– Num pricisa si levantá, dotô, eu trúce aqui um cafizím e uns pão de quêjo procê.
– Muito obrigado.
– Num fiqui chatiadu, êli é anssim mesmu, êli acha qui sabi tudu.
– Não se preocupe, dona Magda, não fiquei chateado, eu estava apenas imaginando como conseguir convencê-lo a vacinar o gado.
– Pódi dexá qui vô falá cum êli, tá bão?
– Dona Magda, se a senhora fizer isso vou ficar muito agradecido, pois não posso voltar para a Capital sem a concordância de todos os criadores daqui.
– Dêxa cumigu, vô ti judá.
Dona Magda orientou o doutor a procurar um dentista prático, seu primo, o único do Distrito, e por isso respeitadíssimo justamente por ser o único que resolve os problemas dentários da comunidade, e que tem muita influência sobre o Seu Hildário e todos os habitantes. Explicado o endereço, o Médico Veterinário lembrou do Seu Hildário dizendo que o carrapato vem do mijo da égua. Isso propiciou a ele umas boas gargalhadas que muito lhe ajudaram a acalmar o espírito, mas que estranharam a Dona Magda. Em chegando ao dentista prático, explicou o motivo da visita.
– Pois é doutor, quer dizer então que o Hildário ficou bravo contigo?
– Estava tudo bem, até que expliquei a ele o ciclo do carrapato. Pra quê, o homem ficou uma fera comigo!
– Uai, por quê?
– Só porque eu disse que a fêmea do carrapato bovino desova mais ou menos 3000 ovos.
– Uai, e carrapato por um acaso bota ovo que nem galinha? Pelo que eu sei, pois foi o Hildário que me contou, o carrapato vem é mesmo do mijo da égua. Pode conferir, aonde a égua mija nasce um monte de carrapatinhos.
– O senhor também?
– Também o que? Vai me dizer que você, que é Médico Veterinário, não sabe disso?
– Tá bom, deixa pra lá. Eu vim aqui para lhe pedir um grande favor.
– Diga, se estiver ao meu alcance pode contar comigo.
– Como lhe expliquei, preciso ter a concordância do Seu Hildário e de todos os que ele influencia ao contrário para encerrar o meu trabalho nesse Distrito. Pretendo fazer uma palestrinha final no Grupo Escolar sobre a importância da vacinação contra a Febre Aftosa. O caminhão do leite poderia ser o responsável para entregar o convite a cada produtor. O senhor, que é conhecido por todos aqui, pode me ajudar a divulgar e influenciar os criadores. Posso contar contigo?
– Mas claro que pode, doutor, se é só para divulgar, não vejo problema algum. O negócio é convencer esses criadores, um bando de cabeças duras.
– A vacinação do gado é fundamental para a saúde do rebanho de todo o país e também para a população, pois as pessoas podem contrair essa doença. A vacinação do rebanho desse Distrito e de todo o Município vai ser muito importante para aumentar a produtividade rural. E aumentando a produtividade rural, mais leite e mais carne vão ser produzidos. E se mais carne e leite vão ser produzidos, isto significa maior fonte de renda para o Município. Essa doença diminui em muito a produtividade do gado. O gado sem essa doença produz mais. Produzindo mais, os fazendeiros ganham mais. E os fazendeiros ganhando mais, têm uma qualidade de vida melhor. Entendeu?
– Entendi, doutor. O que você quer que eu faça?
– Nada muito difícil. Se o prezado for comigo ao Seu Hildário é muito provável que com a sua influência ele aceite a realidade dos fatos e ainda convença os demais resistentes.
– Te acompanhar ao Seu Hildário não tem problema algum, doutor, só não lhe garanto se, como você enfatizou, essa minha influência possa mudar o juízo daquele cabeça dura. Ô homem difícil, sô. Ele tem isso de tudo resolver com simpatias e rezas e um mundaréu de gente aqui acredita piamente nele. E quando não funciona, que é o geral, a desculpa dele é que não teve jeito porque foi avisado tarde demais. Para você ter uma ideia, quando tive que arrancar um dente dele, ele só deixou eu fazer o serviço depois que ele fez uma reza com arruda. E como deu tudo certo, para ele deu tudo certo não por causa do meu procedimento correto, mas unicamente por causa da benzeção dele nele mesmo. O homem é muito complicado, e se ele já deu opinião a respeito da vacina, vai ser muito difícil convencer ele.
– Tudo bem que ele se colocou contra, mas o senhor vai comigo?
– É, se o doutor faz tanta questão assim, e ainda sendo um pedido da minha prima Magda, tudo bem, eu te acompanho. Fica combinado para amanhã de manhã. Vou na frente para, digamos assim, tentar preparar os ânimos do cabeça dura. Te espero lá por volta das sete horas.
Satisfeito por ter conseguido convencer o dentista prático a acompanhá-lo até a fazenda do Seu Hildário, o Médico Veterinário foi para o seu dormitório na Igreja. Com o semblante tranquilo, depois de enfrentar a casinha do defecatório no terreiro e a água fria do banho, demonstrando uma sensação de conseguir completar a tarefa, fechou o relatório do dia. Relatório pronto, por volta das oito da noite, vestiu uma roupa adequada e rumou até um boteco para tomar uma cerveja. Enquanto sorvia a bebida, reparava no vai-e-vem das pessoas. Eram pessoas simples, típicas do meio rural e profundamente simpáticas, característica do povo de Major Porto, desde os tempos da Capelinha do Chumbo. Num certo momento, alguém se apresentou:
– Boa noite, dotô, sô o Catito.
– Boa noite, senhor Catito, tudo bem?
– Bão, dotô. Posso chegá mais?
– Com todo prazer.
