PAZOLIANA − CAPÍTULO 26: DEUSES ALIADOS FRENTE AO PERIGO
“A verdadeira solidariedade começa onde não se espera nada em troca” .(Antoine de Saint Exupéry -1900-1944)
A decisão dos comandantes agradou a ambos os povos porque voltaram os dois com vida. Não perderam tempo para se reunirem. Na base do sorteio, o encontro se fez presente na nave-mor dos sedrev. Dos siuza, presentes Otap, Etnaduja e mais três representantes do alto escalão militar. De igual número, Opas e mais quatro assessores se juntaram numa sala. Inicialmente, houve muito constrangimento entre as partes. Séculos e mais séculos haviam se passado desde o último encontro amigável entre eles. Mas havia uma necessidade fundamental para a tolerância mútua.
Da superfície do planeta, Januário fez um contato, anunciando a inauguração da indústria de laticínios da COLEVICODO. Envolvidos nos últimos acontecimentos, os Deuses acabaram se esquecendo da data. Para tanto, um homem prateado foi deslocado para a Terra. Este deveria explicar que Sued e Etnaduja não puderam comparecer porque estavam envolvidos com a planificação do futuro de Asued e Sued Filho e sobre a tática que deveriam usar contra os arroubos do Bispo Ednando e do Cardeal Torentino.
Enquanto lá em baixo ocorria o evento, lá em cima as conversações tiveram início com o comandante Opas, que externou a necessidade da discórdia entre os sedrev e os siuza estar ausente entre eles enquanto não decifrassem aquele enigma. Discorreu minuciosamente sobre o que ele e Otap haviam vivenciado em Marte. Disse que aquela nave era um elo entre eles e fez questão de enfatizar a importância da descoberta deste elo e que seria fundamental não haver nenhuma manifestação de hostilidade entre as partes. Ele e Otap exigiam de seus comandados total solidariedade. Destacou que os dois comandantes não tolerariam qualquer tipo de rusga e, se alguma só acontecesse, os envolvidos seriam sumariamente afastados e punidos. Após longas discussões acaloradas chegaram a um veredicto sobre qual seria o modo de ação. Na base do sorteio foi escolhida uma nave exploratória siuza de médio porte com veículo auxiliar para três ocupantes. Com vestimentas e aparelhagem apropriadas, sete deles explorariam o interior da nave enquanto os outros três, no veículo auxiliar, vasculhariam o entorno do paredão e o fundo do vale em busca de corpos ou qualquer tipo de pista. Tudo acertado, partiram para os preparativos da missão.
Na Vila do Córrego Dobrado o clima era de festa. A multidão se aglomerava nos espaços disponíveis ao redor da fábrica de laticínios da COLEVIDOCO. No pátio de estacionamento foi montado um palanque para a cerimônia de inauguração. Estiveram presentes o homem prateado, vestido com roupas adequadas para se passar por um produtor de leite, a família Mantiqueira, Padre Alaor, o Prefeito de Pico da Glória e alguns Vereadores, o Secretário Estadual de Agricultura, repórteres da mídia falada, escrita e de TV da Sede e, para surpresa do próprio convidado, o Padre Barbosa, que seria o responsável por abençoar a obra em nome de Deus, mesmo isso não representando absolutamente nada para os nativos. Com a fábrica inaugurada oficialmente e a dispersão de autoridades e do povo, após um bate-papo na casa dos Mantiqueira sobre ações do plano pazoliano, o celeste se retirou e a vida na Vila do Córrego Dobrado voltou à sua rotina tradicional.
