SEU HILDÁRIO E O MÉDICO VETERINÁRIO − 1/3

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Em 30 de dezembro de 1962, o arraial conhecido por Capelinha do Chumbo foi transformado em Distrito com o nome de Major Porto, através da lei estadual nº 2764. Foi nessa época que as vacinas contra a Febre Aftosa começaram a ser usadas no Brasil, sem ainda a obrigatoriedade. Seguindo uma série de ações contra a doença bovina, que começava a se espalhar ferozmente pelo país, a Secretaria de Agropecuária de Minas Gerais enviou técnicos aos Municípios com maiores incidências. Um dos prendados foi Patos de Minas. Assim, como trabalho inicial, um Médico Veterinário foi enviado a Major Porto para conscientizar os fazendeiros da importância da vacinação. O trabalho consistia em visitar todos os criadores de gado com o objetivo de que eles assinassem um termo de compromisso para a vacinação de seus gados, e pouco tempo depois a Secretaria faria o serviço da vacinação.

Muito bem recebido pelas autoridades patenses, foi encaminhado ao Distrito, e lá igualmente muito bem recebido e hospedado num simplório quarto gentilmente oferecido pela Igreja Matriz local. Após uma semana de trabalho com bons resultados, foi alertado por um padre:

– Vai com calma com o Seu Hildário, ele é ranheta, tem influência sobre muitos criadores por causa de seus trabalhos de benzedura com ervas que o povo acredita que você nem imagina. Por isso é pessoa querida por aqui e ainda colabora muito com as quermesses da igreja. Com jeitinho você, quem sabe, consegue convencê-lo.

Seu Hildário, 85 anos de muito vigor, guardava no seu mais profundo íntimo uma grande frustração: como ele e sua simpática esposa Magda, todos os seus 5 filhos eram deficientes no quesito estudo, isto é, mal completaram o primário. No caso dele, por necessidade, pois precisou trabalhar duro para construir seu patrimônio, não tendo tempo para os livros. Quanto aos filhos, tentou, mas não conseguiu convencer nenhum deles a estudar. A alegação deles era óbvia: se o pai tem posses sem estudo, nós também vamos ter posses sem estudo. De nada adiantava o pai explicar que os tempos eram outros e que os estudos passaram a ser muito importantes na vida das pessoas.

Tomado de muita vontade, o doutor foi até a fazenda do Seu Hildário, tendo boa acolhida. Para simpatizar o início de conversa, o dotô lascou:

– Bela fazenda, Seu Hildário.

– Qui nada, seu mininu, isso aqui é poquinha coisa.

– Ao chegar aqui notei que, além de gado, o senhor também planta milho.

– Ah! mais é pôca coisa, é só pru gastu, meu negóço é gado mesmu. Pur falá nisso, vâmo dá uma oiáda nos bichím?

– Com muito prazer.

– Ô Bertoldo, vê si arrêia lógo dois cavalo. Ô Magda, enquanto isso, prepara um café e assa uns pão de quêjo.

Enquanto trotavam pelas cercanias da propriedade, Seu Hildário ia contando sobre como formou os pastos, as aguadas, os cochos, as cercas e, para ele, o belo rebanho. Mas o Doutor não deixou de reparar que os animais estavam infestados de carrapatos e bernes. Por duas vezes, ele fez menção de apear para verificar mais de perto a que ponto os ectoparasitas estavam afetando a produtividade do rebanho, mas Seu Hildário insistia para não perturbar sua preciosa criação. E após uma hora e pouco de caminhada, voltaram à sede da fazenda.

– E aí, o qui o dotô achô?

– Parabéns, o senhor fez um belo trabalho.

– Dotô, aqui num tem duença não. Eu sei qui o mininu vêi inté mim pra mi convencê a aplicá as tár vacina di fitosa. Mais praquê? Desdi qui eu mi intendo pur genti, nunca vi animal meu i di ninguém pur aqui morrê dessa tár duença.

– Mas Seu Hildário, já visitei várias fazendas e em quase todas verifiquei animais com a doença, que causa muitos prejuízos aos produtores e o animal pode morrer.

– Picada di cobra, dotô. Ônti mesmu o meu vizín Catito perdeu sua égua prifirida pur causa da mardita da corá.

– Picada de cobra?

– É issu mesmu, dotô. E é difíci uma rêis morrê pur causa dêssi bichu se eu tô pur pertu.

– Neste caso, qual o seu procedimento?

– Como anssim?

– Como o senhor faz para salvar o animal.

– Ô seu mininu, são óssus du ofíci, tenhu lá meus jêitu, né. E a tár da faculdadi qui ti insinô sôbri os animár num ti ensinô meus jêitu não, sô.

– O que o senhor usa? É algum tipo de remédio?

– E dus bão, uai, pódi criditá. Mais num vem qui num tem. Só falu ao mininu qui usu algumas erva e muita reza. É tiro i queda. Pódi priguntá o pôvu si tem arguma reclamação.

