PAZOLIANA − CAPÍTULO 14: MISSA ESTRANHA E UM NOVO PADRE

Postado por e arquivado em CANTINHO LITERÁRIO DO EITEL.

Tudo, aliás, é a ponta de um mistério, inclusive os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece há um milagre que não estamos vendo”. Guimarães Rosa − 1908-1967)

Enquanto os Deuses trabalhavam duro na revisão geral de sua frota estelar, os terráqueos continuavam se considerando os suprassumos da inteligência universal com a criação de veículos espaciais cada vez mais sofisticados. Para eles, humanos, pois para Sued & Cia aquilo tudo não passava de carroças. A luta ensandecida entre russos e americanos pelo poderio das alturas cada vez mais longínquas os levaram às estações espaciais. A URSS havia lançada a primeira, Salyut, em 19 de abril de 1971, seguidas de outras, como o projeto Almaz. Em 14 de maio de 1973 os americanos lançaram a sua primeira, Skaylab. Alguns acidentes ocorreram com as estações russas, assim como aconteceu com a americana. Quanto a esta, ficou dependurada lá no espaço durante pouco mais de seis anos. Em julho daquele ano de 1979, os simplórios habitantes de Vila do Córrego Dobrado receberam notícias de que a Skaylab estava para cair sobre as cabeças dos terráqueos, e que os habitantes da pequena localidade se prevenissem. Teve gente que só saiu de casa depois que caiu a geringonça.  Não demorou muito e Zé Limão danou a falar que era coisa de gente do espaço e que Arnaldo devia estar envolvido com isso. Óbvio, ninguém levou a sério. O negócio é que a Skaylab caiu sem maiores danos e a vida seguiu.

O glorioso ano de 1980 adentrava ao mês de março. Padre Alaor havia voltado de um encontro em Pico da Glória que considerava de suma importância. Estava mais do que decidida a vinda ao Brasil do Papa João Paulo II. A visita aconteceria em junho próximo. O motivo da visita é que não foi devidamente esclarecido. Seria apenas uma visita ecumênica ou por trás dela estariam envolvidos os fenômenos dos ETs? Bispo Ednando jurou de pés juntos que não sabia. Será? O Padre chegou, guardou o veículo e foi entrar na igreja. Num descuido, escorregou e caiu de testa no chão. Resultado: hospital. Enquanto o eclesiástico era atendido, Mara e Sofia estavam em sala de aula no momento em que Januário estacionava o Maverick na garagem de casa. Ele e Mabélia, esta carregando nos braços uma criança de nome Asued, desceram e entraram na residência. Depois de ajeitar as coisas, os dois fizeram questão de sentar no alpendre. Foi o suficiente para um transeunte observar a novidade. Não demorou muito e algumas amigas da viúva chegaram. Apesar de não ser novidade, pois a pretensão de Mabélia adotar uma criança já era conhecida pelo povo, muitos chegaram para conhecê-la. Alguns estranharam o nome esquisito da menina. Enquanto jogavam conversa fora e mimavam a criança, Mara e Sofia chegaram da escola. Logo depois um conhecido passou e informou que Padre Alaor havia sido hospitalizado por causa de uma queda. Januário não perdeu tempo para ir visitá-lo. No hospital, a muito custo, conseguiu convencer os enfermeiros a uma rápida visita, com a promessa de não incomodá-lo, pois o paciente estava muito cansado e provavelmente dormindo. O quadro médico não era preocupante. Havia apenas um corte na testa, já com curativo. Januário entrou, fechando a porta. Enquanto ainda estava de costas, o Padre reconheceu o rapaz, mas fingiu estar dormindo. Os enfermeiros lhe liberaram apenas alguns minutos, antes que os médicos chegassem. Aproximou-se da cama, encostou o Osorgalim no curativo por um minuto e saiu. O Padre se levantou e correu ao banheiro. Desprendeu o curativo e não mais viu o ferimento. Recompôs-se, repôs o curativo, e voltou para a cama, solicitando a presença do médico. Sem relatar o que houve, ficou evidenciado que já estava bem e pronto para sair. Sem mais delongas, recebeu alta e foi levado para os seus aposentos na igreja. Sua inquietação era gritante. Tão logo chegou, mandou um recado a Januário, convidando-o a lhe visitar urgentemente. Poucos minutos depois, estavam a sós no escritório da igreja. A primeira atitude foi remover o curativo.

