“O mistério nos assedia, e justamente o que vemos e fazemos todos os dias é o que oculta a maior soma de mistérios”. (Henri Frédéric Amiel − 1821-1881)
O ano de 1982 já havia despontado no horizonte. Em Vila do Córrego Dobrado, as antenas captavam o programa de variedades Manhãs com Você, transmitido pela Rádio Clube de Pico da Glória. A apresentadora Matilde Rosinha extasiava os ouvintes com os sucessos da época: o astro do videogame Mario; o carro Ford Del Rey; shows do Queen no Morumbi; a estreia do canal de TV SBT; o namoro de Xuxa com Pelé; a primeira câmera fotográfica digital, a Mavica da Sony; o programa humorístico Viva o Gordo; o cubo mágico; a música Fuscão Preto, de Almir Rogério; seleção de Telê Santana; o primeiro título de Nelson Piquet; a popularização do videocassete pela Sharp.
Enquanto isso, os telhados da COLEVICODO já eram avistados de cima por pequenos aviões. Asued chegara aos dois anos de vida. O corpo era o de uma menina de dez anos e a mente já de um adulto. Sued Filho, um ano mais moço e correspondências físicas e mentais mais adiantadas. A cada dia mostrava-se mais acelerado no desenvolvimento. Aparentava um garoto de treze e uma mente também de adulto. A genética dos Deuses adaptada à atmosfera terrestre fazia milagres. Uma e outro se mostravam a cada dia mais próximos. Não eram raros os contatos físicos. Mamãe Mara e Mamãe Sofia se alternavam na tentativa sofrida de serenarem os ânimos sexuais dos dois primeiros filhos dos Deuses na Terra. Era esperado o sinal. Sinal outro que um cheio de divisas no ombro transferiu a outrem sem nenhuma divisa. Enquanto não era tempo lá para a germinação de um legítimo pazoliano, era tempo para outras ações de outros interesses.
O relatório de Bispo Ednando e Cardeal Torentino por pouco não provocou uma calvície eterna no Papa. A invisibilidade dos Deuses e a movimentação em Vila do Córrego Dobrado causavam furor nos humanos possuidores de divisas monogástricas. Era preciso agir. Um determinado grupo de mentes privilegiadas resolveu agir. Era tudo ou nada. A coisa estava se estendendo demais da conta. Como primeiro passo, esperou a noite dominar a mentalmente modificada Vila. Se os Deuses tinham um escudo protetor, eles, pertencentes àquele grupo de mentes privilegiadas, também tinham. Se os Deuses possuíam a tecnologia, eles possuíam a astúcia. Como segundo passo, provocaram um apagão na cidade, sabotando a estação elétrica. Como terceiro passo, enviaram uma equipe da concessionária de eletricidade. Como quarto passo, identificaram na casa dos Mantiqueira um curto circuito como causa que desencadeou o apagão. Como quinto passo, mexeram, mexeram e mexeram na casa dos Mantiqueira. Eles lá, os Mantiqueira, atentos. Um dos eletricistas privilegiados informou que havia sanado o problema, dizendo que a rede elétrica estava velha demais e logo enviou um informante àquele que estava na estação para normalizar a eletricidade. E deu-se a luz. Vila do Córrego Dobrado era novamente detentora de iluminação noturna. Todos os Mantiqueira ficaram felizes pelo serviço ligeiro prestado pela concessionária. Esta tratou de voltar no outro dia para fazer uma conferência geral na casa. Queriam evitar riscos de novos apagões. A luz ficou presente na Vila, mas a escuridão dominou os sonhos de todos.
