PAULO EUSTÁQUIO DE ARAÚJO PORTO

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PAULO PORTOExistirá alguém na polícia que não conheça Dr. Paulo Porto? Papo maneiro, gozador sutil, transforma a vida numa grande piada. Mais vivo, não há. No Bairro Guanabara, seu principal reduto em Patos de Minas, dava concertos ao ar livre. Com um cabide enganchado à cabeça, criou uma engenhoca que lhe deixava tocar violão, gaita e pandeiro ao mesmo tempo, parecendo aquele ceguinho da esquina. Tinha futuro. Tango sofrido e bolero nostálgico foram feitos sob medida para sua voz rouca. Alegre e comunicativo, sempre agregou: aonde chega, ajunta gente. Se precisar alegrar velório e procissão é só chamá-lo. Tem história pra tudo. Foi pescador no Paracatu, goleiro de futsal, técnico de futebol, instrumentista de charanga no Mineirão, comandante de aeronave (a foto do seu voo-solo foi tirada por mim), churrasqueiro, contador de causos e seresteiro. Multivitaminado. Ele, polícia, é redundância: filho de Coronel, neto de Comandante Geral, ainda com faro de sabujo, perspicácia e obsessão totais, o destino estava rezado. Não enjeita serviço. Pelo contrário, quanto mais difícil, é com ele mesmo. Já passou dias e noites dentro de guarda-roupas, colocado em galeria de Juiz de Fora, na campana. Quando viu o suspeito pela portinhola entreaberta atracou-se feito pitbull. Só largou porque a própria polícia ficou com dó. Faz o tipo calado. Observador. Calculista. Não joga sem carta.

Trabalhamos em Patos de Minas. Quase todos os crimes pesados da região foram elucidados por ele. Credito o sucesso à sua criatividade e coragem para decisões fatais. Às vezes sumia. Dois, três dias. Ninguém dava notícia. De repente, pelo telefone: – Doutor, o caso já está resolvido e o cara algemado aqui comigo! Um conhecido, filho de pessoa querida, comunicou o desaparecimento do sogro. Paulo Porto viajou para lá. Farejou de todo jeito. Foi e voltou um par de vezes. Não comentava. Certo dia, arranjou um avião. Chamou nosso amigo, genro do desaparecido, e sobrevoaram extensa área. Avistaram uma camionete escondida no matagal. Aterrissaram onde coube. Examinou tudo. Sem perguntas, sem um comentário, deu voz de prisão ao genro (amigo) e lhe colocou algemas. Retornaram em silêncio a Patos. Crime solucionado. Notícia nacional.

Uma prostituta de Patos, famosa pela beleza, sumira. O filho comunicou-nos o fato. Dias depois, esquartejado, um corpo de mulher foi achado no Rio Paranaíba. Irreconhecível. Parentes, vizinhos e amantes não identificaram. Paulo Porto assumiu o caso. Quis ver todas as roupas da casa, mesmo as que já tinham sido lavadas. Examinou demoradamente por três dias. Deu falta de uma peça. Cadê? Era muito velha, joguei fora faz tempo. Mentira! Ela está comigo há dias. Você está preso por homicídio. O Paulo achara minúscula mancha numa roupa do filho, tipo safári. Sem ninguém ver, recolheu-a. Mandou examinar. Confrontou com o tipo sanguíneo da vítima. Deu na cabeça. No mesmo dia o filho mostrou onde escondera a arma. Crime solucionado. Notícia nacional.

Um casal apareceu morto a golpes de faca. Retalhamento geral. Quarto revirado. Coisa passional. Lá foi o Paulo. Ninguém deu notícia de algum romance paralelo. Nenhum suspeito e pista. Nada sumira. Nosso herói trancou-se em taciturno mutismo. Falava com ninguém. Ficou sem ir à delegacia. No terceiro dia, chegou com o homicida: um enrustido que amava, em doentio segredo, a mulher. Não queiram saber como foi descoberto. Em estado de lucidez, nem o próprio Paulo Porto é capaz de explicar. Crime solucionado. Notícia nacional.