– Januário, explique-me isso.

– Foi este aparelho aqui, Padre, o mesmo que curou o ferimento do bezerro. Naquela oportunidade eu neguei porque o senhor não estava preparado para ouvir a verdade.

– Ah, meu Deus do céu, então é tudo verdade.

– Sim, Padre. Como eu estava dizendo, este pequeno aparelho foi desenvolvido pelo Deus Sued, o Todo Poderoso. Através dele nós invocamos o Seu poder. Lá da morada celeste o poder de Sued desce, entra neste aparelho e dele vai até o ferimento. É assim que funciona.

– Oh não, mil vezes não, Deus Sued? Não faça isso comigo, meu rapaz, Deus só existe um, que é o pai de Jesus Cristo. Este aparelho é uma tecnologia dos extraterrestres, atente-se para…

– Não são de extraterrestres, foi desenvolvido pelos Deuses e me ofertado para que, através dele, eu possa difundir alguns poderes de Sued.

– Ora, pare com isso, Januário, pois sabemos de tudo.

– Sabem também, por um acaso, quem matou o meu pai?

– Claro que… até hoje não desvendaram o crime, como poderei saber?

– Foi o Vaticano?

– Por favor, meu bom rapaz, não dê uma de doido como fez na igreja.

– Se não foi o Vaticano, maiores chances para quem? Americanos? Russos? Algum grupo civil interessado em ganhar muito dinheiro?

– Não sei absolutamente de nada. Aliás, sei de uma coisa boa e vou te contar. O Papa vem nos visitar em junho. Que tal?

– Padre Alaor, a morte de meu pai muito me revoltou. Os Deuses me ampararam e hoje sei que não será em vão. Estou lhe fazendo estas perguntas sobre ele apenas para instigá-lo. Na verdade, não me interessa mais quem o matou e não me interessa a mínima a vinda deste papa. Só me interessa a nova era.

– Januário, Januário, que conversa esquisita de nova era é essa? E que falta de respeito para com o Papa! Tenho consciência plena da existência deste colar e do aparelho. Sabemos perfeitamente que são tecnologias alienígenas. Abra os olhos, pois você está sendo manipulado por eles e…

– Desde quando um Deus manipula seus seguidores?

– Meu rapaz, você pouco se deslocou das fronteiras deste município, não tem experiência de vida para discernir sobre determinados fatos. Há lá no espaço naves alienígenas. Os seres destas naves entraram em contato, primeiro, com seu pai, que logo foi dominado. Por causa deles, os ETs, seu pai foi morto. Por isso digo e repito: abra os olhos, pois eles, lá de cima, estão usando você e sua família para algum propósito do qual ainda não sabemos. Lembre-se de nossa última conversa sobre Jesus Cristo. Lembre-se do sacrifico que Ele fez por nós.

– Meu bom Padre Alaor, tenho um enorme respeito pelo senhor. Está certo quando diz que não conheço muitos lugares além dos limites de Pico da Glória. O senhor não tem noção de uma enormidade de coisas, como, por exemplo, como aproveito o meu tempo nas idas a Pico da Glória para vender os queijos. Sabe, padre, tenho visitado constantemente a biblioteca pública e até a biblioteca da faculdade de Filosofia. O senhor não imagina o quanto estou aprendendo sobre os fatos do mundo, estou anotando tudo, como, por exemplo, a tendência esquerdista que está se formando no Brasil O que está acontecendo aqui não tem nada a ver com falta de experiência de vida. Trata-se, unicamente, de realidade, uma realidade nua e crua que o senhor vai conhecer ainda hoje.

– Realidade nua e crua? Vou conhecer esta realidade nua e crua? Mas o que tem essa tendência esquerdista com a Vila do Córrego Dobrado?

– Meu bom Padre, quem está demonstrando falta de experiência de vida é o senhor, que não enxerga as mudanças políticas que estão acontecendo. É até estranho, pois a Igreja é muita assanhada em se associar a esquerdistas.

– Por favor, Januário, mire-se no exemplo de Jesus Cristo, mire-se nele porque assim você se verá livre do domínio destes ETs. Lembra quando eu lhe disse como Cristo entendeu a alma dos sofredores? Ele andou pela terra absorvendo a necessidade dos oprimidos. Vai, vai, só um pouquinho, feche os olhos…

– Padre, Padre, está fugindo da realidade, por isso não há mais necessidade destes longos discursos.

