TEXTO: RISOLETA MACIEL BRANDÃO (1976)
UM HISTÓRICO DEU MARGEM À FANTASIA
O sol apontou garboso no céu desmaiado por detrás das capoeiras. O intenso nevoeiro que envolvia a terra foi-se diluindo devagarzinho deixando a descoberto o casario rústico e silencioso. Dentre em pouco, movimentava-se a população e a criançada, não obstante o frio impiedoso, saía para a rua a fim de apreciar a mimosura do orvalho brilhando nos telhados, nas copas das árvores, na vegetação rasteira. Horas depois, naquele memorável 19 de julho de 1826, ali verificava-se um auspicioso acontecimento. Um fato alvissareiro vinha quebrar a monotonia do lugarejo proporcionando animação e contentamento ao pequeno núcleo de pacíficos, mas desassombrados, laboriosos e diligentes moradores.
Na sala da fazenda dos “PATOS” lavrava-se a escritura de doação de uma sorte de terras, presente régio de dois corações tementes a Deus. Uma preciosa oferta de mão-beijada que o fazendeiro Antônio Joaquim da Silva Guerra e sua esposa Da. Luísa Corrêa d’Andrade, generosamente, depositavam aos pés do Glorioso Santo Antônio, o taumaturgo de Lisboa. Dádiva “ao mesmo SANTO a fim de se lhe edificar um templo, e também para cômodo dos povos”, reza o documento.
Mas quem eram esses beneméritos, que movidos por suas convicções religiosas, por suas aspirações de formarem uma Freguesia onde todos se sentissem radicados, não hesitaram em reduzir seu patrimônio em proveito do bem comum? Seriam eles oriundos da Vila do Paracatu do Príncipe? Moços? Idosos? Que eram gente de posses nós nos certificamos pela autenticidade do manuscrito… “entre os mais bens de nosso casal, que possuímos, livres e desembargados, e assim uma parte de terras de cultura e campo, que temos na fazenda denominada “OS PATOS”… etc. Anotamos ainda: “terras e campos havidos por herança dos finados meus sogros José Corrêa de Andrade e Rosa Dias D’Oliveira”. De tal afirmativa podemos concluir o seguinte: Da. Luísa aqui viveu anos antes dessa ocorrência em companhia dos pais. Seria ela uma nativa? Nesse caso doou à própria terra que lhe serviu de berço. E os que estivera presentes e lançaram seus nomes honrados como testemunhas de um ato que ficaria para sempre nos anais da futura Patos de Minas?
É deveras maravilhoso sabermos filhos de uma terra que, de papel passado, um belo dia tornou-se propriedade do Santo de nossa devoção… “o mesmo Santo Antônio é dono de um terreno de matas e campos”… citam em uma anotação.
Analizando os textos, verdadeiros, nítidos, palpáveis, ousamos pedir que não levem a mal se, a par do histórico, estamos acrescentamos algumas pinceladas de fantasia.
De princípio era um ermo infestado de bichos do mato. Carnívoros ferozes e vorazes – onças e lobos – povoavam florestas e cerrados. Manadas de emas, seriemas, codornas, perdizes, dezenas de espécies de aves e de animais inofensivos zanzavam a esmo ao longo da chapada e nas margens dos córregos. Pássaros cantores refestelavam-se no cimo das árvores e havia as lagoas: espelhos transparentes em molduras de relva macia pontilhada de ervas perfumadas.
Nos dias claros refletiam o céu puríssimo e nas noites duplicavam a Lua-Cheia, morosa e muda, na sua inalterável pontualidade.
Velhos documentos registram um pouso á beira de uma bonita lagoa na picada de Goiás. Lagoa dos Patos. Esse severo e límpido lençol d’agua, com a maior parte circundada de mata, tinha suas cabeceiras nas proximidades do Mercado Municipal e terminava nas adjacências da Cadeia Pública, onde se encontrava a Aglomeração. (toda a extensa área, hoje cortada de ruas, inclusive o Estádio Mamoré, ficava submersa e ali imperava a soberba raça dos palmípedes que motivou o nome do lugar: Patos).
