PAZOLIANA − CAPÍTULO 10: RELIGIOSIDADE FILOSÓFICA

Postado por e arquivado em CANTINHO LITERÁRIO DO EITEL.

“O verdadeiro mistério do mundo é o visível, não o invisível”. Oscar Wilde – 1854-1900)

Em 12 de novembro de 1974 foi lançado um LP com uma coletânea de sucessos intitulado “Os Grandes Nomes da Música Popular Brasileira” que agradou a muita gente. Veio com Paulinho Nogueira (Menina), Tom Zé (Jeitinho Dela), Jorge Ben (Chove Chuva), Zimbo Trio (Januária), Toquinho & Vinicius (A Tonga da Mironga do Kabuletê), Chico Buarque (Roda Viva), Juca Chaves (Por Quem Sonha Ana Maria), Cláudia (Acalanto), Paulinho da Viola (Arvoredo), Eliana Pittman (Iá Iá do Cais Dourado), Helena de Lima (Máscara Negra) e Geraldo Vandré (Fica Mal Com Deus). E no mesmo dia, foi um arraso a estreia do filme O Exorcista. Filas extensas se formaram à frente dos cinemas das maiores capitais. Na época o ingresso custava por volta de Cr$ 12,00.

Por falar em exorcismo, dois dias de reunião acirrada no Vaticano e nenhuma conclusão definitiva. Era tudo muito estranho, tudo muito confuso, principalmente porque os homens entendidos no espaço sideral não conseguiam explicar o sumiço dos Deuses. Fato real, testemunhado pelo Padre Alaor, era o tal colar e o aparelho que cicatriza ferida. E por falar em padre, num dos intervalos da reunião, Bispo Ednando foi solicitado ao telefone. Diretamente da Vila do Córrego Dobrado, Padre Alaor anunciou o assassinato de Arnaldo e todos os acontecimentos que o precederam.

– Não posso acreditar – disse estarrecido o Bispo.

– Pois acredite que é a mais pura verdade – respondeu Padre Alaor.

– O que comentam por aí?

– Dúvidas, dúvidas e muitas dúvidas. Como eu disse, primeiro foi o carro da concessionária de eletricidade. Não sabemos se foi o mesmo carro que esteve na casa da família. Uma testemunha disse que viu um caminhão tipo baú saindo da cidade momentos antes em que os familiares de Arnaldo saíram da casa acordando a cidade toda.

– Como está a família?

– Terrivelmente abalada, Bispo, muito abalada. A esposa está em estado de choque. As filhas ainda não conseguiram assimilar o ocorrido. O adolescente é que demonstra mais calma.

– Este acontecimento é muito sério, muito sério.

– Bispo, não tivemos nada com isso, certo?

– Que é isso, padre, está louco?

– Ah, um monte de coisa passa pela cabeça da gente numa hora dessas. Não se esqueça de que o senhor me disse que era meta do Vaticano se apossar dos objetos. Isto até está parecendo queima de arquivo.

– Padre Alaor, meça suas palavras.

– Mas, Bispo, o Vaticano não queria o colar e o aparelho de cicatrização?

– É evidente que sim, mas não com atitudes deste nível. Tenha dó, Padre.

– Como o senhor analisa este crime?

– É perigoso qualquer opinião antes de uma análise minuciosa.

– O senhor acredita que foi ação de algum governo?

– Como eu disse, não temos como deliberar no momento. Vou comunicar aos outros e retornarei ao país imediatamente com as medidas adequadas a serem tomadas por nós. Enquanto isso, reconforte a família.

– Ok, Bispo, até breve.

O Vaticano se exaltou com o assassinato de Arnaldo. A notícia chegou aos porões dos interessados. A quem interessaria o assassinato do homem do colar, colar este que já não se encontrava mais que ele?

Na Vila do Córrego Dobrado, Padre Alaor não cansava de pensar com seus botões. Ele, que havia alertado Arnaldo sobre a eventualidade de um risco qualquer, buscava informações com a concessionária de eletricidade e a polícia sobre a camionete de prestação de serviços da empresa. Caso ainda sem solução. E quanto a uma testemunha que presenciara um caminhão de uma transportadora em alta madrugada? Dúvidas, dúvidas e mais dúvidas. Resolveu ir até a casa da família. Obviamente, a consternação era uma realidade aparente. Mesmo com aquele drama todo, o Padre não perdeu a oportunidade para averiguações. Quem sabe, emocionalmente perturbados, aquelas pessoas lhe esclarecessem algumas das terríveis dúvidas. Mabélia estava sem as mínimas condições de diálogo. As duas filhas, como se diz, delirando, não falavam coisa com coisa, mas sem uma única palavra a respeito do fenômeno. Somente Januário se mostrava coerente. Apesar dos ainda dezoito anos, aparentava uma maturidade de fazer inveja a muita gente considerada experiente na vida. Mesmo não conhecendo o rapaz intimamente, Padre Alaor se admirava com a sua sobriedade. Notava-se no rapaz uma espécie de consentimento quanto ao fato de ter perdido o pai de forma tão trágica. Era como se ele já esperasse por isso, como se houvesse uma linha divisória entre a realidade e o irreal, e que seu pai estava exatamente postado nesta linha quando lhe foi extirpada a vida. Sentados no alpendre, o Padre se armou da astúcia para tentar arrancar alguma informação útil do adolescente.

