Num clima de roça e com um brejo às costas eu vim ao mundo. Era assim o ambiente nessa região onde me ergueram¹. Ouvi muitos dizerem que antes do brejo tinha uma lagoa que era abastecida por uma nascente que vinha lá do campo do Mamoré². Muito marmanjo que foi criado aqui nas imediações lembra-se das acirradas peladas de futebol que se jogava no tal brejo. A meninada adorava se lambuzar no barro preto e era rotina a bronca das mães. E assim como depois do tempo das águas vem o tempo do estio, eis que o brejo se foi, a poeira e o barro se foram, os bloquetes das ruas se foram para cederem lugar ao asfalto e, o pior, muitas de nós já se foram, quase todas assim como eu, com as janelas no prumo do passeio. Outros tempos, serenidade no povo, sei lá, a vida era mais tranquila, ó se era, não tinha essa carraiada que passa por aqui, essas motos do demônio, Cruz Credo que não tinha isso não, hoje é uma zoeira e as almas que me habitam só conseguem dormir bem com protetor de ouvidos. Isso tudo me desamina e meu desânimo aumenta quando percebo a nascença de edifícios. Vade retro predaiada, eu sei que vocês querem derrubar essa minha diferenciada arquitetura. E daí? O brejo não se foi? O futebol dos meninos não se foi? Muitas de mim não se foram? E daí? Dane-se tudo, também vou, sei lá quando, mas que vou mesmo é inexoravelmente certo. E quando eu for, deixarei saudade!

* 1: O imóvel localiza-se à Rua Major Gote entre suas colegas Maestro Randolfo e Doutor José Olímpio Borges.

* 2: A região do antigo campo do Mamoré e adjacências era um largo brejo que foi sendo aterrado de acordo com a conveniência do inexorável progresso. De lá corria um riacho que seguia pela Rua Maestro Randolfo (chamavam-no de Córrego do Mamoré), atravessava a Avenida Paracatu e descia pela sua colega Padre Almir Neves de Madeiros (hoje chamado de Córrego da Cadeia). Leia “Canalização do Córrego do Mamoré”.

* Texto e foto (08/12/2019): Eitel Teixeira Dannemann.