Duas coisas ameaçam o mundo: A ordem e a desordem. (Paul Valéry − 30/10/1871-20/07/1945)
Mês de junho de 1982, ano de Copa do Mundo de Futebol. A seleção brasileira − Waldir Peres, Leandro, Oscar, Luisinho e Júnior; Falcão, Toninho Cerezo, Sócrates e Zico; Serginho Chulapa e Éder Aleixo− chegou à Espanha como franca favorita, mas na segunda fase foi derrotada pela Itália por 3 x 2, sendo eliminada.
Passada a decepção da Copa do Mundo, os repórteres da Rádio Clube de Pico da Glória estavam animados. Não com a derrota do Brasil, mas com as novidades. Sem saberem que mudanças radicais estavam por acontecer, estiveram na capital e conseguiram firmar uma parceria com a Rádio Ibatibaia, a de maior audiência da cidade. Com a anuência de Otaniel Carteiro, o proprietário, firmaram um contrato de divulgação dos produtos lácteos Sued. Além do mais, teriam um programa de quinze minutos, todas as manhãs, com o nome “Sued está aqui”, onde pregariam as hostis do projeto pazoliana. Os Deuses deixaram rolar. Assim como deixaram rolar o fechamento de um contrato de exportação dos produtos para Portugal. Seria uma entrada triunfal na Europa, o pontapé inicial para dominar os povos do primeiro mundo.
Mais satisfeito ainda estava Etnaduja com as sondas sedrev que haviam iniciado o seu plano de eliminação de alguns seres humanos considerados mais do que descartáveis. As doze primeiras foram espalhadas pelos principais centros urbanos de cinco dos seis continentes existentes na Terra com um objetivo bem determinado. A Antártida ficou de fora por causa do baixíssimo índice de criminalidade. A sonda tinha uma programação pré-determinada de trabalhar à noite em periferias e bairros sem infraestrutura das cidades para detectar quem estivesse portando armas sem estar usando qualquer tipo de farda. De preferência, elas deveriam se atentar onde houvesse aglomeração de pessoas. De um dia para o outro, as primeiras mortes já foram manchetes de noticiários. Mais e mais mortes foram se apresentando aos incrédulos. Em todos os lugares do planeta as notícias eram as mesmas: fulano de tal ou um grupo de pessoas simplesmente sumiu no ar sem deixar um único vestígio. Era um assombro, um verdadeiro assombro. Ninguém conseguia explicar absolutamente nada. Poucos dias depois as mortes se intensificaram em demasia com a presença das outras sondas. Mais assombro e incredulidade das autoridades, e mais e mais famílias desesperadas por perderem seus “entes queridos”. Mais assombro e incredulidade das religiões. Para os primeiros, à primeira vista era obra de uma poderosa organização criminosa. Mas concomitante no mundo inteiro? Até sobre os índios da Amazônia? Até sobre os esquimós? Até sobre os aborígenes? Apesar do mistério, todos estavam adorando o sumiço de tantos criminosos. Para os segundos, ah, estava sendo a glória, pois os crimes estavam sendo usados como uma ação de Deus contra os pecadores. Era um dos sinais da volta de Jesus Cristo, que já estava resgatando os ímpios para lançá-los ao inferno. Ou eram sinais de Maomé, quem sabe? Ou ainda uma invasão de espíritos? O povo então começou a frequentar mais assiduamente as igrejas, mesquitas, templos espíritas ou não ou qualquer construção relacionada com alguma crença a um ente divino. Nestas, os pretensos representantes de Deus aqui na Terra diziam que durante algum tempo Ele estaria eliminando os pecadores e que breve chegaria a vez dos merecedores serem resgatados. Portanto, que aproveitassem para procurar as suas igrejas ou afins e se redimissem de todos os pecados, pois seria esta a última oportunidade que teriam. Nunca as igrejas e afins foram tão frequentadas. A cada cinquenta pessoas que entravam em um templo, cem outras eram assassinadas pelas sondas divinas. Assassinatos sem corpos. Para onde foram os corpos? Eram as autoridades se perguntando. Não estamos nem aí, diziam a si mesmos os donos das igrejas, pois “o que queremos é público; por isso, a coisa está ficando cada vez melhor”. Na morada celestial, Os Deuses consideraram interessante esta jogada das religiões.
– Ora, vejam só – comentou Etnaduja. Sou obrigado a bater palmas para estes líderes religiosos. São realmente muito inteligentes, e como sabem se aproveitar dos momentos de fraqueza do povo para angariar mais adeptos. De pensar que há séculos estes pretensos salvadores da humanidade, dizendo-se representantes de Deus aqui na Terra, usam de argumentos falsos para dominar a mente dos desprevenidos e dos necessitados.