Quarta-feira, 19 de janeiro de 1982. Enquanto os siuza e os sedrev finalizavam os preparativos para uma incursão à nave caída em Marte, os meios de comunicação terráqueos informaram algo triste: a morte da cantora Elis Regina, aos 36 anos de idade. No outro dia, a nave exploratória dos Deuses com seus dez tripulantes adentrou ao amarelo-acastanhado da atmosfera marciana dominada pelo dióxido de carbono. Uma tempestade de areia, com ventos na ordem de 150 km/h, havia gerado uma nuvem de poeira em suspensão, o que dificultava a visibilidade. A temperatura registrava 32º C negativos. Vencendo as forças da natureza marciana, os aliados chegaram ao referido vale. Era necessário um local seguro e próximo da outra nave para pouso. Vasculharam por alguns minutos, sem sucesso. As lajes do paredão que se apresentaram às vistas não suportariam o peso da nave em que estavam. Havia uma a pouco mais de seiscentos metros abaixo. Consideraram-na distante demais. Houve, então, a necessidade de providenciarem mecanicamente um campo de pouso. Consideraram que a cem metros de distância uma pequena explosão não afetaria o local onde estava repousada a nave misteriosa. Um torpedo celeste proporcionou um rombo no paredão que foi a conta para a descida. Devidamente instalados, entraram em ação. A pequena nave auxiliar com três tripulantes foi em busca de pistas nos arredores e até ao fundo do vale. Os outros sete, cada um com uma espécie de mochila voadora às costas e com o material adequado em mãos, tomaram o rumo da nave acidentada.
Descendo ao grande portão de embarque e desembarque, os sete aliados se postaram um ao lado do outro. Despiram-se das mochilas voadoras, deixando-as à entrada da nave. Ficaram estáticos por alguns segundos. Havia a ansiosa expectativa sobre a possibilidade de lá dentro encontrarem vestígios de seus descendentes. Nesta ansiosa expectativa, estava presente também a incerteza do desconhecimento sobre o que eram e o que representavam aquelas estranhas criaturas gelatinosas. Estavam muito bem protegidos com vestimentas que a tecnologia deles proporcionou confeccionar. Eram praticamente intransponíveis a qualquer tipo de radiação tóxica e acreditavam que as criaturas, se porventura houvesse um ataque, não poderiam provocar danos físicos. Quando a lente da sonda exploratória havia deslumbrado o interior da nave fora detectado uma grossa camada de poeira, constatada quando transpuseram o portão. Portanto, moveram-se lentamente para não revolveram o pó em demasia. Aos primeiros passos, surgiram as criaturas gelatinosas. A todo momento levantava-se uma pequena nuvem de poeira que formava uma linha em ziguezague a poucos centímetros do piso, caracterizando a trajetória do desconhecido ser. Em poucos minutos, formou-se sobre o piso uma nuvem continua. Os Deuses estancaram a lenta marcha, um pouco assustados. Estavam no imenso compartimento em que ficavam as pequenas naves exploratórias. Contaram doze. Havia também pequenas nuvens de poeira pouco acima destes veículos, fato que as criaturas igualmente lá estavam. Perceberam o pó suspenso se acomodar. As criaturas haviam se retirado. Continuaram lentamente a marcha com o objetivo de chegarem à cabine de comando. A cada passo a sensação de se sentirem em casa os dominava. A arquitetura daquela nave era incrivelmente semelhante às deles. Por este motivo foram vencendo os cômodos e longos corredores sem dificuldade, como se já estivessem estado por lá. Por onde passavam, o fenômeno da nuvem de pó se repetia. Olhavam uns para os outros e comentavam sobre a impressionante quantidade daquelas criaturas gelatinosas, sem se aperceberem que estavam se ajuntando em grupos em diversos pontos. Foram em frente, até que chegaram à cabine de comando. Logo estavam em volta da cadeira do comandante-mor com os olhos fixos na palavra SISE. Ficaram pasmos com o painel de controle. Era praticamente idêntico aos deles. A ansiedade estava crescendo. Será que, realmente, aquela nave pertencia a descendentes de Atlover e Aneres? Olharam em volta e o fenômeno das nuvens de poeira se repetiu. Poucos minutos depois, o pó se assentou. Os aliados estavam muito emocionados pela presença naquela nave, tanto que sentimentos de solidariedade lhes dominaram a ponto de esquecerem, pelo menos momentaneamente, da rivalidade mortal que os acometia há séculos.
