TEXTO: NEWTON FERREIRA DA SILVA MACIEL
Quando professor no UNIPAM quer seja no curso de Direito (FADIPA), de Ciências Contábeis ou de Administração (FACIA), insistentemente alertava meus alunos sobre a necessidade de provar, sem contestação, aquilo que se afirma sobre algum assunto importante ou sobre pessoas. Citava as legislações vigentes e os princípios básicos do direito e as respectivas exigências sobre as provas, sempre enfatizando a importância na apresentação cabal daquilo que se alega. Nada de se enganar com as chamadas evidências. Para ilustrar tais afirmativas mencionava o fato singular que aconteceu em minha casa, no início da década de 1960, evidenciando as acusações que são feitas ao léu. Eis os fatos:
A minha esposa, Odete, possuía uma perfumaria em Patos de Minas, local em que trabalhava auxiliada por uma comerciária de muita confiança. Como, entretanto, os cuidados com as nossas filhas de tenra idade exigiam sua atenção integral, foi necessária a contratação de mais uma balconista para suprir as lacunas. Tal fato implicava em mais gastos, mas era a única opção. Surgiu, procurando emprego, uma mocinha em torno de uns 19 anos. Depois de uma ligeira pesquisa ela foi admitida, começando a trabalhar, aliás, com competência. Em um sábado chuvoso, poucas clientes frequentaram a perfumaria. A funcionária da loja, que começou a trabalhar desde o início, entregou à Odete, a féria do dia: reduzida quantia em dinheiro e dois cheques de pequeno valor, tudo cuidadosamente enrolado em um papel com propaganda da própria loja. Minha mulher recebeu o referido conteúdo e, sem conferir, escondeu-o em um guarda-roupa, com disfarces diversos.
Segunda feira, pela manhã, aberta a loja, houve a procura do embrulho narrado. Não foi encontrado. O que teria acontecido? As suspeitas, evidentemente, foram levantadas. Seria a empregada doméstica? A funcionária novata? Como teria alguém descoberto o esconderijo se ninguém viu a proprietária esconder o embrulho? Era realmente um mistério, pois não entrara ninguém em casa, notadamente devido à chuva persistente. Algumas amigas deduziram, maliciosamente, que seria a empregada recentemente contratada. Elas sempre são acusadas, pois, como dizia meu avô “a corda sempre arrebenta do lado mais fraco”. Houve, inclusive, alguns palpites para que déssemos queixa na polícia. Não quisemos fazê-lo justamente porque não havia prova contra nenhuma pessoa. As emitentes dos cheques, clientes conhecidas, foram avisadas para que sustassem os mesmos.
Estava eu lecionando, à noite, no Colégio Estadual, quinta feira, quando a funcionária da secretaria disse-me que havia um telefonema para mim. Fiquei muito preocupado, pois jamais alguém havia me telefonado no Colégio, justamente quando estava lecionando. Era uma prima, dizendo-me que a polícia lhe ligara, perguntando-lhe se sabia de quem era a loja, cujo papel de propaganda fornecera indícios para investigações, uma vez que foi apreendido pela polícia um jovem, em uma churrascaria portando uma pasta de couro contendo uma toalha de mão, o volume desaparecido em minha casa e mais dez cruzeiros. Em rápidas pinceladas contei o acontecido para ela.
O ladrão estava detido por um soldado na churrascaria situada na Praça Desembargador Frederico, no centro da cidade. Para lá me encaminhei em seguida. Vi o detido, os produtos do furto e quase não acreditei. O larápio, baixinho, magro, maltrapilho, totalmente mudo, despertava compaixão, não obstante seus olhinhos muito vivos… O soldado conduziu o detido para a cadeia, dizendo-me que fosse procurar o delegado no dia seguinte, às 09 horas. No dia e hora determinados procurei o delegado e narrei-lhe o acontecido. Ele chamou minha atenção por não ter lhe comunicado a ocorrência. Fomos para minha casa, o casarão da Av. Getúlio Vargas¹, em meu fusca, eu e o delegado e, concomitantemente, um sargento da PM e o prisioneiro no conhecido “jipão” da polícia civil.
Quando chegamos, o deficiente expeliu os sons típicos daqueles que são privados da fala, na realidade, até com entusiasmo e indicou a casa. O sargento, homem experiente, pediu-nos que deixasse o prisioneiro tomar à dianteira, o que aconteceu. Ele subiu as escadas, entusiasticamente, dando gritos incompreensíveis, entrou pela porta principal, atravessou uma porta vai-vem, e atingiu o nosso quarto, foi até o guarda-roupa e mostrou exatamente o local onde estava o tão propalado e diminuto pacote. O que houve, na realidade, foi uma confissão, um mea culpa e, além de tudo, com grande euforia. O delegado, bem como o sargento, disseram-me que se lhes fossem contados os fatos que viram, jamais acreditariam, tal a complexidade de minha residência de antanho e seus numerosos cômodos. Um soldado, posteriormente, disse-me que o gatuno era seu conterrâneo, e que ele furtava muito na sua terra natal, pequena cidade do Oeste mineiro. Dias depois, quando estava sendo atendido no caixa do Banco do Brasil, vi o fulano com seus olhares bem atentos, apreciando o funcionário contar as numerosas notas do então valorizado cruzeiro, a moeda vigente. Dá para acreditar? Fiz questão de contar a um dos caixas do banco, meu amigo, o acontecido, para que todos se precavessem.
Diversas vezes, quando conseguia concentrar meus pensamentos na calada da noite agradecia a Deus ter-me concedido a calma, lógica e compreensão suficientes, impedindo-me uma acusação precipitada e injusta contra uma simples lojista, de origem pobre, pois poderia causar-lhe, indevidamente, muitos embaraços. Fiquei feliz em saber, anos depois, que a moça havia se transformado em uma excelente enfermeira em Belo Horizonte. Benza-a Deus.
* 1: Palacete de Amadeus Dias Maciel.
* Foto: Mercadoconsumidorsa.com.