– Pois é, eles estão sendo por demais espertos – disse um colega. O interessante é que há elementos inteligentes, curso superior, com bagagem cultural adequada, que não deveriam cair nesta esparrela. Mas estão lá, medrosos, temendo o fim do mundo e agora resolvem buscar a Deus, aceitando ser dominado por estes falsos profetas. Não deixa de ser interessante. O que pretende fazer?
– Hum, boa pergunta.
– Posso dar uma sugestão? Perguntou outro colega.
– Diga, prezado Orual.
– Os humanos estão correndo para a religião em busca de uma boia, de um amparo. Com a verborragia falsa e louca dos líderes, mais e mais consideram que a única salvação está na igreja, na casa de Deus. Por que não enviamos algumas naves para destruir os templos religiosos? Acredito que vai ser uma confusão tremenda.
– Sim, ótima ideia. Parabéns, Orual. Quando eles perceberem que as casas de Deus no planeta todo estão sendo destruídas ficarão mais desesperados ainda e acreditarão que uma força maior que Deus está agindo na Terra, tão poderosa que nem Ele está conseguindo evitar. Aí teremos oportunidade de nos divertirmos com as novas opiniões dos tais líderes. Comandante, quero enviar cinco naves de exploração, uma para cada continente. Cada nave em cada continente vai fazer um auê danado, como bem dizem os terráqueos. Quero que sobrevoem os principais centros religiosos do mundo, as sedes. Por enquanto, somente as sedes. Quero ver tudo destruído, quero ver mortos todos os líderes religiosos do planeta. Depois, destruiremos os outros principais templos e igrejas. Na rota de um templo a outro, quero que as naves continuem destruindo tudo que encontrem pela frente. Oh, vamos nos divertir com os comentários dos outros líderes. Concorda, Comandante Otap?
– Nada contra, mas devemos discutir mais sobre as duas objeções. O aliado sedrev comentou sobre a possibilidade dos nossos fiéis, principalmente a família Mantiqueira, nos questionarem os poderes, e depois poderíamos causar reações aos militares e estes usarem armas atômicas contra nós. Para nós, sem problemas. Lembre-se sobre a objeção que você fez, a possibilidade de explosões em terra ou mesmo em baixas altitudes.
– Sim, com certeza. Quanto aos fiéis, quando chegar o momento em que eles não mais acreditarem em nós como Deuses, teremos que abrir o jogo e contar a verdade. Se eles não aderirem, os destruiremos, como já foi comentado, mesmo com todo o carinho que tenho por eles. Como disse o colega sedrev, realmente temos que pensar somente em nós. Quanto às armas nucleares, é certo que vão ser usadas contra nós, como já usaram. Quanto a isso, impossível será que qualquer um de seus mísseis teleguiados nos alcance. Com a nossa velocidade, atrairemos os mísseis para o espaço aberto, onde os destruiremos. O risco de alguma explosão em terra sempre haverá, não temos como fugir disso. Para ser sincero, o contra-ataque deles será ótimo. Logo perceberão que nenhuma de suas armas mais poderosas são capazes de nos lesar, como já demonstrou o comandante Opas naquela ocasião do ataque das naves terráqueas. Se ninguém tiver mais objeções, mãos à obra.
Pobre planeta Terra! Quantas e quantas catástrofes foram anunciadas como sendo o fim do mundo e não aconteceram. As profecias bíblicas e de outros autores, como Nostradamus, vivem de boca em boca. A coisa vem de longa data. Lá pelos idos de 960, vivia um profeta chamado Bernard. Ele anunciou que o fim do mundo ocorreria em 992, no dia em que a sexta feira santa coincidisse com a festa da Anunciação da Virgem. Como nada aconteceu, o povo ficou esperando a próxima, esta vinda do Apocalipse bíblico, que garantia o fim do mundo mil anos após o nascimento de Cristo. Nada aconteceu e o mundo seguiu a sua vidinha. Os anos se foram até chegarmos em 21 de fevereiro de 1524. Neste dia, o mundo iria pras cucuias por garantia de um astrólogo inglês. Ele anunciara pouco menos de um ano antes um dilúvio, mesmo Deus tendo garantido que nunca mais haveria dilúvio, por causa do alinhamento planetário no grau doze de Peixes. Nada, e o a vidinha do mundo continuou. O próximo se daria no dia de São Patrício no ano de 1842, de acordo com o astrólogo inglês John Dee. Para ele, a Europa seria destruída por um cataclismo. Nada, e a vidinha do mundo prosseguiu.