Quinta-feira, 7 de janeiro de 1982. Enquanto no dia anterior a população de Blumenau, em Santa Catarina, se assustou com a queda da famosa ponte Lauro Müller (Ponte do Salto), localizada sobre o Rio Itajaí-Açú, às seis horas da manhã um grande caminhão-baú da concessionária de eletricidade estacionou em frente à casa de Mabélia com seis técnicos. Ânimos serenos, pois os acontecimentos da noite anterior foram serenos, sem suspeitas. Igualmente, para os Deuses lá nos céus, tudo não passou de um incidente elétrico trivial comum em qualquer cidade. Eles, os Deuses. até elogiaram a presteza daquela concessionária. Três técnicos fizeram uma varredura na rede elétrica, enquanto os outros três ficaram no caminhão-baú. Verificaram a necessidade de uma troca geral da fiação da casa. O custo viria acrescido na próxima conta. A família Mantiqueira não considerou onerosa, e permitiu o serviço. Enquanto os eletricistas trabalhavam, admiravam a linda garotinha e o lindo garotinho. E, mais do que nunca, o colar que, de vez em quando, se vislumbrava no pescoço de Januário. Foi um trabalho árduo e tremendamente excitante. Os Deuses, bem, os Deuses consideraram que não havia perigo naquelas atividades. Resolveram conferir os equipamentos e se darem uma folga para um lanche. Sued e Etnaduja discutiam sobre a base de Netuno. Na casa, serviço terminado. Lá em cima, vigilância relaxada. Tudo era normal, tão normal que após os três eletricistas terminarem o serviço, convidaram a família a conhecer o equipamento presente no interior do caminhão da concessionária que detectava panes à distância, sem se atentarem que isso não existe. A conversa era tão natural que os Deuses não perceberam o ardil escondido entre as palavras.
Mabélia e Januário não se animaram. Que pena! Em compensação, Mara e Sofia resolveram levar as crianças, apesar da inquietação de Asued. Se não era o máximo, chegava perto, mentalizaram os técnicos. Elas entraram no baú. Nada vislumbraram de interessante. Sued Filho deu-lhe as mãos. Olharam em volta e perceberam algo de errado. Apenas a metade do baú era ocupada com alguns pequenos instrumentos encostados às laterais. Mara e Sofia se perguntavam o que estava acontecendo com os dois filhos. Não deu tempo para mais nada. Sem olhos curiosos na rua e lá em cima nos céus, a porta foi fechada abruptamente. Imediatamente, dois eletricistas pegaram os quatro e rasgaram uma parede falsa que havia na metade do baú. No fundo, havia um veículo de passeio. Os quatro foram colocados nele, encapuzados e com as mãos atadas por trás das costas. Tanto o baú quanto o carro possuíam blindagem de chumbo. Aberta a porta do baú, puxados dois pranchões, o carro desceu. O que ficara fora fechou novamente a porta do baú e juntou-se aos outros no carro e este tomou rumo ignorado. Os Deuses não oniscientes e não onipresentes não poderiam localizar seus filhos, pois seus olhos não penetravam o chumbo. Mabélia e Januário se assustaram com os gritos. Foram derrubados pela saída apressada dos três eletricistas, que entraram no caminhão e saíram em disparada. Após transporem a ponte e rodados uns dois quilômetros, lá estava o carro esperando-os. Saíram do veículo e, entes de entrarem no carro, atearam fogo ao caminhão. Finalmente. Agora, com a blindagem de chumbo, aquele carro, misturado a outros tantos, para os Deuses nada mais era do que apenas um simples carro. A astúcia venceu a tecnologia. Será?
Januário e Mabélia, quando deram pela falta das filhas e dos netos, entraram em pânico. Comunicaram os Deuses, que imediatamente localizaram o caminhão ainda em chamas à beira da estrada. Já na companhia de Padre Alaor, chegaram ao caminhão. Foi um desespero ver o veículo já quase todo queimado e nenhum vestígio de mães e filhos. Nada. Mara, Sofia, Asued e Sued Filho haviam sido raptados. Na morada celestial, alguns anjos se viram em maus lençóis. Foram afastados de suas funções divinas e trancafiados numa cela divina. E agora? O carro não fora visto. Por que os Deuses não conseguiam localizar os raptados? Pouco depois, surgiu Etnaduja com cara de poucos amigos. Examinou o veículo e matou a charada. Foram para a casa. A concessionária informou que o caminhão-baú nada tinha a ver com a empresa, novamente. Comunicaram o caso à polícia, que imediatamente disparou comandos a uma infinidade de pontos estratégicos, na tentativa de identificarem o carro através de cercos nas rodovias. Enquanto a polícia se armava, pouco antes da rodovia federal dois caminhões do exército, sendo um deles com um baú blindado de chumbo e outro de carroceria aberta com vários homens fardados, aguardavam o carro. Este chegou e subiu à carroceria do baú, onde sumiu da face da Terra. Pela rodovia federal, os carros da polícia cruzavam com dois caminhões do exército sem nem imaginarem que num deles se encontravam dois jovens Deuses. Na casa, dois humanos e um anjo de Deus ficaram alguns minutos em silêncio, como que não podendo acreditar que isso pudesse ter acontecido. Mabélia, em estado de choque, foi sedada por Etnaduja e postada em sua cama. Januário, então, se prontificou a falar.