Aquela primeira habitação – segundo o documentário – foi certamente, uma choça de paus-á-pique e cobertura de capim no qual se arranchavam transeuntes aventureiros nas suas andanças arriscadas em demanda do Sertão. Com o correr dos tempos, Silva Guerra ergueu aí a moradia: casa de telha, paredes barreadas e janelas. Cercou quintal, plantou. Ampliou os roçados e construiu dependências comuns nas fazendas de criar: paiol, curral, ceva de porcos, monjolo. Todavia, pela terra nova e fecunda, pródiga em recursos naturais, não cruzaram indiferentes os peregrinos varadores de cafundo. Muitos fincaram seus ranchos, toscas residências com muros de taipa em arruamento.
Veio enfim a Capela. Aprumou-se airosa, em alvuras de tabatinga, no meio do Largo batido de sol. Tão singela e humilde na pobreza de sua arquitetura primitiva, no entanto representava magnífica aos olhos daquela boa gente. Na simplicidade das almas puras, felizes e enternecidos, contemplavam o sonho transformado em realidade.
Numa esplêndida manhã luminosa, o Sr. Cura, Revmo. Padre José de Brito Freire e Vasconcelos inaugurou o templo com as pompas de estilo. Nesta tocante cerimônia iniciada pela bênção e, a seguir, a Missa Solene, compareceram o povoado em peso, roceiros e fazendeiros dos arredores e ainda vários elementos de circunstância no distrito de Santana da Barra do Espírito Santo, o qual Patos fora sediado. Entre os fiéis, merecedores de apreço, os nossos inolvidados doadores, contritos, participavam da Eucaristia que se desenrolava piedosa e lenta aos pés do Altar. Convenientemente trajados, o Sr. Silva Guerra envergava um terno de sarja preta, botinas de goma importada da Corte e Siá Dona Luísa, cheirosa a patchuli, raminho de alecrim no coque dos cabelos, trazia sobre a vestimenta de gorgorão, o mimoso fichu de abrolhos. De ouro maciço eram as contas graúdas do colar e as bichinhas, cabacinhas pendentes das orelhas. De resto, todo o povaréu enfronhara-se em roupas domingueiras e, jubiloso, entusiasmado vibrava de Fé e amor à Santíssima Trindade, à Senhora do Rosário, e ao milagroso Padroeiro. E, conforme diz a Lenda de Patos, “Santo Antônio o Homenageado, no altar de lírios enfeitado o Curato apadrinhou”.
Encerra-se aqui o primeiro episódio de nossa história. Porém, revisando as páginas seguintes, vamos deparar com um capítulo que particularmente nos diz respeito. Isso porque nos fala de um avô cujos 150 anos de nascimento comemoramos a 1.º de janeiro do corrente. Trata-se de um caso sem maior relevância, contudo verídico, e que influiu sobremaneira no destino dos Dias Maciel e de muitos parentes afeiçoados.
Vejamos:
Lá pelos meados de 1854, Santo Antonio dos Patos nos seus privilégios de Arraial, sua dignidade de Paróquia, flutuava garrido, enquanto a valorosa Santana com ele mourejava no mesmo plano de igualdade. Em santa harmonia e boa concórdia, cada qual levava vida própria – ambas possuíam Vigário, Juiz de Paz, Escrivão e Patos, já em ânsias por eleger um Vereador. Um conspicuo representante do povo que, a exemplo da simpática e aprasível vizinha, figurasse nas sessões da Câmara da Vila do Patrocínio (sede do Município) no nobre intuito de defender os interesses de seu distrito.
As coisas andavam nesse ponto quando aconteceu o caso acima mencionado. Em frente do atual Colégio N. S. das Graças, existiu uma casuarina. Seus galhos zoavam ao sabor dos ventos e sua beleza imponente constituía um adorno ao grande Largo da Matriz.
Foi ao pé dessa árvore solitária que um moço tropeiro encontrou guarida numa noite estrelada e tranquila. Desarreou cargueiros e montadas, armou barraca e acomodou-se. Na verdade seus camaradas haviam descoberto o Rancho da Carlota, pouso único da entrada da povoação. Situava-se no local conforme ao Hotel da Luz (de hoje) na rua Major Gote, mas o moço patão sempre preferia arranchar nos centros e não em recantos desertos. O certo é que, pela noite adentro, a casuarina exultou balançando os lindos galhos que cantavam agasalhosos sobre a barraca adormecida.
