JOSÉ JEREMIAS DE FREITAS (ZÉ CEGO)

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CEGUEIRATodo mundo conhece em Patos de Minas, a pessoa boníssima de José Jeremias de Freitas, Zé Cego. Há precisamente 17 anos que foi acometido por uma pertinaz e fatal cegueira que o faz viver irremediavelmente, da caridade pública. Puxado diligentemente pelo seu mano João, percorre pacientemente as ruas da cidade, pedindo uma esmola para o sustento da família. Sabe com muita argúcia de observação, identificar todos os seus benfeitores e amigos, a quem dispensa sempre, um sorriso acolhedor e um gesto de amizade.

Até aos 40 anos, enxergou normalmente e pode trabalhar e ganhar o pão de cada dia. Traz dessa época, todavia, uma recordação amarga, falando com tristeza das plantações que executou, onde a resposta da terra foi sempre generosa, tornando suas túias repletas de fartura. Hoje, vive tão somente da caridade pública.

Quem o escuta, com paciência, nota a profunda mágua que lhe invade a alma, quando se volta para o tempo passado, quando ainda via toda a beleza das coisas que o cercavam. Tem pois, toda razão de mostrar-se tomado de uma saudade torturante. A escuridão deve ser mesmo triste! Não só pelo fato de não mais enxergar nada de tudo o que lhe sorriu na manhã da vida, de modo grandioso e belo, mas com maior razão, pela amarga decepção de nunca mais poder enxergar! Com toda certeza, pesa-lhe na alma a indefinível vontade de rever tudo aquilo que lhe foi tão caro, como as paisagens com que se identificou. Uma santa tentação martiriza-lhe, crucialmente o coração e a mente naquela angústia de rever rostos amigos, de trilhar os caminhos de sua roça, de misturar-se com as paisagens acariciantes, coisas que não mais poderá fazer!

E a recordação do colorido dos campos, das nuances da terra lavrada, do reencontro com tudo e com todos, com as formas e com as cores? Tudo isso a fatalidade do destino tirou-lhe, impiedosamente. As contemplações mais íntimas e mais puras, de tudo o que areja a mente e colore a alma, foram trocadas inexoravelmente, pelo véu da escuridão. Sua capacidade de trabalho, ditada pelo seu vigor físico de então, seu laborar paciente e atual, sua agilidade generosa no manejar a enxada e o arado, foram substituídos por uma bengala atroz, que um paciente cirineu, lhe estende amávelmente.

Mas apesar de tudo, o Zé Cego é uma criatura que sabe aceitar os revezes do destino. Embora padecendo um mal irreparável, não se queixa ásperamente, não profere blasfêmias, não manifesta qualquer sentido de frustração. Pelo contrário, mostra-se até mesmo muito alegre, comunicativo, acolhedor e amigo de todos. Faz de seu sofrimento uma espécie de apostolado para tantos outros, que também têm problemas, sem todavia saberem enfrentá-los com a cabeça erguida. Ele é mesmo um homem sereno, um homem de Deus. Ainda que mendigando o pão de cada dia, tropeçando nos acidentes que a caminhada lhe impõe, sabe sempre ser generoso, dispensar um sorriso de acolhimento, amar a vida.

Sabemos que ele teria razões bastantes para se considerar um arrasado ou até mesmo, um eterno revoltado. Mas não. Coloca pacientemente em sua vida de cego, o censo do equilíbrio e da aceitação. Ele bem sabe o preço dos olhos que Deus lhe arrebatou. Que Deus lhe arrebatou, sim, pois somente Ele é capaz de fazer ou de conservar os olhos humanos. Os homens sabem fazer grandes coisas. Mas os olhos que enxergam, os olhos que têm vida, olhos detentores da sensibilidade, não têm poderes para fabricá-los. Somente Deus é que modela, admirávelmente, os nossos sentidos. A perda da visão leva a pobre pessoa humana a envolver-se num drama angustiante.

Para nós outros, que ainda temos nossos olhos normais, torna-se muito difícil avaliar a perda que sofreu o nosso bom amigo, José Jeremias de Freitas. Somente ele, lançado há 17 anos na escuridão da cegueira, é que pode avaliar o preço, dos olhos que perdeu. Contudo, a vida é mesmo assim. Está sujeita a toda sorte de acidentes. Importa, todavia, que saibamos aceitá-los, com muita resignação.

* Fonte: Texto de Nego Moreira publicado com o título “Zé Cego”na edição de 28 de fevereiro de 1980 do Jornal dos Municípios, do arquivo do Laboratório de Ensino, Pesquisa e Extensão de História (LEPEH) do Unipam.

* Foto: Oftalmed.com, meramente ilustrativa.

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