– Oh Etnaduja, louvado seja Sued, não compreendo. Ó desgraça! Ó sofrimento! Ó maldição! Por que, por que levaram minhas filhas e meus netos? Por favor, faça-me entender.
– Meu bom Januário, ainda não sabemos. Sued determinou a todos os seus anjos que vasculhassem a região. Tenha calma, vamos encontrá-los.
– Eu não entendo. Como, Etnaduja, como os Deuses permitiram que isso acontecesse? Perdoa-me o meu nervosismo e falta de controle. Por favor, me diga… me diga…
– Calma, Januário. Lembre-se que no início dos tempos a humanidade se corrompeu e o pai de Jesus Cristo não conseguiu evitar. Era um Deus como nós, e aí? É que nem o caso presente. Não sabemos ainda, mas vamos descobrir, pode ter certeza.
– Louvado seja Sued, não pretendo ser leviano, mas no caso que o senhor citou havia um semelhante de Deus por trás daquilo. E aqui, Etnaduja, e aqui… e aqui…
– Não, Januário, nada de pensamentos nocivos. O que aconteceu foi simplesmente uma artimanha humana, puramente humana. Os humanos desenvolveram algumas tecnologias que, de vez em quando, interferem em nossos poderes, tecnologias estas que não existiam nos tempos dos profetas. Uma delas ocultou a verdade. Já sabemos como fomos enganados, pois não há tecnologia humana que engane os nossos poderes por muito tempo.
– Por favor, fala-me sobre esta suspeita e desacelere o meu coração que está prestes a explodir.
– Você sabe por que o pessoal que lida com radiologia se esconde atrás de uma proteção de chumbo?
– Santo Deus Sued, o que tem raios x com o desaparecimento de minhas filhas e meus netos?
– Responda-me e você vai entender.
– Bem, pelo que sei, é para evitar as radiações constantes a que estão sujeitos.
– Exatamente. O caminhão está blindado com chumbo. Como acontecem com as radiações, nossos poderes não atravessam este elemento. O procedimento daqueles indivíduos estava tão próximo da realidade que nos descuidamos, e não percebemos quando as suas irmãs e as crianças entraram no caminhão. A partir daí, não mais detectamos suas presenças. Um descuido desagradável.
– Por que tacaram fogo no caminhão? O que poderia ter acontecido? Para aonde as levaram?
– Muito provavelmente havia um veículo menor no interior do baú, igualmente blindado com chumbo. Em outro descuido, não percebemos quando este veículo saiu do baú e se misturou a outros. O fato deles terem queimado o veículo teve por finalidade inutilizar pistas.
– Oh Etnaduja, louvado seja Sued, purificai a minha boca depois destas palavras, esfregai com areia grossa a minha língua após o que vou dizer: nós não estamos cem por cento seguros.
– Não é bem assim, Januário.
– Estou assustado, perplexo, inseguro, cabisbaixo, e, ó danura, ó dor cruel, ó língua ingrata, por que então Sued e os anjos permitiram o rapto?
– Qual a sua opinião sobre o assassinato de Abel?
– Por que, anjo Etnaduja, neste meu sofrimento, faz perguntas tão estranhas? O que tem o assassinato de Abel a ver com o sumiço dos meus entes queridos? Lá está em sua cama o corpo adormecido de minha mãe. Em poucos minutos ela estará aqui se desesperando novamente. Louvado seja Sued, louvado seja Sued. Por que… por que…
– Januário, Januário, lembre-se de que cada palavra que pronunciamos retrata a pura verdade. Cito o assassinato de Abel para você entender que nós, Deuses, assim como foi com aquele Deus, também cometemos falhas.
– Ora, Etnaduja, faça-se entender, por favor.
– Você acredita que Deus queria o assassinato de Abel?
– Evidente que não acredito nisso, é inconcebível.
