu interior. Parecem organelas e até um coração pulsando. Vou aumentar o zoom. Não deve ter mais de 30 centímetros.

– Esquisito, não há nenhum orifício externo, principalmente boca e ânus.

– Se não me engano está ciente da presença da sonda.

– Vamos tocá-la com o braço mecânico.

– Veja, é como se estivesse empurrando o braço mecânico.

– Será que essa criatura amorfa possui algum tipo de inteligência?

– Vou aumentar o zoom. Não percebo nada parecido com sistema nervoso, nada. É praticamente transparente. Percebo apenas algo parecido com organelas e um minúsculo coração pulsando. Mas não vejo vasos sanguíneos. Olhe, repare bem a presença de algo parecido com pelos ásperos por toda a superfície da criatura.

– Tenho a mesma impressão. Os pelos se movem em ondas. É notório o seu senso de percepção da sonda, como se a criatura estivesse a estudá-la. Veja, veja como ela se contorce como se estivesse a examinar a sonda. Será que os pelos são sensoriais?

– Pode ser que sim. Repare, há alternâncias de cores suaves de acordo com os movimentos. Mesmo assim, é muito transparente. Está se afastando, está se afastando, como se andasse de costas propositadamente. Olhe, está se agachando. Veja, veja, pôs-se a rastejar.

A estranha criatura se pôs paralelamente ao piso da nave e saiu em disparada por um longo corredor. A sonda seguiu a pista da poeira até se encontrar a uma parede. Quando a poeira baixou, surgiu um buraco no ângulo com o piso. Por ali a criatura se esvaíra. Por vários minutos a abertura foi monitorada, mas a criatura por lá dentro ficou. A sonda voltou, então, a fiscalizar o interior da nave, concentrando-se no piso. A intenção foi tentar localizar outras criaturas iguais. A tentativa se tornou frutífera, pois em vários pontos notava-se pequenas nuvens de poeira e imediatamente surgia uma criatura. Contaram mais de quinhentas. A suposição de ambos os comandantes é que a nave deveria estar infestada por aquelas criaturas. Enquanto as sondas continuavam as suas investigações, o diálogo foi reativado.

– Comandante Opas, qual sua avaliação?

– Deveras estranho, comandante Otap. Jamais havia presenciado criaturas como essas. Há uma série de perguntas sem respostas em minha mente. Para uma nave deste porte, seria necessária uma tripulação de no mínimo 30 integrantes. Não localizamos um único corpo, nem um sinal sequer. A porta de embarque e desembarque está aberta. Por quê? E a palavra SISE no banco do comando-mor? Reparou como a nave externamente e internamente é semelhante às nossas, dando-nos a oportunidade de imaginar que fora construída por um dos nossos? A palavra SISE pode ser resposta para este enigma.

– Concordo plenamente contigo. Pela camada espessa de pó pode-se deduzir que este acidente se deu há muito tempo, e bota tempo nisso. A dúvida é se as criaturas alcançaram o interior da nave aqui em Marte após o acidente, e se assim for então são seres daqui, ou se foi em alguma outra parte do Universo. Se assim, elas poderiam ter alguma relação com o acidente.

– O que propõe?

– Intriga-me muito a porta aberta. Será que algum tripulante, ou vários, tentaram fugir da nave? Se assim foi, poderemos encontrar vestígios no fundo do vale. Seria necessária uma pesquisa rigorosa. Mas há um grande problema.

– Qual seria?

– Temos uma pendência de vida ou morte.

– Isso complica.

– Temos que lutar até a morte e o enigma desta nave é sério demais para ser deixado de lado, não só por causa das estranhas criaturas mas, principalmente, pela semelhança das naves. Até me veio uma ideia aparentemente louca que pode não ser assim tão aparentemente maluca.

– O que foi?

– A palavra SISE está querendo me dizer alguma coisa. Incrível, mas Atlover e Aneres dominaram a minha mente.

– Atlover e Aneres? Que relação você acredita que eles teriam com esta nave?

Raciocine comigo, comandante Opas. Atlover era um siuza e Aneres uma sedrev. Eles se uniram e, mais do que evidente, em conjunto com os outros constituintes da tripulação, formaram um novo povo. Não tenho, e acredito que você também não, informações sobre a quantidade de casais que participaram daquela fuga. Mas é praticamente certo que outros casais de siuza se juntaram a eles. Pois bem, todos eles formaram não uma nova raça, pois somos praticamente idênticos. Digo que formaram um novo povo. Agora entra a minha provável realidade. Juntaram-se os siuza e os sedrev. Para mim, o SI daquela palavra se refere aos siuza, e o SE se refere aos sedrev. Muito lógico e compreensível para os dois povos que se tornaram um só.

– Comandante Otap, a sua dedução não é somente lógica como verdadeiramente transcendental para nós. Seria esta nave pertencente a descendentes de Atlover e Aneres?

– Não estou afirmando categoricamente, é apenas uma dedução, mas muito realista. Junte-se a ela a semelhança tecnológica entre esta nave e as nossas. Comandante, estamos diante de um enorme mistério muito provavelmente com parentes nossos envolvidos.

– Isso significa que não podemos simplesmente virar as costas e deixar esta nave aí relegada ao solo marciano. Além do mais, o que teriam aquelas criaturas com o desaparecimento da tripulação?

– Pois bem, comandante Opas, e agora?

– Bela pergunta, comandante Otap. Temos um compromisso inadiável de matarmos um ao outro como inimigos ferrenhos e eis que nos deparamos com este imbróglio.

– Seria realmente um compromisso inadiável?

– Suspeito sobre as suas intenções.

– Vou torná-las transparentes. Estamos diante de um mistério que, muito provavelmente, nos envolve diretamente. Também, estamos diante de uma realidade que nos obriga a eliminar um ao outro por causa de um reles planeta do Sistema Solar. Em sua opinião sensata, qual seria a prioridade?

– O mistério.

– Portanto, o nosso compromisso não é inadiável, concorda?

– Plenamente. O que sugere?

– Primordialmente, mantermos o armistício. Devemos voltar imediatamente para as nossas bases e convocarmos uma reunião para decidirmos sobre os assuntos. Concorda?

– Proposta aceita. Vamos, então, comunicar as nossas bases que estamos voltando e que o armistício está integralmente em validade.

– Ok! Então partamos.

* Texto: Eitel Teixeira Dannemann.

* Foto: Desenho e montagem de Eitel Teixeira Dannemann.

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