– Ouça, rapaz, só um pouquinho. Feche os olhos agora e imagine Jesus Cristo em suas andanças. Sinta, veja como procura os desesperados. Tudo isso lhe fez o humano mais perfeito do mundo. Enquanto Ele caminhava, desde então, Ele compreende seu posto aqui embaixo e quais suas funções na natureza: ser um Salvador, expiar os pecados dos homens, mantendo-se no coração central do mundo, o Santo dos Santos, como grande Sacerdote da Humanidade. Ele é um com todos os Seus irmãos – não por substituição, mas por identidade de uma vida comum. Há alguém pecaminoso? O Cristo se faz pecador com ele, a fim de, com sua pureza, limpar suas máculas. Sente alguma tristeza? O Cristo, o Homem da dor vem, com o coração despedaçado, para consolá-lo. As almas sentem alegria; Ele sente-se alegre com elas, enchendo-as com a Sua felicidade. Mostra-se alguém necessitado? É Ele quem sente a necessidade, sofrendo com ele, a fim de cumulá-lo com suas riquezas superabundantes. Tudo Ele possui, e todos nós podemos possuir com Ele. Ele é o Perfeito e o Forte, e, ao Seu lado, todos podemos ser perfeitos e fortes. Ele se elevou para poder derramar as Suas graças sobre todos os que estão abaixo dele, para que todos possam partilhar Sua vida. O mundo inteiro eleva-se com Ele, à medida que Ele ascende, e o caminho é, para todos, mais fácil de seguir, porque Ele nos precedeu. Todo o filho do homem pode, assim, tornar-se um Filho de Deus manifestado, um Salvador do mundo; cada um destes Filhos é Deus manifestado em carne, o redentor que ajuda a humanidade inteira, o poder vivo que renova a todas as coisas. Uma única condição é necessária para permitir que este Poder possa manifestar-se na alma individual: a alma deve abrir a porta e deixar entrar o Cristo, que, tudo penetrando, não poderia, entretanto, entrar à força e contra a vontade de Seu irmão¹. Só Ele, Januário, em nome de seu Pai, poderá salvá-lo deste domínio satânico que está te martirizando, é só ter vontade.

– Aqui não se trata de vontade, mas de…

A vontade humana possui a faculdade de se opor a Deus, como se opõe ao homem; ora, é indispensável que ela se associe à ação divina espontaneamente, sem nenhuma violência exterior¹.

– Padre, a minha vontade já foi preenchida. Quer ver uma coisa? Este colar o senhor já conhece. Veja como é belo. Olhe bem para esta bolinha azul. Está reparando bem? Agora, preste muita atenção.