– Eis aí o fato. Como os seus dogmas afirmam com absoluta certeza que aquele Deus era onisciente e onipotente e que não desejava o assassinato de Abel, por que então ocorreu o assassinato de Abel?
– Oh, minha cabeça está quase explodindo de agonia. Abel… Caim… sim, o assassinato de Abel. Não, não, nunca e jamais Deus queria que um irmão matasse o outro. Foi uma fatalidade, sim uma fatalidade.
– Isso, meu prezado, nada mais foi do que uma fatalidade. A pergunta é: e por que aconteceu esta fatalidade? Se Deus não queria o assassinato de Abel, como você mesmo afirma com convicção, então não poderia ter acontecido esta fatalidade. Houve, sim, um descuido de Deus, que não percebeu a ação e por isso não pode evitar o assassinato. Concordando com a sua opinião posso lhe dizer pesarosamente que o sequestro foi uma fatalidade.
Mas… mas… Deus então descuidou-se… é… os senhores também.
– Não afirmo categoricamente que Deus descuidou-se, pois Ele tinha um amor intenso pela sua criação. Na verdade vos digo que Deus tinha uma infinidade de tarefas e contava com o apoio de seus anjos. Eis aqui a questão. Um anjo havia sido colocado para monitorar a família de Adão e Eva. Este sim, o tal anjo, falhou ao não monitorar adequadamente os dois irmãos. No caso aqui foi um pouquinho diferente. Os anjos estavam monitorando a sua casa. O erro foi eles não terem percebido um subterfúgio por trás das ações da equipe de eletricistas. No linguajar de vocês, bobearam e dançaram. O resultado da bobeada foi o sequestro.
– E agora, Etnaduja, e agora? E o tal anjo que deu a bobeira, o que vai acontecer com ele?
– Será punido, pois Sued não permite erros.
– Mas… mas… punido?
– Sim, será afastado da morada celestial e fará um novo aprendizado em prol de sua evolução, para que não mais cometa erros.
– É, não deixa de ser interessante. E quanto aos responsáveis pelo sequestro?
– Tenha a certeza de que, neste exato momento, lá em cima estão trabalhando para encontrá-los. Portanto, tenha calma e convicção absoluta que brevemente serão localizados e resgatados, e os responsáveis igualmente punidos. A propósito, Padre Alaor já se desligou do Vaticano?
– Tudo bem, Etnaduja, vou fazer o possível para me controlar. Quanto ao Padre, ainda não foi desligado, mas vai ser para estes dias. O Bispo Ednando só está esperando o comunicado do Vaticano. Ele já foi afastado da igreja e até já colocaram outro padre. Ele até sugeriu a imediata construção de um novo templo.
– Um templo? Jamais, meu prezado Januário, jamais.
– Louvado seja Sued, Ele precisa de um lugar sagrado para ser adorado.
– Não queremos e jamais o nome de Sued será relacionado a uma religião. Não viemos até ti e até este planeta para criar uma religião. Atente-se para o que vou lhe dizer: religião é o câncer da humanidade. É uma afecção cruel que corrói a alma de todos aqueles que se apegam a um deus para adoração. Por causa de um deus, mata-se o semelhante que não é adepto daquele deus. Por causa de um deus, cria-se um exército de pervertidos obrigados a seguirem cartilhas de comando: não pode isso, não pode aquilo, comer carne de porco é pecado, não pode fazer transfusão de sangue, mulher mostrar o rosto é um ultraje, beber entristece o tal deus e por aí vai. Uma das causas fundamentais para a degradação humana foi a instituição de religiões. Por favor, meu prezado, não confunda igreja com religião. Religião não é a representação ou o símbolo de Deus, de qualquer Deus. Nunca foi e jamais será. A igreja sim, pode ser o símbolo de Deus, desde que seja como Ele idealizou. A religião não vive sem a igreja. Mas a igreja não necessita, em hipótese alguma, de religião. A sua casa é a sua igreja. O seu quarto é a sua igreja. Você, que era adepto de Cristo, não precisava de religião para ser seu seguidor. Oh Januário, quantos crimes foram cometidos pelas religiões em nome de Deus. Confira no seu Livro Sagrado, a Bíblia, o Versículo 6 do Capítulo 6 de Mateus. Ouça-o: “Tu, porém, quando orares, entra no teu quarto, e, fechada a porta, orará a teu Pai que está em secreto; e teu Pai que vê em secreto, te recompensará!” Ouviu bem, Januário, quão lindas, justas e