– Dotô, sô vizím da fazenda do Seu Hildário, é aquela qui fica antes da dele.
– Sim, fui lá para convencê-lo a vacinar o rebanho contra a Febre Aftosa.
– Ele mi falô, sô, e ficô uma fera com aquela história di carrapatu botá ovo qui nem galinha.
– Mas senhor Catito, é a mais pura realidade.
– Pódi inté sê, mas ele num cridita não. Vô ti dá uma dica. Seu Hildário detesta quando arguém chega pra êli pra querê ensiná arguma coisa. Sabi como é, né, o hômi sabe das coisa mesmu. Ôcê qué mesmu ganhá a cunfiança dêli?
– Não só quero como preciso, senhor Catito. Já que ele é muito respeitado por aqui, se eu não me der bem com ele jamais conseguirei concretizar meu trabalho.
– Pódi tê certeza dissu.
– Mas, senhor Catito, o que devo fazer para ganhar a confiança do Seu Hildário?
– É muitu simplis. Ao invéis di querê insiná coisas prá êli, pédi pra êli ti ixplicá cômu funciona as coisas, mesmu ocê sabêno que é erradu. E tráti di concordá, garotu, si não, já era.
– É, parece que agi de maneira errada. Amanhã de manhã eu vou lá e o dentista vai me dar uma força.
– Si o dotô quisé, eu inté póssu aparecê pur lá anssim cômu num querêno nada, sabi cômu é, pra tentá ti judá.
– Se o senhor puder, ficarei muito grato.
– Tá bão intão, dotô, dêxa eu í qui ainda tenhu argumas coisas pra fazê na fazenda. Inté e basnoite.
– Boa noite, senhor Catito, e muito obrigado pela atenção.
– Nada não, dotô.
É, parece que a situação estava ficando muito favorável ao Médico Veterinário. Já eram dez horas da noite quando ele resolveu voltar ao quartinho da Igreja para uma noite de sono serena. O que mais passava pela sua cabeça era a vontade de o outro dia transparecer a ele uma pacificação com Seu Hildário. Ele não poderia voltar para a Capital sem o consentimento de todos os criadores. Era uma questão de honra e, principalmente, valorização profissional. Para isso, teve uma ideia formidável.
Rumando em direção à fazenda, no seu mais profundo íntimo se instalou uma pequena ansiedade. Rezou e pediu ajuda a Deus para que seu plano desse certo. O relógio marcava dez para as sete da manhã quando lá chegou. Ao descer do carro, percebeu Seu Hildário e o dentista sentados no banco do alpendre. Suspirou fundo e foi encarar a fera que ele esperava já estar amansada. E iniciou logo uma conversa seguindo as recomendações do senhor Catito:
– Bom dia, Seu Hildário, é um grande prazer revê-lo. Acredito que o senhor ficou aborrecido comigo por causa daquela história de carrapato botar ovo que nem galinha.
– Seu mininu, isso foi ônti, já passô, tô cum mais réiva não. Eu tô é cum pena docê, mininu, istudô numa facurdadi e num prendeu nada. E tô cum dó du seu pai também, qui devi di tê cunsumidu muito dinhêru pra ti vê formadu. E nu qui deu? Isso aí qui tá aqui na minha frênti.
– Seu Hildário, eu vim aqui para dizer que realmente não aprendi quase nada na faculdade. Meu pai até pensa que sou um bom Veterinário. Mas como o senhor percebeu ontem, eu não sei é nada mesmo. Como eu tenho que fazer um serviço nesta região, eu vim aqui para pedir ao senhor que me desse algumas orientações sobre como fazer o que tenho que fazer. Será um grande orgulho pra mim ter o senhor como uma espécie de professor. E também será um grande prazer dizer aos meus colegas da Capital quem foi o responsável por me ensinar coisas sobre os animais.
– Óia só quem tá chegâno. Bão, Catito?
– Bom dia, Seu Hildário, bom dia dotô dentista. Uai, tá cum visita nova?
– É, êssi ai é aquele dotozinho Veterinário lá da capitár qui ti falei ônti.
– Aconteceu arguma coisa importanti aqui pra ixplicá a prisença du dotô?
– Nadinha, Catito, êssi môçu vêi aqui cumas invencionicis maluca qui eu vô ti contá, sô.
– Uai, u qui u môçu aí tá querêno?
– Dêxa prá lá, Catito, chêga mais.
Aconchegados, seu Hildário demonstrou que havia gostado das palavras do doutor:
– Mas, seu mininu, qui é qui ocê tá querêno aprendê cum o véi aqui?
– Seu Hildário, eu já falei para o senhor a respeito da Febre Aftosa. Eu gostaria de saber, claro, se for possível, como se deve tratar um animal com essa doença.
– Ora, uso minhas erva e muita reza.
– Eu fico até me vendo tratando um animal assim. Será que algum dia conseguirei, Seu Hildário?
– Bão, até qui pódi, mais demora muitu, sô. Eu mesmu gastei muitos anus di minha vida pra pegá u jêitu.
– Insina pra êli, Seu Hildário.
– Vá lá, Catito, eu só insinu isso prus meus mininu, qui já tão cumeçâno a prendê. Nu dia quêu fô prús alêim, ês é qui vão cuntinuá.
– Seu Hildário, se o senhor acha que não é o momento para me ensinar, tudo bem, pode ficar tranquilo.
– Eu num tô imaginânu isso agora não, garôtu.
– Que é isso, Seu Hildário, dá uma chance pro doutor − apelou o dentista prático.
Sentindo que Seu Hildário estava começando a esmorecer, o Médico Veterinário insistiu na tática proposta pelo senhor Catito:
* Texto: Eitel Teixeira Dannemann.
* Foto: Br.depositphotos.com, meramente ilustrativa.