Não pertenço à categoria dos que devem escrever uma auto-biografia. Acontece, porém, que o destino me levou a assistir, por força de funções de confiança exercidas ao longo de minha vida, a importantes acontecimentos políticos, que agora revelo.
A Ética estabelece que, passados mais de dez anos, é permitida a divulgação de episódios históricos conhecidos em caráter sigiloso. Assim, convenci-me de que, já ultrapassado aquele prazo, tenho o direito, e mesmo o dever, de esclarecer fatos e situações a que estive presente e de que participei. Lamento não ter tido o cuidado de anotar datas. Estou, no entanto, seguro de que minha memória cuidará da seqüência dos acontecimentos que pretendo relatar, no momento em que aceitei o convite da revista A Debulha, para colaborar na divulgação da vida do preclaro Presidente Olegário Dias Maciel, justamente quando se presta, em Patos, homenagem ao eminente estadista, por ocasião do quinqüagésimo aniversário do seu falecimento. A Debulha se lembrou do meu nome para a presente tarefa, pelo fato de ter, na minha mocidade, dado ao Presidente Olegário Maciel o melhor da minha colaboração, a princípio em Patos, durante seis meses, e, posteriormente, no Palácio da Liberdade, três anos.
Era 1929, Minas Gerais vivia dias intranqüilos, face às divergências quanto à escolha de candidato à sucessão do Presidente Antônio Carlos Ribeiro de Andrada. O eminente estadista, descendente da nobre estirpe dos Andradas, deu ao problema sucessório uma solução feliz e impessoal. Indicou o Presidente do Senado Estadual para presidente, e o presidente da Câmara Estadual, para vice-presidente. Os nomes de Olegário Maciel e Pedro Marques, pelo alto mérito e conceito público, tranqüilizaram todos os segmentos do povo mineiro. Minas retomava seus momentos de tranqüilidade e grandeza, participando da liderança da política nacional. Mas veio o inesperado. O Presidente da República, Washington Luiz, indicou, para seu sucessor, Júlio Prestes, quebrando a política conhecida como “café com leite”, na alternância de Minas e São Paulo. Foi quando se formou a Aliança Liberal, com a junção das lideranças políticas de Minas, Rio Grande do Sul e Paraíba. A Aliança Liberal foi um movimento renovador de idéias e princípios. Visava a implantação da prática democrática e da verdade eleitoral. Este movimento alcançou todos os segmentos da sociedade, da imprensa e ganhava a simpatia dos quartéis. E, assim, foi lançada a candidatura de Getúlio Vargas e João Pessôa para Presidente e vice-Presidente da República. Olegário Maciel, ainda candidato, deu seu integral apoio ao movimento renovador de ideais específicos democráticos.
A narração desses acontecimentos, mesmo que sintética, é importante para se avaliar a atuação e a posição de Olegário Maciel nos episódios políticos que mudaram os rumos do Brasil, na busca do aperfeiçoamento democrático e da verdade eleitoral.
Dezembro – 1929. Eu cursava o segundo ano de Medicina na Universidade de Minas Gerais, em Belo Horizonte. Pobre, órfão de pai e mãe, vivia na casa de minha irmã Clélia. Ela e meu cunhado Cabral me dispensavam um asilo carinhoso e amigo. Dando aulas particulares de português, história geral e geometria, obtinha algum recurso. Tendo alcançado a primeira classificação no exame vestibular, ganhei o prêmio de gratuidade, o que possibilitou a minha matrícula no curso médico.
Era esse o perfil da minha modesta condição de vida. Foi quando li no jornal do dia a indicação do Dr. Olegário Maciel como candidato a Presidência do Estado, lançada por Antônio Carlos. Ocorreu-me, de pronto, um caminho. Procurei o Coronel Ozório Maciel, para pedir-lhe um emprego. Ozório tinha sido amigo de meu pai. Aproximaram-se quando de suas viagens, a negócio, à minha cidade natal, Formiga. Ele me conheceu, ainda menino, cuidando da contabilidade da casa comercial de meu pai e redigindo, para os roceiros, requerimentos dirigidos às autoridades locais. Talvez tivesse visto em mim uma possível diligência. Ao pedir-lhe um emprego, na sua residência, em Belo Horizonte, lembrou-se, logo, de mim. Respondeu-me que eu havia chegado no momento próprio. Contou-me que tinha recebido uma carta de seu irmão, pedindo que procurasse, em Belo Horizonte, uma pessoa para cuidar de sua correspondência. Como candidato, recebia, diariamente, muitas cartas e, em Patos, não tinha conseguido ninguém para aquela tarefa. Recomendava que o escolhido fosse um rapaz solteiro, de absoluta confiança, de procedimento impecável, que soubesse redigir corretamente, enfim, que reunisse as qualidades para o bom desempenho do trabalho. Na opinião de Ozório eu era a pessoa desejada. Mostrou-me a carta recebida e perguntou se eu me dispunha a seguir para patos imediatamente. Respondi-lhe afirmativamente. Pediu-me que o encontrasse, no dia seguinte, no Gabinete do Dr. Álvaro Batista de Oliveira, Chefe de Polícia de Minas. No mesmo dia fui nomeado praticante do Serviço de Investigações do Estado, posto à disposição do Presidente Olegário Maciel; recebi um passe ferroviário até Catiara e uma ajuda de custo, no valor de cem mil réis. O Coronel Ozório, o inesquecível amigo e protetor, me entregou uma carta de apresentação ao Presidente Olegário, na qual fazia referências lisonjeiras a meu respeito.