Examinando o painel de controle, verificaram a inexistência de energia em toda a nave. Um dos aliados conectou uma bateria e um compressor de ar. Este soprou todo o pó que dominava o painel, ficando este como novo. No trabalho, inúmeras criaturas gelatinosas se afastaram. A bateria entrou em ação e o painel de controle foi ligado. As luzes se acenderam. Os botões foram teclados em busca de alguma pista, pelo menos de dados sobre os últimos acontecimentos inerentes àquela nave. As informações que lhes interessavam foram surgindo na mesma proporção da ansiedade dos aliados. Estavam tão absortos naquele painel que se esqueceram das criaturas gelatinosas. Havia nelas algo de surpreendente, como uma espécie de sentido de grupo. Seria inteligência? Já haviam formado aglomerações de 80 a 100 unidades em vários pontos. A todo momento, uma delas se dirigia a um grupo e depois voltava ao seu. Depois a outro e retornava ao seu, como que tecendo estratégias de combate. Estavam mais vívidas, como se uma luz interior lhes desse um brilho especial. Depois de algum tempo, as movimentações cessaram. Outro tempo depois cada grupo começou a se mover, lentamente, para não levantar o pó. Foram se aproximando até formarem um círculo fechado, e no meio deste círculo ficavam os aliados juntos ao painel de controle. Mais uns instantes inertes, até que, ao mesmo tempo, foram fechando o círculo, numa simetria perfeita resultante de tática pré-estabelecida. Era um ataque iminente.
Os três aliados na pequena nave de exploração haviam vasculhado o paredão num raio de um quilômetro, não conseguindo descobrir qualquer tipo de pista. Estavam agora chegando ao fundo do vale. Vislumbraram um ponto negro a pouco menos de cem metros. Bem próximos, depararam com um corpo numa vestimenta espacial. Pousaram e foram até lá. Estava como uma múmia, talvez conservado pelo clima marciano e a própria indumentária. Envolveram o corpo adequadamente e o levaram para a nave. Levantando voo, soou o alarme do canal de comunicação. Era um pedido de socorro dos que estavam na nave avariada. As criaturas atacaram e envolveram os sete aliados. Não se via os corpos, tamanha era a quantidade daqueles seres estranhos sobre cada um. As mãos brigavam, agarrando-as e atirando-as ao chão. Elas se chocavam com o piso da nave e imediatamente se desfaziam num líquido escuro e fétido. As vestimentas estavam resistindo, mas até quando? As armas a laser não podiam ser usadas pelo risco de atingir o parceiro e danificar definitivamente o painel de controle, principalmente porque ninguém enxergava ninguém pela grande nuvem de poeira em suspensão que dominou todo o compartimento. Os sete já estavam ao chão totalmente dominados pelas criaturas. Um dos sedrev teve a vestimenta perfurada e sentiu uma leve picada, mas continuou bravamente tentando se libertar. Os outros três já haviam pousado a nave de apoio e instantes após, munidos das mochilas voadoras e enormes lanternas, desceram no portão de embarque e desembarque. Imediatamente, tiveram a mesma sensação dos parceiros, aquela sensação de que já estiveram naquela nave. Passaram pelo hangar das aeronaves de exploração e seguiram o som do clamor dos outros. Quando chegaram à porta da sala de comando se assustaram com a gritaria e a nuvem de pó. Eles também não enxergavam absolutamente nada. Pousaram os três holofotes no chão com as luzes na máxima potência. Conseguiram vislumbrar os colegas no chão dominados pelas criaturas. Num instante, estas perceberam a presença dos três. Uma enorme quantidade delas partiu naquela direção. De armas em mãos que disparavam algo semelhantes a lasers, os três atiravam ao mesmo tempo, sendo mortas uma a uma, não dando tempo de uma aproximação perigosa. Com a ação, as criaturas foram se desgrudando dos que estavam no piso e partiram também para atacar os três. Foram todas mortas, enfim. Desimpedidos, os três chegaram aos outros. Estavam, aparentemente, todos bem. Reuniram-se num canto onde poderiam avistar a aproximação de outras criaturas. Os holofotes iluminavam muito bem o ambiente. Ficaram sentados em profundo silêncio esperando a poeira se assentar. Nos outros compartimentos da nave, milhares de criaturas gelatinosas se movimentavam em polvorosa.