verdadeiras são estas palavras pronunciadas pela boca santa de Jesus Cristo? As palavras são cristalinas como a mais cristalina das águas. O Cristo orientou o homem a criar a sua própria igreja e não uma religião. Cristo quis que cada um tivesse a sua própria igreja, e que esta igreja fosse o próprio lar, o quarto. O quarto de cada um seria a igreja de Cristo. Ali o fiel, sozinho e compenetrado, chegaria ao Pai através do filho. Acontece que o coração do homem foi adubado com maldade por Satanás. Através deste homem dominado pelo arqui-inimigo de Deus, as palavras de Cristo foram desvirtuadas. Então, ao invés de igrejas individuais, criaram-se religiões coletivas. Para abrigar a turba de ensandecidos, construíram-se imensos templos ornados de ouro, prata e uma imensidão de pedras preciosas. A cada ornato efetuado, uma lágrima escorria da face do Criador, pois não era isto o que Ele queria. Os templos, então, tornaram-se o símbolo da ostentação das religiões. Por trás desta ostentação, estavam os poderosos que a administravam. Olhe para o hoje. Já estamos no ano de 1982. Substituíram-se os poderosos por outros. Mas a essência é a mesma. Repare bem esta constatação: religiões fortes e ricas e fiéis pobres. Repare que quanto mais rica financeiramente é uma religião mais pobres são os seus seguidores. Isto é uma aberração cruel, desumana, pois os administradores destas religiões abusam da inocência dos seguidores para espoliá-los através da venda de lugares ao lado do Senhor. Vende-se a salvação. Não, Januário, de forma alguma seremos uma religião e por isso jamais teremos qualquer tipo de construção que se assemelhe a um templo. Seguiremos o exemplo de Cristo. Faremos de cada lar uma igreja, de cada quarto de dormir um templo único e soberano, exclusivo. Faremos questão de extinguir da face deste planeta este câncer chamado religião. Assim será!
As palavras de Etnaduja emocionaram não somente a Januário, mas também a Mabélia, que havia se levantado e postado atrás da porta, onde ouviu toda a explanação do anjo de Sued. Quando este se silenciou, ela entrou na sala e se ajoelhou perante o anjo. Pegou em suas mãos e as beijou. Levantou-se e voltou para o quarto. Januário e Etnaduja a seguiram. A mulher se deitou e serenamente se pôs a dormir. Os dois fitaram-na por longos cinco minutos. Mabélia dormia o sono dos justos. Voltando à realidade, rumaram de volta à sala para continuarem a parlamentação.
– Concordas comigo, Januário?
– Não tenho palavras para exprimir o quão é verdadeiro o que o senhor acabou de pronunciar. Por isso, concordo plenamente. O senhor citou a grande verdade daquele versículo da Bíblia. Pois bem, os cristãos têm a sua Bíblia, o seu Livro Sagrado, assim como outras religiões têm o seu livro sagrado. Quanto a nós, pazolianos, teremos também um livro sagrado?
– Não, não teremos um livro sagrado de acordo com o que vocês entendem por livro sagrado. Sued já havia conversado comigo a respeito. De acordo com Ele, poderemos ter uma espécie de cartilha com as recomendações sobre como ser um autêntico pazoliano. Mas não uma cartilha recheada de proibições. Não haverá proibições, mas lições de como se comportar dignamente perante o seu semelhante, pois os pazolianos terão maturidade genética para formatar uma raça ideal. Após inúmeros estudos da flora deste planeta, principalmente da região onde se localiza a Vila, decidimos que o símbolo da nova era será a flor da espécie classificada pelos humanos como Spathiphyllum wallisii, que vocês chamam de Lírio da Paz. Será o grande símbolo da raça pazoliana, pois a flor… O que foi, Januário, por que ficou triste, não gostou destas determinações de Sued?
– Louvado seja Sued, pois gostei muito. Sobre a flor você deve ter reparado a presença delas no nosso pequeno jardim. Mas é … é que…
– Sim, estás preocupado com a sua gente. É mais do que pertinente tal preocupação, mas tenha certeza de que vamos resgatá-los são e salvos. É uma promessa não só minha, mas do próprio Sued. Afinal de contas, os dois primeiros pazolianos do planeta Terra são meu e de Sued. Por isso a morada celeste está toda concentrada em localizá-los.