Pobre planeta Terra! Quantas e quantas catástrofes anunciadas não passaram de falsas ilusões de pretensos adivinhos espertalhões. Um deles, William Bell, afirmara com absoluta convicção, que um terremoto devastador destruiria o planeta em 5 de abril de 1761. Nada, e a vidinha no mundo continuou. Em 1910, houve a passagem do cometa Halley. Profetizaram que a presença de gás cianogênio na cauda do astro mataria toda a população. Nada. Em 18/11/1978, o desmiolado pastor Jim Jones, na certeza de que o planeta chegara a seu final, conseguiu que 900 pessoas ingerissem um suco com cianureto. E o mundo continuou a sua vidinha. Assim como continuava a sua vidinha quando naves extraterrestres começaram a sobrevoar os cinco continentes. Para se tornarem mais sinistras as visitas sinistras, elas chegaram à noite, e danaram a soltar raios mortíferos nas cabeças de cautos e incautos. As populações de todos os cantos do planeta se abismavam com toda aquela luminosidade no céu. Boquiabertos, admiravam até o primeiro feixe de luz azul. Boquiabertos, saiam em disparada quando viam pessoas a seu lado sendo literalmente consumidas pelo nada e em nada se transformando. No outro dia, dia claro com o sol reluzente, elas voltaram e permitiram a todos presenciarem a imponência dos metais, das formas e da magnificência. Nos gabinetes onde humanos desfilavam as condecorações e as divisas nos ombros, pobres coitados, fora dada a ordem apertando-se um nobre botão vermelho após ter sido acionado um nobre telefone vermelho. Em vários pontos do planeta, bases estratégicas lançaram ao ar a tecnologia de última ponta dos terráqueos, a arma mortífera que antes separava nações e agora as uniam na argamassa do medo incontido. Vários mísseis inteligentes e nucleares saíram sedentos de vingança contra aqueles amontoados de metais desconhecidos na certeza de que eles, suprassumos da capacidade neuronal dos humanos, beijariam mortalmente a face de seus inimigos. Lá no espaço longínquo, lá nas alturas somente avistadas por olhos mecânicos e escutadas por ouvidos mecânicos, várias explosões foram detectadas. A glória dos homens poderosos de divisas que comandavam a manada de humanos que só serviam para parir filhos e atrapalhar as suas vidas, se vangloriavam pela insensatez de suas neuroses bélicas uns contra os outros e que agora, naquele exato momento, os uns contra os outros estavam juntos contra outros que não tinham nada a ver com eles. Os olhos mecânicos e os ouvidos mecânicos trouxeram a notícia de que, pelos menos, seus artefatos fizeram barulho e provocaram lindos clarões. Poucos minutos depois, todas as naves voltaram a sobrevoar os desesperados. Os traques enviados pelos soberanos humanos nem cócegas fizeram nas axilas alienígenas. E agora? Os Deuses, piedosos, consumiram o dia todo a plainarem por sobre as cabeças que teimavam em se esconder no primeiro buraco que encontrassem. Os raios solares refletiam nos metais e voltavam às retinas enlouquecidas pelo pavor. Oh, que alívio, ouviu-se no mundo todo. Sim, olhem para o céu, eles estão indo embora. Se foram. E agora, o que vai acontecer? A humanidade se comportava como uma colônia de formigas que recebera uma carga de veneno. E agora?
Foi apenas o suficiente para uma longa puxada de ar. Os metais reluzentes, um a cada local programado, reapareceram, nervosos e bufando ira por todos os forames. Os repletos de divisas originariamente inimigos mortais e agora amigos desde criancinhas apertaram novamente os botões. A maravilha tecnológica da destruição em prol da humanidade singrou os ares em busca do invasor atrevido. Lá nos espaço, novas explosões e novas luminosidades. Em vão. Os pássaros de metal desceram e se dirigiram para as casas de Deus, as sedes de cada uma. Inúmeras, espalhadas pelos cinco continentes. Eram tantas que talvez nem o próprio Deus soubesse que havia tantas entidades no planeta a representá-lo. Viraram pó, numa mistura de massa concreta com massa insana, cal e ossos, tijolo e almas, barro e espírito. Ao pó voltaram todos.