Um intenso raio de luz azulada bateu forte nos olhos do padre, causando-lhe imediatamente profundo sono. Januário acomodou o colar em volta da testa do padre e o ajeitou confortavelmente na cadeira, sentando-se ele numa outra cadeira ao lado. Padre Alaor iniciou uma viagem pelos confins das galáxias. Uma infinidade de cenas surgia em sua mente. Viu uma imensidão de água caindo em cascatas grandiosas sobre as cabeças de inúmeras crianças, lindas crianças, limpas e puras. Viu uma chama de vela se transformar numa imensa língua de fogo de onde emergiu o Espírito Santo. Planando por cima das imagens, viu-se envolto num cardume de peixes, uma quantidade imensurável de peixes. Sentiu-se nadando com eles, fazendo parte deles, sentindo-se um deles. No meio daquela imensidão piscosa, percebeu duas mãos partindo um pedaço de pão. Este pedaço de pão se transformou em milhares, bilhões de minúsculos pedaços, que foram devorados pelos peixes. Cada vez que um peixe comia um daqueles pedaços de pão, se multiplicava em vários outros. Era tanto peixe que a imagem ficou negra, totalmente escura. Num instante, a luz se fez novamente. Surgiu uma catacumba e nela estava a figura de Cristo, de vários santos, pavões e palmeiras. Quando o padre mirou uma das palmeiras, viu-se numa mata fechada e uma linda pomba se fez no ar. Ela deu voos rasantes até descer ao solo, pousando ao lado de um cordeiro que tinha sido sacrificado. O sangue que escorria do animal formou no chão o rosto de Jesus Cristo. Este rosto foi crescendo até dominar toda a imagem. De súbito, parecendo ao padre uma grande explosão, a imagem de Cristo se desfez em inúmeros fragmentos. Estes fragmentos, instantes depois, foram se ajuntando em dois grupos. De um lado, formou-se uma cruz. No outro lado, formou-se um crucifixo. Logo o padre percebeu que algo surgia no meio dos dois objetos. Inicialmente, não conseguiu identificar o que era. O algo foi crescendo até ficar nitidamente visível. Era um ser luminoso, lindo, parecendo um anjo, mas não tinha asas. De seu corpo emergiram dois braços musculosos. E dos braços, duas mãos com seis dedos cada uma. A mão esquerda segurou o crucifixo. A mão direita, a cruz. Percebendo com mais atenção, verificou que o ser estava mirando os seus olhos. Assustou-se com o olhar tão penetrante, mas não os desviou. De repente, o ser esmagou os dois objetos num estrondo ensurdecedor. Num instinto, levou as mãos aos ouvidos e fechou os olhos. Mas logo percebeu uma claridade azul. Hesitante, abriu os olhos pouco a pouco. Ocupando toda a imagem, surgiu Sued, com um sorriso cativante, envolto em neblina e com os braços estendidos. Elevando a voz aos céus, proferiu as palavras: − “Eu sou Sued, o Deus Todo Poderoso. Vinde a mim, terráqueo, e seja parte de uma nova era”. Um novo raio de luz azul lhe penetrou nas vistas. Sentiu fortes tremores e acordou com Januário lhe conduzindo pelo escritório.

– Padre, tudo bem?

– Sim, Januário, tudo bem.

– Sente-se pronto?

– Sim, irmão, louvado seja a nova era. Louvado seja Sued.

Domingo, oito horas da manhã de 9 de março de 1980. Com o céu nublado, era o momento da tradicional missa católica. A temperatura estava bastante agradável. Como sempre acontecia, a igreja estava abarrotada. Várias pessoas em pé se acotovelavam na porta principal e nas duas portas laterais. A família Mantiqueira ocupava parte do primeiro banco. Olhares misteriosos se dirigiam à mãe, filhos e criança. A maioria, ainda incrédula. Muitos, já sabedores da nova realidade. Entraram em cena os Ritos Iniciais. No Comentário Introdutório, do Ambão Dona Filomena pediu a participação de todos nas orações e informou que o tema principal seria “Uma nova era”. No Canto de Entrada, para surpresa dos presentes, não houve som de instrumentos e nenhum canto na entrada de Padre Alaor e seus ministros. Com breves palavras, disse que todos teriam a oportunidade para discernir entre o bem e o mal, e leu o Versículo 33 do Capítulo 12 de Mateus: “Ou fazei a árvore boa e o seu fruto bom, ou a árvore má e o seu fruto mau; porque pelo fruto se conhece a árvore”.

Todos ficaram de pé, e todos sabiam que Padre Alaor havia sofrido um ferimento na testa. E todos puderam presenciar que Padre Alaor não tinha nenhum ferimento na testa. O que teria havido? Será que não fora realmente um ferimento, mas simplesmente um arranhão? Alguns comentários surgiram entre aqueles que não sabiam a verdade, mas não suficientes para tumultuar a missa, que seguia célere os seus ritos. Na Saudação, Dona Filomena agradeceu a presença de cada um com muita alegria, ouvindo a resposta: “Bendito seja Deus que nos reuniu no amor de Cristo”. Padre Alaor, abrindo o Ato Penitencial, exortou aos presentes a pensar muito sobre a árvore que dá bom fruto e a árvore que dá mau fruto, olhando cada um para dentro de si mesmo e, principalmente, para os filhos. No Kyrie, Eleison, Padre Alaor se referiu outra vez aos frutos bons e maus da árvore. Chegado o momento da Glória, Padre Alaor convidou o povo a rezar, mas antes pediu silêncio, para que todos tomassem consciência de que estavam na presença de Deus e formulassem interiormente os seus pedidos. Logo em seguida, fez a Oração da Coleta.