– Enquanto isso, fazemos o quê?
– O principal já está sendo feito através dos anjos. Por aqui, vamos comunicar o sequestro aos nossos, para que eles se postem como observadores. Oriente a todos o máximo de atenção com qualquer estranho presente na Vila. Talvez um deles tenha ligação com o caso e esteja nos espionando. Vou subir para colaborar nas buscas. Informe-me de qualquer novidade. Louvado seja Sued.
– Louvado seja Sued – respondeu Januário.
Na morada celestial, os ânimos estavam exaltados. Sued não se conformava com a falha. Fora um descuido infantil que pode, com certeza, colocar em risco as vidas dos dois pazolianos. Todas as redondezas e todas as estradas que saiam de Vila do Córrego Dobrado estavam sendo monitoradas. Nada escapava, pelo menos naquele momento, aos olhos felinos dos Deuses. Um dos deles se pronunciou:
– Comandante, talvez possa haver um indício nestas imagens. Repare nestes dois caminhões do exército. Detectei-os numa estrada federal não muito distante do trevo que dá para a Vila. Vou voltar as imagens para você perceber melhor. Veja, captei-os aqui, após o trevo. Seguiram em direção à capital. Rodaram 97,8 Km e entraram nesta estrada de terra. Mais 12,3 Km e chegaram a estas instalações parecendo uma usina de cana de açúcar desativada e foram diretos para este imenso galpão. Estão lá já fazem 37 minutos. Depois que eles entraram, não houve nenhuma movimentação externa. De acordo com os dados recentes, não existe nesta área nenhuma movimentação bélica ou de exercícios militares que justifiquem a presença destes dois veículos.
– Volte um pouco e focalize o caminhão com os homens na carroceria. Dê mais aproximação. Estranho, nenhum deles está armado. Por que estão se comportando assim, sem postura, às gargalhadas? Pelo que sabemos, não é comportamento adequado a membros das forças armadas. Volte mais, até a rodovia federal. Mesmo comportamento numa estrada de tanto movimento. O que pensariam as pessoas presenciando soldados do exército como se fossem um bando de desocupados?
– Comandante, veja isto. Deixe-me aproximar mais. Repare bem no humano que fecha o portão após a entrada dos caminhões.
– Um civil com um revólver na cintura. Muito esquisito. Nenhum sinal?
– Nada, comandante.
– Envie imediatamente uma Adnosinim¹. E o combustível?
– Já está a caminho, mas houve problemas no reator da Atoirtap².
– Justamente na Atoirtap? Ela está aonde?
– Não é grave. Está chegando a Marte. Breve estará aqui com o combustível.
– Ótimo. Acredito que de hoje para amanhã estará aqui.
– Os Deuses haviam montado a sua morada celestial há mais de 384 mil quilômetros de distância da Terra, estrategicamente de frente ao lado escuro da Lua. Naturalmente, por este fator não eram visíveis pelas poderosas lentes de vidro humanas. Mesmo com a imensidão de satélites, a base não era vista por estar protegida pelo escudo invisível. Foi enviada uma minúscula sonda para averiguações, com alto poder de visão, audição e tamanho e formato aproximado de uma barra de chocolate. Com uma velocidade aproximada de 3 mil quilômetros por segundo, a sonda consumiu pouco menos de 3 minutos para chegar ao galpão. Comandada lá de cima e invisível por causa do escudo protetor, primeiro fez uma varredura em todas as laterais, até entrar por uma pequena abertura na junção do telhado de zinco. Foi neste momento que perceberam a lona de chumbo abaixo do teto. Tão logo a sonda se pôs abaixo da lona, imediatamente capturou os sinais dos jovens Deuses e suas mães. Estavam deitados num cômodo, aparentemente sem lesões. Num outro cômodo, homens fardados misturados a alguns civis discutiam a altas palavras. A sonda se postou próximo a eles, flagrando os gestos e os dizeres.
– Não quero saber quem são e o que representam. Ou pagam o que pedimos ou os matamos e fim de papo.