Quando a poeira havia se assentado por completo, discutiram o que fazer. Chegaram à conclusão de que toda a nave estava infestada por aquelas criaturas e que deveriam sair dali imediatamente. Antes, teriam que retirar a memória do painel de controle para estudos na nave deles. Apressados, assustados e nervosos, fizeram o serviço. Não deixaram de perceber que várias daquelas criaturas já estavam se aproximando. Ouviram uma zoeira tremenda. Resolveram partir imediatamente, numa correria desembestada. A zoeira crescia a cada instante. Se não conseguissem alcançar a saída seriam massacrados por elas. Corriam que nem loucos deixando para trás uma imensa nuvem de pó. Passaram pelo hangar até chegarem ao portão. Durante alguns instantes, olharam abismados para trás. Vinha ao encalço uma enorme, imensa daquelas criaturas que praticamente ocupava o espaço dos largos corredores. Ao lado, milhares e milhares de outras do tamanho das que os atacaram. Muniram-se das mochilas e alçaram voo. Foi a conta. Quando estavam a dez metros de distância, as criaturas chegaram. Algumas pularam sobre os corpos dos aliados. Muitas conseguiram alcançá-los, mas foram afastadas com as mãos. Chegados à nave de exploração, mais uma vez se assustaram com a quantidade daqueles seres que tomavam o portão de embarque. Imaginaram a quantidade enorme que estavam lá dentro. Não tiveram dúvidas que precisavam destruir aquela nave. Levantaram voo. A cinco quilômetros de distância, enviaram torpedos. A explosão destruiu toda a nave.
Como havia sido combinado, a nave exploratória seguiu em direção à base lunar dos siuza. Nesta, foi imediatamente isolada com uma redoma. Todo o material que havia estado na nave destruída foi sumariamente desintegrado, incluindo vestimentas e acessórios. A memória resgatada do painel de comando passou por uma desinfecção total, assim como os dez tripulantes e o saco protetor que trazia o cadáver. Na redoma protetora, a nave também passaria por uma limpeza geral. Um dos sedrev havia sido molestado pelas criaturas gelatinosas. Não demonstrava nenhum sintoma aparente. Mesmo assim, os dois comandantes resolveram colocá-lo em quarentena numa cabine considerada inviolável com monitoramento direto. Sem mais delongas, puseram mãos à obra quanto a tentarem desatar o nó do grande mistério. No laboratório, um médico legista e sua equipe, devidamente aparamentados, iniciaram a necropsia. A cada incisão, uma surpresa que os deixavam de queixo caído. Na sala de comando, a memória trazida começou a ser esmiuçada. Para felicidade de todos, os dados estavam preservados, tão preservados que causaram um grande estupor aos aliados. O que eles ouviram e o que viram nas imagens registradas foi tão assustador e emocionante que, quando a narrativa chegou ao fim, ficaram estáticos e mudos por um longo período. Tanto na sala de necropsia quanto na sala de comando, uns olhavam para os outros e simplesmente se perguntavam: O que é isso?
“Nave Sucof numa Constelação desconhecida (Andrômeda). Registro de Bordo 18, fase 308 da Era Sise. Surtap no comando. Depois de inúmeras pesquisas, nossos sinalizadores detectaram um planeta em um sistema solar (estrela Ahpla) com atmosfera semelhante ao nosso planeta de origem. Resolvemos averiguar. É um planeta de médio porte realmente muito parecido com o nosso extinto. Várias análises nos deram segurança para explorações mais profundas sem a necessidade do uso de vestimentas especiais. Estudos em andamento. Denominamos o planeta de Adivavon”.
“Nave Sucof em Adivavon. Registro de Bordo 19, fase 308 da Era Sise. Surtap no comando. Materiais coletados e devidamente analisados. Há todas as condições para habitação. Cinco pequenas naves exploratórias saíram para uma varredura por todo o planeta em busca de algum tipo de vida. Durante a fase diurna, nada foi encontrado que apresentasse metabolismo. Estranhamente, por todo o planeta foram coletados restos de material que, ao laboratório, foram dados como fragmentos ósseos. Amanhã nova exploração será feita”.