– Você acha que foi um crime premeditado?

– Neste mundo de enigmas tudo é possível, Padre.

– Como você me definiria um mundo de enigmas?

– Um mundo onde fatos aparentemente sem explicações nos escondem uma realidade cruel.

– O que você quer dizer com isso?

– Olhe para o céu, Padre, o que vê?

– Um azul exuberante numa obra prima de Deus.

– Pois este azul exuberante de Deus não é simplesmente um azul exuberante de Deus. Há particularidades intrínsecas que o homem ainda não adquiriu capacidade de compreendê-las. Simplesmente mirar os olhos no azul é um ato meramente instintivo. O instinto humano apenas percebe que lá no alto há um azul exuberante criado por Deus. Mas o que representa este azul exuberante? Por que Deus o criou? Por que, anos após anos, lá está presente aquele azul exuberante? Por que, nunca, há a presença de Deus ao lado de seu azul exuberante? Sabemos que Deus o criou. Mas por que, afinal de contas, Deus nunca se apresenta perante as suas obras? Teríamos que aceitar a ideia de que a obra em si seria o próprio Deus? Aquele azul lá em cima seria a essência material de Deus a nos lembrar que Ele criou e lá deixou para que nos lembrássemos diariamente e eternamente Dele?

– Ora, Januário, aprendemos desde crianças que Deus não criou nada ao acaso. Se lá está o azul é porque Ele teve um propósito em criá-lo. Cabe a nós perceber na criação o espírito do Criador.

– Eis a questão, prezado Padre, quem é capaz de perceber, na acepção da palavra, o espírito do Criador em cada obra sua? Olhemos em volta. Há coisas belas e nem tão belas assim. Quem criou tudo isso? Claro, sim, Deus! Mas onde está Deus? Repito: por que nunca presenciamos o Criador frente à sua obra?

– Deus é espírito e a essência de tudo. Tudo é o próprio Deus, não há a necessária presença Dele para se atestar que Ele foi o criador.

– Simplório, Padre Alaor, muito simplório. Houve um tempo em que Deus andava com os profetas. Houve um tempo em que Deus falava com os humanos, por mais simples que fossem. A última manifestação efetiva da presença de Deus entre nós foi através de Jesus Cristo. Já lá se vão quase dois mil anos e Deus se manifesta entre nós unicamente através de suas criações, como este exuberante céu azul. Onde está Deus, Padre Alaor? Onde está Jesus Cristo?

Cristo deu a vida para a nossa salvação. O seu ministério não surgiu de um dia para outro. A sua comunhão com os homens não surgiu num simples assopro. Cristo, primeiro, se compadeceu do mundo. O começo do que podemos chamar o ministério de Cristo, ao alcançar a virilidade, é assinalado por esta compaixão profunda e incansável pelos sofrimentos do mundo, simbolizada na descida do rio. A vida de Cristo deve, daqui em diante, resumir-se na frase: “Ele ia, de lugar em lugar, fazendo o bem, porque os que sacrificam sua vida a fim de se tornarem canais da Vida Divina não podem ter, neste mundo, outro interesse senão servir aos seus semelhantes”. O Cristo aprende a identificar-se com a consciência dos que o cercam, a sentir como eles sentem, a pensar como eles pensam, partilhando suas alegrias e dores; traz para a vida diária este sentimento de unidade com tudo o que existe, que ele observa nos mundos invisíveis. Sua simpatia vibra em harmonia perfeita com o acorde múltiplo da vida humana, reunindo em si as vidas humana e divina, a fim de se tornar um mediador entre o céu e a terra. Manifestam-se, então, poderes em sua pessoa, porque nele mora o Espírito e começa a aparecer aos homens como um ser capaz de ajuntar seus irmãos mais jovens no caminho da vida. Eles o cercam, sentindo a força que emana dele, a Vida divina trabalhando no Filho, o Enviado do Altíssimo. As almas esfaimadas vão e ele, que as alimenta com o pão da vida; os pecadores se aproximam e ele os cura, pronunciando a palavra de vida que afasta a doença e torna a alma sã; as almas cegas pela ignorância buscam sua presença e ele abre seus olhos à luz da sabedoria¹. Repare, meu rapaz, quão belo é o trabalho de Cristo.