Antes da Liturgia da Palavra, os fiéis incautos, agora sentados, vez ou outra cochichavam entre si sobre a postura de Mabélia e os filhos. Os quatro pareciam estátuas, olhos fixos em Padre Alaor e sem olharem uma única vez para os lados. Voltaram as atenções para o altar quando o filho do Doutor Mangabeira se apresentou para a 1ª Leitura. Leu um versículo que anuncia a salvação que se realizará plenamente em Jesus Cristo. Dona Filomena tomou a palavra e fez a leitura de alguns versículos dos Salmos. Voltou o filho do Doutor Mangabeira para a 2ª Leitura. Seguindo o rito, todos ficaram de pé para o Canto de Aclamação ao Evangelho. Enquanto isso, os fiéis incultos, vez ou outra, olhavam de soslaio para os Mantiqueira. Muitos repararam que nenhum deles abria a boca. Permaneciam em silêncio, estáticos, ora sentados, ora em pé, como neste rito. Os cochichos se espalharam e cada vez mais a família era observada. Após o canto, era o momento do Sinal da Cruz. Padre Alaor, acompanhado pelos fiéis, fez o sinal na testa, sobre a boca e sobre o peito, rezando em silêncio: “Pelo sinal da Santa Cruz, livre-nos Deus, nosso Senhor, dos nossos inimigos”. A maioria percebeu que os Mantiqueira não o fizeram. No Evangelho, Padre Alaor proferiu as seguintes palavras:

– Irmãos, acompanhem comigo em Marcos, Versículo 7, Capítulo 24 a 30. Naquele tempo, Jesus saiu e foi para a região de Tiro e Sidônia. Entrou numa casa e não queria que ninguém soubesse onde ele estava. Mas não conseguiu ficar escondido. Uma mulher, que tinha uma filha com um espírito impuro, ouviu falar de Jesus. Foi até ele e caiu a seus pés. A mulher era pagã, nascida na Fenícia da Síria. Ela suplicou a Jesus que expulsasse de sua filha o demônio. Jesus disse: − “Deixa primeiro que os filhos fiquem saciados, porque não está certo tirar o pão dos filhos e jogá-lo aos cachorrinhos”. A mulher respondeu: − “É verdade, Senhor; mas também os cachorrinhos, debaixo da mesa, comem as migalhas que as crianças deixam cair”. Então Jesus disse: − “Por causa do que acabas de dizer, podes voltar para casa. O demônio já saiu de tua filha”. Ela voltou para casa e encontrou sua filha deitada na cama, pois o demônio já havia saído dela. Palavra da salvação.

– Glória a vós, Senhor – responderam os fiéis.

– Fiéis de Vila do Córrego Dobrado, vocês aqui presentes, que são tementes a Deus, prestai atenção. Por intermédio da mãe, Cristo salvou a filha, dando-lhe a oportunidade de uma nova vida, uma nova era. Que a nossa igreja seja aquela mãe. Aqueles que se encontram perdidos como aquela filha, que nos procurem, um a um, pois, através de nós, a mãe igreja, serão salvos por Cristo, um novo Cristo que lhes ofertará uma nova era. Palavra da Salvação.

– Glória a vós, Senhor.

Dona Filomena anunciou a Homilia. Padre Alaor exortou a necessidade de todos se preocuparem com os novos tempos, pois aquele que não assumisse novas atitudes com certeza não seria salvo pelo novo Cristo. Dito isso, os presentes que ainda não haviam entrado em contato com o colar se entreolharam, pois não estavam entendendo o que o Padre queria dizer com novo Cristo. Por enquanto, ficaram apenas na troca de olhares. Prosseguindo a missa, a Oração Universal, ou Profissão de Fé, com o padre citando diversas palavras da Sagrada Escritura, destacando sempre uma nova era, um novo Cristo e um Deus diferenciado. Os fiéis cada vez mais se olhavam, mas continuavam atentos. Padre Alaor introduziu a Oração dos Fiéis, com todos em pé, ora mirando a família Mantiqueira, que permanecia sem pronunciar uma única palavra, ora se admirando com as palavras do Padre e a ausência do ferimento em sua testa.