“Nave Sucof em Adivavon. Registro de Bordo 20, fase 308 da Era Sise. Surtap no comando. Durante toda a fase diurna, a varredura aérea se fez presente. Fragmentos ósseos foram detectados em todos os locais visitados. Numa pequena gruta, um dos pilotos percebeu movimentos na tela do visor de comando. Desceu e coletou 20 destes espécimes de animal totalmente desconhecidos. De consistência gelatinosa e transparente, mostram-se inofensivos com tendência a se agruparem. Estão sendo estudados. Na próxima fase diurna, faremos a última varredura”.
“Nave Sucof em Adivavon. Registro de Bordo 21, fase 308 da Era Sise. Surtap no comando. Fato estranho a registrar na fase diurna atual. As naves verificaram que as criaturas gelatinosas apareceram por todo o planeta e já se amontoavam aos montes sob a nave. Novos registros nos mostraram imensas aglomerações destas criaturas se dirigindo ao local onde está a nave. Por medida de precaução, subimos para 10 mil km. As criaturas, mesmo não tendo aparelho bucal, apresentaram canibalismo. Uma se punha sobre a outra, sendo que a de baixo se liquidificazia e a de cima sugava aquele líquido. Para surpresa nossa, aconteceu o mesmo com as outras, ficando na redoma protetora apenas a que se alimentou das outras dezenove”.
“Nave Sucof em Adivavon. Registro de Bordo 22, fase 308 da Era Sise. Surtap no comando. Fato estranho se deu com o metabolismo da criatura, que se acelerou de maneira espantosa e cresceu assustadoramente, já ficando sem espaço na redoma. Não mais apresenta a consistência de gelatina e brilhante, parecendo compacta e sem brilho. Atenção, atenção, isolem a área. Oh, o que é isso… A criatura rompeu a redoma e está quase do tamanho da cabine. Após muita agitação, ficou estática, mas, estranhamento, os sensores detectaram um intenso metabolismo, como que sendo de células se dividindo por mitose e meiose ao mesmo tempo. Mesmo com o intenso metabolismo interno, externamente a criatura se mantêm estática, como sem vida”.
“Nave Sucof… Registro… alerta geral, alerta geral, urgente, urgente, vedem todos os canais de refrigeração que saem da cabine, rápido, rápido… oh, tarde demais. A criatura gerou uma imensidade de criaturinhas e muitas delas escaparam pelos canais de refrigeração. Não sei precisar a quantidade. Rápido, rápido, vedem todos os canais. Refrigeração local de emergência, refrigeração de emergência. Liguem todos os canais de comunicação com a base e os visuais da nave. Registrem tudo, registrem tudo. Pulverizem a cabine com a criatura, agora, agora. Potência máxima nas máquinas, rota 8947 em direção a outra galáxia (Vila Láctea)”.
A nave Sucof enviava para a sua base as informações necessárias. Tudo era registrado e imediatamente enviado, enquanto se dirigiam para a Via Láctea. Os aliados não conseguiram atestar que a nave era dos descendentes de Atlover e Aneres e qual objetivo os levava para a galáxia onde estavam. Mas pelo diário de bordo, a Era Sise levava-os a praticamente confirmarem o fato como verdadeiro. Mas, onde estariam os seus descendentes? O que representava a fase 308 da Era Sise? Cada vez mais extasiados, eles acompanhavam as imagens registradas na memória resgatada. A cada uma, foram ficando assustados e preocupados. A grande criatura fora pulverizada. Suas crias se espalharam por todos os ductos da nave, até alcançarem um tripulante descuidado, seja caindo sobre a sua cabeça ou chegando-lhe sorrateiramente a um dos pés. Ele sentia uma leve picada e se deparava com a criatura, que era imediatamente destruída com o laser, jogada ao chão com as mãos ou simplesmente pisoteada. Tão logo, a criatura se transformava num líquido escuro e nauseabundo. Com o passar do tempo, praticamente todos tiveram contato com elas. Nada, entretanto, lhes acontecia. Muitas eram mortas diariamente. Mesmo assim, a impressão era que o número aumentava a cada dia.