– Calma, Escudeiro, as negociações não se definem de um dia para outro. Raciocine sobre o valor desta operação e verá que não podemos sair dela sem algum ganho, pelo menos para cobrir os custos.
– Eu disse que não queria saber sobre quem são e o que representam, pouco me importa. Mas sei que valem muito, mas muito dinheiro. Não podemos nos afastar muito dos cem milhões de dólares pedidos.
– Disse o certo, não podemos nos afastar muito do pedido. Se não for possível conseguirmos os cem, que sejam menos, e ainda assim estaremos milionários.
– Nem os religiosos?
– Por incrível que pareça, saíram na frente e ofereceram cinquenta e cinco.
– Americanos e russos?
– Quarenta o primeiro e vinte e cinco o segundo. E o pior: querem provas de que eles estão realmente conosco.
– São mesmo uns abusados. Vamos fazer uma pressão para ver no que vai dar. Vou dar um recado a eles dizendo que, se dentro de 48 horas algum deles não pagar o que pedimos, vamos eliminar os sequestrados. Vamos fazer as ligações.
– Mas, Escudeiro, é um tempo muito curto.
– Ao contrário, é tempo longo demais para nós. Raciocine, gente. Quanto mais tempo ficarmos aqui mais chance de nos descobrirem. Atentem, homens, estamos lidando com agências de inteligência. Os satélites estão vasculhando tudo. Este aparato telefônico clandestino que montamos aqui pode ser logo detectado. E, além do mais, não se esqueçam que para estes caipiras que nos rodeiam a nossa presença aqui fantasiados de homens do exército é uma grande novidade e pode gerar fofocas por aí. Se delongarmos demais, nos descobrem, não ganhamos um centavo sequer e o pior, vamos servir de alimento aos vermes. Portanto, mãos à obra e enviem o recado.
– O que vamos fazer? – perguntaram lá em cima a Sued.
– Vamos esperar eles enviarem os recados. Enquanto isso, preparem a equipe de resgate – respondeu Sued.
– Pronto, recado dado – disse Escudeiro. Agora não resta alternativa a não ser esperar. Confiram lá se os ETs estão precisando de alguma coisa e vamos descansar os esqueletos. A segurança de sempre, hêim?
– Vão, resgatem os nossos. Etnaduja deve levá-los de carro à Vila. Depois que se retirarem, voltem à nave. Eliminem todos e façam desaparecer o galpão com tudo o que está dentro dele. Não quero um único vestígio – determinou Sued.
– Com a tradicional, para eles, tecnologia da desfragmentação e após fragmentação molecular tantas vezes já utilizada por Etnaduja, o homem prateado, em suas visitas à família Mantiqueira, dez Deuses se materializaram há alguns metros do galpão. Pelo que informava a sonda Adnosinim, os reféns se encontravam dormindo e sem escoltas. Quatro sentinelas se postavam em cada canto. Lá dentro, poucos estavam acordados. Atingidos por raios luminosos, os quatro vigilantes caíram em silêncio. Sem dificuldades, entraram. No mesmo instante, os irmãos Deuses avisaram às mães que Eles haviam chegado e que se preparassem. Na invasão, vários raios jogaram por terra todos aqueles que estavam no interior do galpão, acordados ou dormindo. Entraram no quarto dos reféns. Os quatro já os estavam esperando. O homem prateado os colocou no carro e se dirigiu para a Vila. Poucos momentos depois, o galpão e tudo o que havia dentro dele desapareceu como num passe de mágica. Nenhuma explosão, nenhum clarão, apenas alguns zumbidos, que não foram suficientes para despertarem a atenção dos vizinhos, que só na manhã do outro dia vislumbrariam o grande mistério. Mistério este que seria do tamanho do Universo para aqueles que estavam em negociação com os agora fantasmas.
* 1: Diminuta sonda espacial, 10 cm x 4 cm, comandada por controle remoto, equipada com radares e câmeras de altíssima resolução.
* 2: Imensa nave cargueira que estava em missão a Netuno para buscar combustível. No planeta, os Deuses haviam montado uma usina de processamento do mineral que lhes fornecia combustível e energia para sua frota e para a base.
* Texto: Eitel Teixeira Dannemann.
* Foto: Desenho e montagem de Eitel Teixeira Dannemann.