Cheguei a Patos no dia 31 de dezembro de 1929. Hospedei-me no “Rodovia Hotel”, de propriedade do Sr. Juquinha e D. Maria. Era uma casa sóbria e bem cuidada. Seus donos conquistavam, à primeira vista, a confiança e simpatia dos hóspedes. No dia seguinte, 1.º de janeiro de 1930, de manhã, fui à casa do Presidente Olegário. Recebido carinhosamente por sua irmã, D. Exaltina¹, divisei naquela respeitável senhora, na sua cadeira de rodas, uma personalidade forte, doce, sofrida, resignada – o esplendor da criatura humana. Disse-lhe o motivo da minha vinda e lhe pedi que entregasse a seu irmão a carta de que era portador. Retirou-se e pediu-me que esperasse. Foi quando, só, examinei a biblioteca do futuro Presidente de Minas. Ali encontrei obras de matemática, clássicos brasileiros, portugueses, franceses e ingleses. Machado, Castro Alves, Casimiro, Ilíada, Dicionários, Filosofia etc. Todos os setores da ciência e da literatura ali se achavam em edições preciosas. Capacitei-me de que iria encontrar um homem sem por, somente conhecido por mim pelo seu renome.
O Presidente Olegário veio a meu encontro e me cumprimentou cerimoniosamente. Conversamos sobre assuntos diversos. Examinou-me cuidadosamente e me disse: acho que o senhor não serve para o trabalho de que preciso. A sentença me chocou. Perguntei-lhe o motivo da sua dúvida. Ele me respondeu: o senhor é muito jovem para o exercício das funções que lhe serão confiados. Respondi-lhe que tinha vindo para Patos animado de confiança e disposição de servi-lo a contento. Tomei a liberdade propor-lhe que eu trabalhasse apenas um dia, a fim de que ele tivesse condições concretas para avaliar a minha capacidade. Ele aceitou a minha proposição e me pediu que voltasse à sua casa, no dia seguinte, às 9 horas. Despedimo-nos.
À hora combinada, cheguei à sua residência. Ele me entregou centenas de cartas já abertas. Elas continham comprimentos e solidariedade pelo lançamento da sua candidatura à presidência do Estado, pedidos de empregos, sugestões administrativas e assuntos diversos. Pedi-lhe orientação para as respostas. Recomendou-me redação sintética, cuidado com os adjetivos, evitasse promessas que não poderiam ser cumpridas, obediência às leis e Regulamentos, na solução dos casos propostos. Não dispunha de máquina de escrever. Eu tinha uma caligrafia razoável e legível. Estavam à minha disposição papel de carta, envelopes, tinteiro e selos de correio. Comecei o meu trabalho, obedecendo cuidadosamente às instruções recebidas. Não fazia rascunhos. Redigia diretamente. De volta do meu almoço no hotel, retomei meu trabalho. Às cinco horas, aproximadamente, o Presidente Olegário voltou ao seu escritório. Entreguei-lhe algumas dezenas de cartas respondidas. Leu cuidadosamente todas, assinou, e separou uma. Disse-me que se tratava de correspondência de um amigo íntimo, Senador Olímpio Mourão, de Diamantina. Pediu-me que redigisse uma carta afetuosa, envolvendo algumas questões gerais, para fixar sua afeição àquele amigo. Observou-me que eu havia usado uma redação no condicional, o que estava certo, pois ele era tão somente candidato. Naquele dia, de regresso ao hotel, senti que havia começado a ganhar a credibilidade de um homem ímpar, que foi, sem dúvida, na vida, o meu maior protetor e um amigo valioso.
Guardo, até hoje, a consideração que me dispensavam os parentes do Presidente Olegário. D. Exaltina, sua irmã, Coronel Ozório e Coronel Farnese, seus irmãos; Dr. Adélio Maciel médico e deputado federal; Dr. Antônio Maciel, advogado; Leopoldo Maciel, senhoritas Zenóbia e Dóris, suas sobrinhas. Foram amigos que aliviaram o propositado isolamento que me impuz durante minha permanência em Patos. Curiosos procuravam ouvir de mim o que acontecia no meu trabalho. Eu apenas respondia tudo vai bem, nada mais. Fiximei-me na posição de lealdade, discrição e silêncio. Eu era conhecido como um moço de “boca calada”. Antevia que muita coisa de grave iria acontecer. Depositário de assuntos de confiança, não seria eu, jamais, o divulgador de notícias e acontecimentos de relevo. Esse procedimento discreto muito valeu na formação da minha personalidade.