A Sucof já estava em viagem há muito tempo, já na Via Láctea, quando o primeiro tripulante sentiu um mal súbito e faleceu. À necropsia, somente e unicamente um dado a se destacar: o coração estava totalmente dilacerado. A nave estava adentrando ao Sistema Solar terráqueo e já havia quinze tripulantes mortos com o mesmo problema. Acontecia de repente. Aparentando muita saúde, subitamente o tripulante desabava ao chão. Os médicos faziam todo tipo de exame nos sobreviventes e não encontrava absolutamente nada. Nos mortos, somente a lesão cardíaca. Passou-se a analisar os sobreviventes a cada hora. Até que um médico detectou uma arritmia num deles. Por ordem do comandante e anuência total do envolvido, o médico lhe fez uma toracotomia¹. Que surpresa: o coração estava em estado deplorável. Foi coletado amostras do tecido cardíaco. Suturada a incisão, o paciente sofreu o mal súbito no outro dia. Ao exame microscópico, lá estavam as criaturas, minúsculas como bactérias. Por que no coração e como elas se reproduziam ali? O médico teve a ideia de examinar as fezes do recém-falecido. Trágica surpresa: as fezes estavam contaminadas com as microscópicas criaturas. Decifrado o ciclo. Na picada, era injetada uma quantidade enorme de uma espécie de ovo. Estes ovos caiam na corrente sanguínea e tinham uma predisposição natural para o coração. Ali se aderiam ao músculo cardíaco e se transformavam nas diminutas criaturas, que se alimentavam das células cardíacas. Por isso o estado deplorável do coração dos mortos. Num determinado estágio, as criaturas voltavam à corrente sanguínea e se aportavam ao intestino, onde se misturavam às fezes. No meio onde estavam coletadas as fezes, elas atingiam o estágio final e de lá saiam. Por isso estavam se multiplicando com enorme velocidade.
Para piorar, as criaturas começaram a investir sobre o instrumental da nave. Panes em muitos setores se fizeram frequentes. A nave já estava quase à deriva. Os tripulantes foram se esvaindo. Por segurança, o comandante resolveu incinerar todos os corpos que jaziam congelados. A Sucof estava adentrando à atmosfera de Marte quando sucumbiu o penúltimo tripulante. Estava vivo unicamente o comandante. A nave tinha enorme dificuldade em responder ao seu comando e foi de encontro ao solo marciano. Com muito esforço, conseguiu evitar o choque e a desviou para o grande vale. Desceu 5 km, quando se chocou com o paredão e ficou repousada numa imensa laje. Imediatamente, o comandante Surtap se dirigiu a uma nave auxiliar, mas se assustou com a enorme quantidade de criaturas que lhe avançavam. Abriu o portão do hangar, se serviu de uma mochila voadora e saltou sobre o precipício. Voou quase mil metros abaixo, quando sentiu o mal súbito. Caiu ao solo e por lá ficou durante uma enormidade de tempo, até ser encontrado por um dos aliados. Sem nenhum tripulante na nave, as câmaras registraram o vai e vem e as transformações das criaturas, que se auto canibalizavam, muitas cresciam, geravam uma infinidade de crias e o ciclo se repetia. De repente, num pensamento uno, os aliados se lembraram do colega que estava em quarentena e da sala de necropsia. Imediatamente, o comandante Otap ordenou ao médico que interrompesse a necropsia e incinerasse o cadáver. O doutor também foi posto em quarentena com as devidas explicações. Como não havia tido contato, era apenas por precaução. Outro médico abriu o tórax do aliado picado e verificou que o coração estava normal. Mas, infelizmente, o colega estava condenado à morte quando chegasse o momento propício do ciclo. Por isso, suas fezes deveriam ser coletadas em recipientes apropriados para serem incineradas, evitando a contaminação de toda a base siuza.