Por volta das 4 horas de uma tarde, a agência bancária foi assaltada em plena Rua Major Gote, no centrão de Patos de Minas. A polícia inteira se dirigiu para Presidente Olegário. Menos Paulo Porto. Seguiu com sua turma em direção oposta. Juntei dois ou três e fomos atrás deles. Quilômetros adiante do Posto Patão, caminho de Patrocínio, existiam estradas paralelas em construção. Uma, interditada. Outra, transitável. Nesta, em um carro escondido pelas árvores, o resto do bando aguardava. Por engano, os assaltantes entraram na primeira e deram com um paredão. Tentavam manobrar, quando chegaram Paulo e equipe metralhando. Nem um minuto depois, os quatro já estavam deitados no chão, mãos e pernas em X. Malotes recuperados. Logo atrás, eu. Heroica e desastradamente, eu caíra no lodaçal dum córrego que estava me engolindo. Levaram mais tempo pra me puxar pelos braços e cabeça – e lhes dei mais trabalho – que para prender toda a quadrilha. Crime solucionado. Notícia nacional. Paulo Porto irradiava vibração interior que imantava a turma. Doava-se por inteiro e nunca reclamou falta de recurso ou a qualidade dos meios – pensando bem, nunca o vi reclamar de coisa alguma.

Dispúnhamos de duas viaturas, a patrulheira e um Fiat. O Fusquinha do Elber não contava: faltava farol, uma porta era chumbada, rodas cambetas, sem amortecedores e banco traseiro. Ainda sim, com a mais dramática falta de estrutura, sem qualquer das modernidades que hoje existem (computadores, rádio, viaturas, armamento sofisticado, coletes, roupa ninja, suporte técnico/científico primeiromundista, helicópteros, aviões, diárias, asfalto, áreas regionais menores, centros de inteligência, estudos macro e micro sociológicos, teorias e máximas burocráticas, entre outros) não deixou de cumprir tarefas. Desabafo feito, novamente ao herói.

Quintinos é localidade perto de Carmo do Paranaíba. Àquele tempo, sinônimo de guerra. Coitado do sujeito que se abestalhasse por lá. Fosse padre, juiz ou delegado. Duas famílias disputavam cada palmo do seu chão. Era fogo cruzado. Paulo me telefonou do Carmo dizendo que estava indo pra lá para prender um fulano: – Estou com dois detetives, pode ficar tranquilo. Juntei o pessoal que coube no tal Fusquinha do Dr. Elber e “voamos”, a 50 km/hora, pelos 75 quilômetros de estrada. O povoado não tinha ruas. Era uma casa aqui, outra mais adiante. À medida que andávamos, as janelas foram fechando. Tudo deserto. Só faltava trilha sonora para ser faroeste. Um dos nossos, contava as carabinas nas gretas das portas. Lá na frente, chupando laranja, conversando com um algemado, enquanto os dois detetives trocavam pneu, o Paulo e sua tranquilidade: – Não precisava vir aqui, doutor. Ninguém é besta de meter a cara conosco. Dali, seguimos para Carmo do Paranaíba. Já noite, na porta de sua residência, o Juiz de Direito acolheu pedido de prisão preventiva.

Outros fatos existem. Mas, juntos, não me marcaram tanto quanto este: Paulo e eu seguíamos para o almoço. Súbito: – Dá uma paradinha, doutor. Brequei na hora. Enfiou dois dedos na boca e largou um assobio. Fez gesto para alguém chegar à viatura: – Te quero na delegacia às duas horas. E já leva a bagulhada. Podemos seguir, doutor. Juro que foi esse bicho que “fez a casa de fulano”. À tarde, ao retornarmos, lá estava o cujo. Sentadinho como um santo. À sua volta, numa espécie de ofertório, rádio, televisão, faqueiro, toca-fitas, perfumes, roupas, sapatos e até um revólver… Assim era a nossa polícia.

* Fonte e foto: Texto de Arnaldo Romano publicado em Cyberpolicia.com com o título “Reminiscências etc e tal – XLII”.

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