– Nada disso, Seu Hildário, eu já fiquei sabendo que o senhor conhece mesmo do assunto.

– Ah! Isso é bão.

– Seu Hildário, na nossa cavalgada pela propriedade, verifiquei que seu rebanho está com um pouquinho de carrapato e berne.

– Coisa miúda, seu mininu, num trapáia muito não.

– O senhor costuma pulverizar o rebanho?

– Purverizá?

– O senhor usa algum veneno nos animais para matar os carrapatos e os bernes?

– Nadinha, só ói quemádo.

– O óleo queimado é para o berne, certo?

– Pra tudo, seu mininu, tenho um monti di tambô naqueli garpão. Di vêiz im quando jogâmo nu animar todu. Mata tudo.

– O senhor dá banho de óleo queimado no animal?

– Isso aí, seu mininu, us bichím fica briâno.

– Mas este procedimento não é muito salutar para os animais.

– Salutá u que?

– O óleo queimado no lombo dos animais expostos ao sol pode provocar queimaduras na pele e até intoxicações.

– O dotô tá cum palavriado muito du isquisitu.

– O que eu quero dizer é que isso não elimina o problema dos carrapatos. O problema está mesmo é nas pastagens.

– U qui é qui ocê tá falâno, seu mininu?

– O senhor conhece o ciclo do carrapato?

– Mais qui diacho di ciclo di carrapato é êssi?

– O senhor já reparou naqueles carrapatos bem grandes parecendo uma jabuticaba?

– Seu mininu, eu cunheçu muitu o tár du carrapatu.

– Pois é, aqueles grandões são as fêmeas. Quando elas estão daquele tamanho, se desprendem do corpo do animal e caem ao solo. Lá no chão, elas desovam por volta de 3000 ovos, cada uma. E dos ovos saem as larvas que vão…

– Peraí, seu mininu, u qui ocê tá mi dizênu?

– Estou dizendo que cada fêmea de carrapato bovino desova em média 3000 ovos e que…

– Dotô, ocê tá mi dizênu qui carrapatu bota ôvu?

– É isso mesmo, Seu Hildário.

– Seu mininu, ocê si formô na capitár?

– Em Belo Horizonte, é uma das melhores Escolas de Veterinária do país.

– Escuita aqui, dotozinhu, ocê tá querêno gozá cum minha cara?

– Que é isso, Seu Hildário, jamais me passou isso pela cabeça.

– Ocê sabi quantus anus tênhu? Óia só pra mim. Tenhu 85 anus. Sabi quantu tempu di roça?

– Mas Seu Hildário…

– Quietu aí, garotu, eu ti ricibi aqui na minha casa cum toda a vontadi possívi. A muié tá lá na cuzinha preparâno um dilicioso café i assâno os pão de quêjo qui tantu apricio pra ti oferecê. Tô aqui gastâno meu tempu cuntigu procê zombá da minha cara? Eu sô o Hildário, sô, e num aceitu disrispeitu cumigu.

– Mas Seu Hildário, o que foi que eu fiz para te desagradar tanto assim?

– Óia aqui, rapaiz, tenhu mais de 70 anus di roça e tudo u qui aprendi sôbri os animár foi botâno as mão na massa, dâno um duro danadu. Aí chega um dotozinhu da capitár mi dizênu qui carrapatu bota ôvu. Tá querêno abusá da minha boa vontadi, só pódi sê.

– Mas Seu Hildário, eu nunca pretendi zombar do senhor, que é um homem respeitado e querido nesta cidade.

– Cômu não, garotu? Qui negóçu é êssi docê dizê qui carrapatu bota ôvu qui nem galinha?

– Mas é verdade, Seu Hildário. Espere aí que vou lá no carro pegar uns livros para…

– Vai pegá livru porcaria ninhuma. Eu já falei qui intendu muitu di carrapatu. E a vida dura di roça mi insinô qui carrapatu nasci é du mijo da égua, tá bão? Ondi égua mija, nu ôtro dia tá chêi de carrapatu. Num tem êssi tróçu di ôvo não, seu mininu. Ocê num sabi é di nada. E tem uma coisa: nus meu animár ocê num incosta um dedu. Ó, já tá ficâno tardi i eu tenhu mais u qui fazê. Óia aqui mininu, num queru vê ocê pur aqui ispaiandu essa babosera di carrapatu botá ôvu qui nem galinha, iscuitô? Inté!

Ao se despedir bruscamente, Seu Hildário se retirou e o Médico Veterinário ficou embasbacado na cadeira por alguns minutos. Ele ainda escutou o bater de portas e janelas. Um silêncio profundo dominava o ambiente. Apesar dos ruídos característicos presentes numa fazenda, ele nada ouvia. Sua mente tentava encontrar uma resposta para tamanha ignorância. O que fazer agora? De repente, uma voz:

– Dotô.

– Oi, Dona Magda.

* Texto: Eitel Teixeira Dannemann.

* Foto: Br.depositphotos.com, meramente ilustrativa.

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