Antes de se iniciar a Oração Eucarística, quando todos estavam concentrados nos preparativos da mesa, Asued começou a se inquietar. Quando chegou, estava com um capuz de lã que quase lhe cobria todo o rosto. Mabélia descobriu-a em parte, o suficiente para aqueles que estavam em volta percebessem uma tênue luz azulada nos olhos da criança. De ouvido em ouvido, todos ficaram sabendo. A maioria assustou-se. Outros, vangloriaram-se. Mabélia se levantou e foi até a calçada. Todos os olhos a seguiram. Poucos minutos depois, retornou ao lugar onde estava sentada. Os que estavam a seu lado perceberam que não mais havia a tênue luz azulada nos olhos da criança. De ouvido em ouvido, todos ficaram sabendo. No Prefácio da Oração Eucarística, Padre Alaor percebeu que estava todo mundo sentado, quando deveriam estar de pé. E percebeu mais ainda que os olhares se dirigissem à criança. Foi obrigado a chamar-lhes a atenção. No Santo e na Epiclese, a assembleia manteve-se mais conectada com o sacerdote.

Momento do Rito da Comunhão. A criança Asued mantinha-se serena até que voltou a ficar inquieta. Enquanto a assembleia rezava o Pai Nosso, Mabélia tirou a manta da criança e a colocou de pé entre seus joelhos. Somente aqueles a seu lado perceberam. Quando findou a oração, a igreja ficou em silêncio por alguns segundos. No meio daquele silêncio, alguém disse Amém, o que não acontece no rito, pois a oração seguinte é continuação do Pai Nosso. Aparentemente, fora um descuido de algum fiel. Mas os que estavam ao lado de Mabélia ficaram de olhos esbugalhados. Uns de alegria, outros de estupefação. A palavra fora pronunciada por Asued. Durante alguns minutos, dois ou três, Padre Alaor não conseguiu conter o pasmo das pessoas. Com um sorriso irônico, conseguiu acalmar a assembleia. Com calma, disse:

– Irmãos, prestai atenção, esta criança de pouco mais de um ano de vida² pronunciou a palavra Amém. Seria possível em circunstâncias normais? Respondam-me: como uma criança assim pode estar de pé entre os joelhos da mãe e ainda por cima pronunciar a palavra Amém? Atentai para o que eu disse, atentai para a nova era, atentai para o novo Cristo. Esta criança representa a nova era. Espelhai-vos neste exemplo e não se assustem com novas demonstrações do poder do novo Deus.

Após estas palavras, Mabélia colocou Asued no corredor entre os bancos. Graciosamente, amparada nos móveis, ela caminhou até a porta principal, olhando, sorrindo e pronunciando Amém para todos. Fez o percurso de volta para o colo da mãe. Foi um assombro. Ninguém conseguia pronunciar uma palavra sequer, pois ninguém poderia crer que uma criança de pouco mais de um ano pudesse andar e muito menos pronunciar a palavra Amém. De repente, todos se puseram a falar e dirigiram inúmeras perguntas ao Padre, que se viu acuado. Foi um grande esforço acalmar aquela turba.

– Vamos para o Rito da Paz, vamos para o Rito da Paz – esbravejou o sacerdote.

A calma se instalou, mas ninguém tirava os olhos da criança. Na Comunhão, tanto os que permaneceram sentados quanto os que se levantaram, estavam olhando para a família Mantiqueira, esperando qual seria o procedimento. Eles não se levantaram, permanecendo estáticos e de olhos vidrados. Era chegado o momento dos Ritos Finais, quando a assembleia fica sentada. Na parte de Avisos, foram feitas algumas homenagens e um comunicado sobre um bingo que aconteceria no próximo sábado com o intuito de arrecadar fundos para a igreja. Com a assembleia de pé, Padre Alaor deu a Bênção a todos os participantes. Na Despedida, desejou a todos que retornassem às suas casas louvando e bendizendo ao novo Deus. A maioria se foi com a pulga atrás da orelha. A minoria, por enquanto ainda, se foi feliz com a nova era que se iniciava.

* 1: Do livro “O Cristianismo Esotérico”, de Annie Besant.

* 2: Asued nasceu no final de dezembro de 1979. Essa missa se deu em março de 1980. Portanto, a criança estava com três meses. Como o metabolismo dos Deuses era mais acelerado em todos os sentidos que o terráqueo, aos olhos do povo, Asued aparentava pouco mais de um ano.

* Texto: Eitel Teixeira Dannemann.

* Foto: Desenho e montagem de Eitel Teixeira Dannemann.

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