Na manhã imediata, o pessoal do Largo vigiava, de esguelha, o vaivém no acampamento com os lotes de burros pastando e, curioso, indagava um ao outro: Quem seria? Donde viria? E a que vinha?
Sem delongas, todo arraial estava ciente de que a bem equipada comitiva procedia de Bom Despacho do Picão; que a título de conhecer tais paragens o moço bondespachence desviara do itinerário: Bom Despacho e redondezas – Rio de Janeiro. Souberam outrossim, que na Corte, impreterivelmente, ele desarreava a sua luzida tropa no Largo da Carioca; na Corte cuidava do sortimento das mercadorias em uso e de fácil aceitação no comércio: fazendas, chapéus, calçados, armarinhos e, abastecidas bruacas e canastras, regressava às Gerais.
Entretanto, em Patos no seu arranchamento improvisado, por duas ou três semanas, o nosso forasteiro fez negócios, recebeu e retribuiu visitas das principais figuras do Arraial. Popular e humano, entrou também em contato com os menos favorecidos da sorte. Assuntou na cercania, as aguadas, brejos grotas-fundas e quanto acidente havia no relevo do solo, desde as suaves ramificações da Serra da Mata da Corda. Sobretudo admirou a magnificência das florestas virgens. Deslumbrado comprovou a riqueza imensa do solo, gema preciosa onde floresciam uma variedade de plantas nativas e exuberantes rocinhas cultivadas. E, certo dia…
“Sinhô ô ô ô Sinhô, vem espiá o mio qui vancê encomeadô”. Deparando um despropósito amontoado no chão, o patrão comentou aborrecido:
– “Ora! João Preto, eu mandei comprar umas espigas pros animais e você me traz meia carrada de milho!?”
O negro escravo gaguejou sorridente: “Uai… Sinhô… é a quantia da pataca q’ancê mim deu pra mode fazê o pagamento”.
Tamanha fartura impressionou o moço e quem sabe se naquele instante foi inspirado pela Divina Providência com uma deliberação que mais tarde iria influir na mudança de campo de suas atividades. Adquiriu terrenos nesse novo Eden onde no dizer de pessoas idôneas, no prazo dos últimos nove meses, o coveiro só abriu sepultura para um rapazinho que morreu de uma estrepada. Clima ameno numa terra de gente amorável e hospitaleira… Gleba de celeiros abundantes… Terra boa de se viver.
Pesaroso, disse adeus aos patenses, desmontou a barraca, arreou as bestas cargueiras e partiu largando amizades e levando saudades. Lá se foi pelo caminho que veio, os arrieiros tangendo a tropa com a madrinha, ativa e vigorosa, marchando faceira nos seus atavios, a bonequinha vermelha tesa na cabeçorra e o cincerro no pescoço badalando, badalando: blim… blim… blim… blim.
Mas quem era o visitante tão correto, sério e ponderado que apesar de moço já se impunha pela simples presença? Quem era esse rapaz de fisionomia bondosa, olhar denotando bravura, calmo e maneiroso que conquistava a simpatia e confiança geral em todas as classes de qualquer comunidade? Antonio Dias Maciel. O mesmo Antonio Dias Maciel Capitão de Companhia da Guarda Nacional da Vila do Pitangui que, nos fins de 1857, deixando Bom Despacho, o berço natal, transferiu-se definitivamente para Santo Antonio dos Patos: a graciosa Patos, que há três anos conhecera como a Terra da Promissão.
* Fonte: Texto publicado em duas partes (a primeira em 29 de julho e a segunda em 08 de agosto de 1976) no jornal Correio de Patos, do arquivo do Laboratório de Ensino, Pesquisa e Extensão de História (LEPEH) do Unipam.
* Foto 1: Largo da Matriz no início do século 20, do arquivo da Fundação Casa da Cultura do Milho.
* Foto 2: Antonio Dias Maciel, o Barão de Araguari, na década de 1920, do arquivo de Newton Ferreira da Silva Maciel.
* Edição: Eitel Teixeira Dannemann.