Clotilde, filha de pais pobres, mas honestos e trabalhadores. Do que os dois ganhavam no mês, quase a metade era direcionada a proporcionar à jovem de 12 anos uma boa educação numa escola particular, procurada por muitas famílias da sociedade. Famílias de grana sobrando que estranhavam a presença daquela aluna em terreiro errado. Em casa, reclamava aos pais que os colegas zombavam dela, dizendo que era brega, feia, e que se estivesse com fome, pagariam um lanche. O casal se revoltava, mas permanecia íntegro no intuito de trabalhar duro para proporcionar à filha uma educação digna.
Clotilde tinha um problema relacionado com o tipo de sangue, raríssimo, o Fenótipo Bombaim (fator hh). Pessoas deste tipo de sangue, apesar de poderem doar, só podem receber sangue de pessoas com o mesmo tipo. Daí os pais estarem sempre a rezar para nunca a filha precisar de uma transfusão. Afinal, onde encontrar em Patos de Minas um indivíduo compatível?
A cada mês, a jovem se mostrava a mais inteligente do colégio. Os coleguinhas não aceitavam a ideia de que aquela filha de pobres fosse mais sábia que eles. E resolveram, então, humilhá-la, naquela de colocá-la em seu devido lugar. No recreio, o celular de um deles foi maliciosamente aconchegado na pasta da pobre coitada. Já estavam os alunos assentados e a professora prestes a iniciar a aula quando o agito começou.
– Professora, meu celular sumiu!
Reinou uma grande confusão. A professora resolveu fazer uma busca em todas as mochilas. Óbvio, o celular foi encontrado nos pertences da Clotilde. A pobre garota foi expulsa da escola e as portas das outras escolas particulares se fecharam para ela. Numa escola pública, a vida seguiu. Anos se passaram e Clotilde tornou-se Médica. Veio o primeiro plantão num hospital particular, e com ele a eterna lição: nada como um dia após o outro!
Chegou um ser humano em estado gravíssimo. Uma transfusão de sangue era necessária. Quando a Dra. Clotilde atendeu o quase morto, o espanto: era ele – como esquecer aquelas feições? O destino direcionou o farsante do celular aos braços da doutora. E, destino cruel, ele tinha o mesmo tipo de sangue. Naquele exato momento, ela era a única que poderia salvá-lo. Ali estava à beira da morte aquele que causara o maior dos constrangimentos a si e a seus pais. Seus neurônios estavam a ponto de explodir, enquanto os pais do quase morto, não reconhecendo naquela mulher a ex-coleguinha pobre do filho, gritavam aos píncaros para ela tomar uma atitude. E a doutora resolveu tomar uma atitude. Vingança foi o instinto que lhe dominou. Ela então resolveu se vingar daquele que tanto mal lhe fizera. Direcionou seus olhos aos pais e determinou-lhes a sentença:
– Sabem quem eu sou? Sou a Dra. Clotilde. Esse nome lembra alguma coisa a vocês? Não? Pois bem, sou a menina que quase teve a vida arruinada por vocês naquele caso do celular. Sabem o que vou fazer? Vou salvar a vida de seu filho. Sabem por quê? Porque eu tenho caráter e vocês não passam de vermes que só se preocupam com dinheiro, aparecer em colunas sociais de revistas e que a vida se resume a enfiar a mão no bolso. Vermes da humanidade, eis o que vocês são. Vou agora salvar o vida do seu filho, verme como vocês. Depois, sumam daqui e continuem se alimentando com seus egos inflados por notas de cem reais. Adeus, vermes!
E assim se concretizou a vingança da Clotilde. Será que isso serviu de alguma coisa para os pais vermes e o filho verme? Pelo que se vê no dia-a-dia deste mundo perdido, esta atitude da Clotilde vai ser mais uma ação perdida na imensidão do espaço.
* Texto: Eitel Teixeira Dannemann.
* Foto: Artigos.gospelprime.com.br.