MEMORIAL?

Postado por e arquivado em ARTIGOS.

MEMORIALTEXTO: ANTONIO LIBÂNIO DA ROCHA (1982)

Tô chateado. Mataram mais um. Não vejo o dia em que o próximo será o Palacete do saudoso doutor Itagiba ou até mesmo o da dona Jorgeta. Só aqui mesmo. Vou encher a cara, vou encher a cara.

Monólogo triste de um bêbado encostado no poste que fica na confluência das ruas Major Gote e Olegário Maciel. Parecia falar sozinho e para si. Às vezes falava, às vezes escutava e muitas destas vezes perguntava-se e respondia-se.

A seu lado, pertinho, uma “rodinha” de analistas políticos da cidade, tão comuns em vésperas de eleições. Um de seus componentes prestava atenção ao bêbado mais que aos colegas. Mexe-se e dando dois passos em direção ao bêbado, curioso, indaga:

– Mataram quem?

O bêbado conserta o corpo, cambaleia e sentindo-se prestigiado, arregala mais ainda os olhos e fala:

– Mataram o sobradão da Praça Nossa Senhora de Fátima lá “trá Banda da Lagoa”. O único que restava ali. Não ficaram contentes em matar o Arranha Céu lá da Várzea (Leia-se Bairro do Brasil). Tão matando tudo. O Palacete Mariana, muitas das casas dos Borges, tudo. É um crime.

Mais sério do que na base do entusiasmo o bêbado tira um cigarro do bolso, não do maço porque ele não tinha maço, coloca mais da metade na boca e risca um fósforo. Duas tragadas apenas e o cigarro se acaba. Notando que o outro ainda ouvia, prosseguiu:

– De vez em quando leio jornais e sei que aqui também temos os nossos Dourados e Bogoricins.

Para um pouco e pergunta-se:

– Até Quando?… Já não temos mais construções antigas, restos de nossa história e de nossa cultura. A cidade está se tornando um amontoado de colunas de concreto. A paisagem não é a mesma. Será que ainda não se medem mais a cultura de um povo através de sua arquitetura? Cadê a Departamento de Urbanismo e as leis de Tombamento? Cadê as Leis de proteção à cultura de nossa urbe? Porque ainda ninguém, ninguém mesmo se lembrou de tombar ou adquirir um destes góticos, barrocos ou portugueses prédios para neles instalar um museu?

E o bêbado agora mais entusiasmado do que sério prossegue:

– Será que não vai aparecer uma viúva rica a deixar em seu testamento ao menos um casarão velho para preservar nossa cultura e nossa tradição?

Soluços. Notando que o outro ainda ouvia falou mais:

– Já estão falando até em matar a Cadeia que é simbolicamente nosso marco inicial, pois através dela abrimos muitas escolas. Querem construir outra e será que para construir outra será necessário derrubar a velha Cadeia? Já não basta terem matado a velha Matriz de Santo Antônio e a Igreja do Rosário? Será que ali não caberia um Departamento qualquer da Prefeitura? De cultura, artezanato ou outro qualquer? Onde estão as leis e os homens? Os políticos e os artistas? Acabaram com o buracão e com a colina do córrego do Monjolo. Estão acabando com tudo. Será que não conhecemos o poder de restauração? Depois de tudo acabado, restaurar o que?

E o bêbado falava. E o “outro” ouvia atento a “falação” do bêbado até que um do grupo, notando que o “outro” estava prestando atenção ao bêbado, chamou:

– Chega “prá cá” amizade. O assunto aqui é “quente”. Fica prestando atenção a este bêbado não.

E o outro, deixando o bêbado e deixando o grupo ainda teve tempo de virar para trás e dedo em riste esbravejou:

– O bêbado não é ele. Sou eu. Somos nós. E saiu pisando alto, batendo os pés compassadamente na sua covardia coletiva.

“Correu de medo, trala, la, lá”…

* Fonte: Texto publicado com o subtítulo “Correu de medo, Trala, la, lá…” na edição de 21 de agosto de 1982 do jornal Correio de Patos, do arquivo do Laboratório de Ensino, Pesquisa e Extensão de História (LEPEH) do UNIPAM.

* Foto: Nogueirense.com.br, meramente ilustrativa.

* Edição: Eitel Teixeira Dannemann.

Compartilhe