Etnaduja havia aventado a possibilidade, remotíssima, de alguma explosão atômica acontecer em terra. Houve um momento em que os neurônios terráqueos entraram em curto circuito permanente. Vendo-se fatalmente condenados à morte eterna, os detentores de divisas danaram a apertar os botões vermelhos. Se iriam infalivelmente morrer, que voassem pelos ares todo o arsenal mirabolante. Se iriam inapelavelmente morrer, que a Terra fosse marcada tenazmente pela radiação. Oh, invasores do além, que nos matem, que nos aniquilem, que dominem a Terra, mas que recebam de presente um planeta contaminado, mortalmente contaminado. Foi um susto, um disparate para os Deuses. Com esta artimanha dos humanos eles não contavam. Oh! desespero humano. Pelo menos vinte explosões atômicas aconteceram na Europa, América do Norte e Ásia. Teve momentos em que os incautos se viram mergulhados no bafo da morte atômica, e antes de se apagarem, diziam a si mesmos que eram humanos, que as bombas deveriam ser disparadas para o alto, e não por sobre as suas cabeças. Os Deuses fizeram de tudo para não deixar nenhum átomo contaminado cair por sobre as faces do imenso país verde e amarelo. Conseguiram.
Pobre planeta Terra! Oh autoridades! Oh religiosos! Oh pobre povo! Quanta celeuma, quanta consternação foi proferida em todos os idiomas. Os satélites soltavam fumaça tamanha era a troca de informações. Houve congestionamento nos sistemas de comunicação. Ninguém conseguia falar satisfatoriamente com ninguém. As famílias choravam os seus desaparecidos para sempre, para a eternidade. Os fiéis se viram abandonados por Deus. Oh, onde estava Deus que não fazia nada vendo a sua casa sendo destruída? Onde estava Deus que não fazia nada vendo os seus legítimos representantes na Terra sendo mortos por Satanás. Oh, Satanás venceu, Satanás venceu, é o fim do mundo, é o fim do mundo.
Setembro de 1982. Como em várias localidades mundo afora que ainda simplesmente estavam de pé, Vila do Córrego Dobrado não presenciara os metais alienígenas. Mas, via satélite, as notícias correram o mundo, dando saltos curtos, picotadas, mas chegaram aonde ainda existia vida. E a Vila fazia parte do mundo aonde ainda existia vida. Por isso, como parte integrante de um mundo considerado civilizado onde fios e não fios ligavam uns aos outros, as notícias também chegaram por lá. As repetidoras de TV de Pico da Glória enviavam para a Vila as novidades tétricas. As imagens eram terríveis. Os que ouviam rádios, ficaram de bocas abertas. O que é isso, perguntavam-se os fiéis pazolianos. Do curral, Januário ouviu um chamado enclausurado da mãe. Sentado no sofá, seus olhos não acreditavam no que estavam vendo. De repente, as imagens sumiram na tela da Telefunken. O que é isso, perguntou-se a família Mantiqueira.
Na morada celestial, os Deuses, tão tensos como os humanos antes da morte, faziam conjecturas:
– Temos problemas, temos problemas – disse Otap a Etnaduja. Um dos que tiveram contato com o médico legista está apresentando os sintomas neurológicos. Quiçá nós, do comando, não estejamos também infectados. Vinte, exatamente vinte explosões atômicas aconteceram em terra. Estamos avaliando o grau de contaminação. Bem, pelo menos não houve nenhuma neste país. Precisamos resolver de uma vez por todas o projeto pazoliano. Vá, desça e estabeleça o que for melhor para nós quanto ao planeta. Enquanto isso estaremos aqui discutindo o que fazer a respeito deste perigo que nos ameaça. Estou preocupado, Etnaduja, muito preocupado. Quem sabe tenhamos efetivamente que abandonar este Sistema Solar. Vá, vá agora.
Etnaduja não perdeu tempo e se materializou na sala dos Mantiqueira.
– Oh Etnaduja, o que está acontecendo? – perguntou Januário, estarrecido.
– Precisamos ter uma conversa decisiva, dura, que pode mudar todas as concepções, todos os conceitos, tudo… tudo… tudo está por um fio, por uma aceitação ou não de vocês. Muito bem, eis Januário, Mabélia, Mara, Sofia, Asued, Sued Filho e Padre Alaor. Atentem para o que vou declarar. Atentem e, antes de manifestações emocionais, fixem na razão, apenas na razão, pois vocês não terão alternativa a não ser se unir a nós. Portanto, me ouçam atentamente. Não me interrompam uma única vez, apenas me ouçam.
* Texto: Eitel Teixeira Dannemann.
* Foto: Desenho e montagem de Eitel Teixeira Dannemann.