A correspondência diminuía. Passei a fazer a colheita de dados para a elaboração da plataforma de governo. Tratava-se de pesquisa de assuntos relacionados com finanças, agricultura, educação, saúde, sistema rodoviário, polícia militar e civil, receita e despesa, orçamento, balanço governamental, segurança etc. Era março de 1930. Tudo estava em dia. Meu trabalho havia terminado. Informei ao Presidente Olegário que necessitava regressar a Belo Horizonte, a fim de prosseguir meus estudos universitários. Ele consentiu no meu afastamento e me disse que continuava a sua disposição para tratar, na Capital, junto às repartições estaduais, de assuntos de que necessitasse. Cumpri todas as suas determinações.
A situação politica nacional apresentava proporções intranqüilas. Washington Luiz impunha pressões desmedidas em favor do seu candidato. A máquina administrativa federal agia de modo inadmissível em favor de Júlio Prestes. Em contraposição, a Aliança Liberal, movimento pacífico de pregação democrática, ganhava, cada vez mais, o apoio esmagador da opinião pública, da imprensa que não se vendia, e sensibilizava segmentos preciosos das forças armadas da Nação.
Um acontecimento inopinado convulsionou, ainda mais, o cenário político: o assassinato de João Pessôa, Presidente do Estado da Paraíba e candidato a Vice Presidente da República, pela Aliança Liberal. O episódio exacerbou o ânimo de todas as camadas. Até hoje não se conhece o autor ou o mandante do crime.
Antevia-se que a campanha política se enveredara para a violência. Regressei a Patos em junho de 1930, a pedido do Presidente Olegário. Retomei o meu trabalho. Respondi a correspondência restante. Tudo era rotina. Tudo parecia tranqüilo. Olegário, Getúlio e Antônio Carlos se comunicavam, com frequência, pelo rádio, através de radiogramas cifrados.
Um dia, Antônio Carlos mandou ao Presidente Olegário um circunstancioso radiograma cifrado, relatando os acontecimentos de Montes Claros. O chefe aliancista daquela cidade do nordeste mineiro se chamava Dr. João Alves, médico. Era um cidadão sereno e prestigiado em toda a região. Sua esposa, D. Tiburtina, era uma grande figura e ciosa de suas convicções cívicas. A Concentração Conservadora, chefiada por Carvalho de Brito, promoveu a realização de um comício em Montes Claros, pregando a candidatura Júlio Prestes. Melo Viana, Vice-Presidente da República, era a figura mais eminente do movimento anti-aliancista. Findo o comício, à noite, seus participantes se dirigiram frente à casa do Dr. João Alves, em meio a insultos, impropérios e ameaça de invasão da residência do Dr. João Alves. D. Tiburtina, de arma em punho, auxiliada por amigos que visitavam o casal, aceitou o insólito desafio. Travou-se um tiroteio de lado. Morreu o Dr. Fleury e Melo Viana foi ligeiramente ferido. A multidão se dispersou. Washington Luiz, desprezando a jurisdição mineira para a investigação dos acontecimentos, determinou a ida de tropa federal para Belo Horizonte, designou um juiz federal e um procurador federal para a apuração dos fatos. Antônio Carlos, em seu radiograma cifrado, dizia que, pela primeira vez na história republicana, Minas era vítima de uma intervenção federal, fato que feria fundamente o brio dos mineiros e a autonomia do Estado.
O Presidente Olegário, lendo o despacho do Presidente Antônio Carlos, verificou que somente pelas armas a Aliança Liberal poderia alcançar a vitória dos seus princípios. Sabia que seria uma luta desigual e temerária, mas obrigatória, pois Minas não poderia suportar o aviltamento da sua autonomia política. Olegário, desde aquele instante, aderiu à revolução. D. Tiburtina ocupou as manchetes de jornais, como a mulher que soube defender valentemente a privacidade de seu lar honrado. Incorporou-se, de modo definitivo, à história política de 1930.
* Fonte: Texto de Olyntho Fonseca Filho (Assessor de Gabinete do Presidente Olegário Dias Maciel) publicado na revista A Debulha com o título “Patos”, sendo a 1.ª parte na edição n.º 68 de 30 de março de 1983 e a 2.ª parte na edição n.º 69 de 15 de maio de 1983, do arquivo do Laboratório de Ensino, Pesquisa e Extensão de História (LEPEH) do Unipam.
* 1: Newton Ferreira da Silva Maciel nos informa que o nome da irmã de Olegário Maciel não é “Exaltina”, e sim “Albertina”.
* Fotos: Eitel Teixeira Dannemann (23/07/2013).