No relatório sobre os fatos, após uma semana de intensos estudos, os aliados chegaram à conclusão que o planeta descoberto pelos seus descendentes era habitado apenas por espécies de animais desconhecidos, pois não havia vestígios de habitações para justificar a presença de vida inteligente. De uma maneira ignorada, as criaturas chegaram àquele planeta. Atacaram os animais, que se transformaram, primeiramente, em vetores. Depois de mortos, as criaturas se alimentavam deles, o que justificava a enorme quantidade de fragmentos ósseos espalhados por todo o planeta. Com a vida animal dizimada, restou à sobrevivência das criaturas o canibalismo. O que os aliados não compreendiam é porque, ao invés da população diminuir com o canibalismo, mais e mais ela aumentava, como se deu na nave de seus descendentes. Era um enigma. O comandante Surtap não foi devorado porque havia abandonado a nave. Pelo visto, a atmosfera marciana não era propícia aos seres misteriosos. Mas como explicar a sobrevivência deles no interior da nave com o portão do hangar aberto? Outro grande enigma. O mais importante, acima de tudo, era evitar que o processo se repetisse entre eles. Para eles, tudo estava sobre controle, e estavam tristes pela iminente morte do colega. Todo aquele imbróglio havia dominado de uma maneira tal os antigos desafetos que até pareciam amigos de longa data. A descoberta de descendentes de Atlover e Aneres emocionou a todos. Onde eles estariam neste momento? Como reagiram às notícias enviadas por Surtap? Se é que o comunicado chegou a eles. Pelo menos quanto à Andrômeda, é certo que sabiam. Será que os descendentes estavam por aquela constelação à procura da nave Sucof? As mentes dos aliados estavam a mil. Foram três dias terrestres de discussões acaloradas.
O comandante Otap, em hipótese alguma, queria abandonar o seu projeto pazoliana. Foi sincero em afirmar que não nutria profundos sentimentos quanto a partir em busca dos descendentes, frisando que a atitude não representava, peremptoriamente, qualquer tipo de rejeição. Para ele, no presente momento, o que importava era o domínio do planeta Terra. Para o comandante Opas, os sedrev tinham enorme interesse num povoamento em conjunto com o siuza. Mas, para o seu povo, havia uma premente necessidade de buscar os seus descendentes. Sabia ele que a decisão de partir em busca dos rastos de Atlover e Aneres poderia se transformar num adeus definitivo, pois o tempo poderia se alongar em demasia e, quando voltassem, os dois comandantes poderiam já estar mortos. Para ambos os comandantes, seria, além de prático, fundamental que os sedrev e os siuza se unissem num só povo para sepultar, definitivamente, as seculares rixas. Todos foram consultados e a maioria se fez a favor desta união. Mas como se daria esta união? Seria necessário, mais do que justo, que ambos os povos se sacrificassem em prol do melhor para todos. Discutem daqui, discutem dali, opinião daqui, opinião dali, até que chegaram a um consenso.
Ficou decidido que 50% do povo sedrev partiria em direção à Andrômeda para um possível encontro com os descendentes. Os outros 50% dos sedrev se incorporariam ao povo siuza no projeto Pazoliana com comando total de Otap. Em contrapartida, 50% dos siuza seguiriam com os sedrev com controle total de Opas. O objetivo era a interação racial, a transformação das duas raças numa só, seguindo o exemplo de Atlover e Aneres quando criaram os Sise. As adesões foram espontâneas em ambas as partes. Se Opas encontrasse os descendentes em Andrômeda, a intenção era propô-los a união. Se não os encontrassem, voltaria, se o tempo permitisse, para participar do domínio da Terra em conjunto com Otap. Ficou decidido que, se um deles ou ambos os comandantes não mais estivessem vivos quando da volta da expedição, os sucessores manteriam o pacto, que seria devidamente registrado para toda a eternidade das gerações. Com tudo acertado, os aliados, sob o comando de Opas, partiram, e os outros aliados, sob o comando de Otap, ficaram para gerir o projeto Pazoliana. Talvez para nunca mais se verem. Pela primeira vez, após séculos e mais séculos depois da batalha final que destruiu o pequeno planeta em que dividiam, uma tragédia sofrida pelos descendentes de ambos conseguiu unir, pelo menos aparentemente, os siuza e os sedrev. Seria uma união feliz e definitiva?
* 1: Compreende-se qualquer abertura da cavidade torácica visando examinar as estruturas expostas cirurgicamente, seja para a coleta de material para diagnóstico laboratorial ou remoção/correção de partes lesadas. Trata-se de um procedimento muito utilizado na prática cirúrgica, tanto para diagnóstico quanto para resolução de problemas que acometem o tórax.
* Texto: Eitel Teixeira Dannemann.
* Foto: Desenho e montagem de Eitel Teixeira Dannemann.