– Sim, Padre, nenhum cristão convicto pode negar o que representou Jesus Cristo. Mas…

– Pense bem, Januário, o que representou para o Pai a morte de seu filho. Não se ponha no lugar de Deus, mas apenas imagine. Só de imaginar, você mesmo terá condições de atenuar a dor pela perda de Arnaldo. O ministério de Cristo representa uma grandiosidade que foi percebida por poucos, infelizmente. O que caracteriza, antes de tudo, o seu ministério é que os mais humildes e pobres, os mais desesperados e degradados sentem, ao aproximar-se, que não existe barreira que os separa dele e experimentam um benévolo acolhimento e nunca a repulsa. Porque, de sua pessoa, irradia um amor que tudo envolve, e, assim, ninguém pode ser repelido. Por mais atrasada que seja uma alma, jamais sente no Cristo um ser acima de si, mas sente-o ao seu lado, pisando com pé humano o pó da terra, tendo, todavia, um poder estranho e formidável que faz nascer, nas almas pecaminosas, desconhecidos anseios e inspirações sublimes¹.

– Sim, entendi o seu conceito da entidade Jesus Cristo. Mas Padre, Deus queira que o senhor pudesse entender o que está acontecendo comigo e com minha família, pois…

– Meu filho, você me preocupa, seria, quem sabe, um lampejo de descrença?

– O senhor disse: Deus é espírito e a essência de tudo, tudo é o próprio Deus, assim como Cristo foi o próprio Deus que nos trouxe muitas alegrias quando aqui esteve. Estendo o meu olhar à frente e lá percebo a mão de Deus. Não, absolutamente não se trata de um lampejo de descrença. Deus para mim é real, tão real quanto tudo o que Ele criou e a vinda e morte de seu único filho. A circunstância primordial da crença não se estabelece num simples estalar de dedos, num simples repetir a si mesmo palavras como “tudo bem, eu acredito e pronto”. Não, Padre, a coisa é muito mais séria do que o senhor imagina.

– Meu rapaz, suas palavras me induzem a crer que você sabe algo que ninguém mais sabe.

– Os enigmas são exercícios poderosos para a mente. Seria muito interessante para a humanidade se todos se ocupassem em desvendar enigmas. Poderiam começar pela tentativa de descobrir o motivo que levou Deus a não mais se manifestar ante os homens após a crucificação de seu filho.

– Januário, você está proferindo palavras ilegíveis ao meu bom senso.

– Deixe estar, Padre, estou emocionado e ainda sem entender a contento o porquê tinha que acontecer. Não estava nos planos.

– O que não estava nos planos?

– Faz parte dos enigmas, caro Padre, um grande enigma cuja busca muito me agradará, apesar do intenso pesar em que me encontro. Hei de descobri-lo. Talvez, quem saiba, dentro de quatro anos eu descubra. Enquanto isso, não resta alternativa a não ser continuar a vida, trabalhando e amparando minha mãe e minhas irmãs.

– Por que quatro anos?

– Desculpe-me, Padre, mas estou cansado e minhas entranhas parecem que estão se auto consumindo. A sua bênção, e permita-me que me retire para um repouso.

Ao retornar à igreja, Padre Alaor estava inconsolável e, fundamentalmente, incrédulo com a postura do rapaz. Não o conhecia profundamente, mas tinha noções sobre sua capacidade intelectual. Era um rapaz comum do interior acostumado à lida com curral, ordenhas e manejo de gado. Na escola, sem alardes para genialidade ou debilidade. Em palavras populares, era bronco ou simplesmente tinha os modos típicos do caipira do interior. Mas era honesto e tremendamente educado, berço deixado por Arnaldo. O que mais impressionou o Padre foi o linguajar do rapaz pendendo para explicações filosóficas. Nunca, mas nunca mesmo, Padre Alaor esperava um linguajar filosófico por parte de Januário. Enigmas e mais enigmas. Por que ele insistiu em perguntar por onde andava Deus? Ele destacou que, quem sabe, dentro de quatro anos saberia a resposta sobre o motivo da morte do pai. Por que dentro de quatro anos? Enigmas e mais enigmas. Assim, a vida seguiu para todos, de Vila do Córrego Dobrado ao cientista mais renomado da NASA, passando pelos ocupantes do Vaticano: enigmas e mais enigmas. Januário e sua família, aos poucos, se recuperaram do choque pela partida antes do tempo de Arnaldo. O rapaz saiu-se muito bem como substituto do pai na lida com o gado e no fabrico de queijos, e em poucos meses tornou-se respeitado na cidade. Mabélia cuidava da casa com especial atenção às duas filhas. Tudo parecia normal no mundo, principalmente as suas incongruências. Sobre o assassinato de Arnaldo, nenhuma pista plausível. E o tempo foi passando, foi passando…

* 1: Do livro “Cristianismo Esotérico”, de Annie Besant.

* Texto: Eitel Teixeira Dannemann.

* Foto: Desenho e montagem de Eitel Teixeira Dannemann.

Compartilhe