DESASTRADO AZARADO, O − 4/4

Postado por e arquivado em CANTINHO LITERÁRIO DO EITEL.

Depois de um domingo ensolarado e salutar com os amigos, onde o assunto principal não foi outro senão a frustrada festa, a segunda-feira amanheceu nublada. Uma brisa suave balançava as folhas e tornava o dia ameno. Saindo para o trabalho, Ambrósio reparou que seu Chevetinho 82 estava todo enlameado. É, era precisava deixá-lo no lava-jato para uma geral. Quando abriu a porta do carro se lembrou de uns papéis da sapataria esquecidos em casa. Ao entrar novamente no carro, um fato inusitado havia acontecido. Enquanto ele pegava os papéis, e como a porta do veículo estava aberta, um cachorro de rua, não um destes cãezinhos serelepes e que abana o rabo pra todo mundo, era um baita dum cachorro, pois bem, este cachorro tinha entrado no carro e se acomodara no banco traseiro. Pronto para dar a partida, Ambrósio ouviu um rosnado. Pelo retrovisor, percebeu a imensa massa de pelos. Quando olhou para trás, o canídeo, um imenso canídeo, soltando baba para tudo quanto era lado, abriu a bocarra e danou a latir. Ambrósio não pestanejou um segundo sequer e num salto saiu do carro e fechou a porta. E lá dentro de seu querido Chevetinho 82, o gigantesco monstro babava, pulava, batia a cabeça no teto, rodava para todos os lados e, o pior de tudo, começou a mastigar o banco do carro. Quando o Ambrósio chegava o rosto no vidro lateral traseiro, o cão avançava com uma força tal que quase quebrava o dito com a cabeça. E a baba escorria, e pedaço de banco voava para todos os lados. E os vizinhos foram chegando. E o cão babando, mostrando os dentes. O alvoroço cresceu tanto que chegou aos ouvidos do patrão que logo apareceu. E logo apareceu um carro da polícia com dois elementos. E o animal avançando contra o vidro numa fúria tal que assustava todos os presentes. Começaram então, os palpites.

– É raiva.

– Gente do céu, é isso mesmo, esse cachorro tá com hidrofobia, tem que ser morto.

– Joga uns pedaços de carne lá dentro que ele se acalma.

A carne chegou rapidinho e com muito custo foi jogada lá dentro. O cão cheirou uma vez, cheirou duas e não comeu, partindo novamente para mastigar o banco. Num determinado momento, ficou quieto, parecendo dormir. A polícia começou a sugerir.

– Ambrósio, este cão parece mesmo que está com raiva, temos que matá-lo. Vou aproveitar este sossego dele para, lentamente, abrir a porta. Enquanto eu estiver abrindo a porta, o colega vai estar com o revólver apontado. Vai dar certo.

Passaram à ação. Um policial, praticamente em câmara-lenta, apertou o trinco. O cão se manteve imóvel. Serenamente, foi abrindo a porta. O colega ali do lado, com o revólver engatilhado pronto pro tiro. Abertos somente uns dez centímetros, o cão deu um pulo tão violento que chegou a colocar a cabeça para fora. Foi um sufoco. Duzentas mãos forçaram a porta obrigando o cão a se recolher. Este pulou para os bancos da frente e começou a se alimentar novamente, pois parecia que os bancos eram seu alimento preferido naquela oportunidade. Nisso, Ambrósio se desesperou, percebendo os bancos de seu lindo Chevetinho 82 sendo devorados pelo cachorro e ele nada podendo fazer. Até que o policial soltou o verbo.

– Ambrósio, não tem jeito, esse cachorro tem que ser morto imediatamente, por dois motivos. Primeiro, porque é um perigo para a integridade física dos habitantes. Segundo, por que, senão morto, vai destruir todo o interior do seu carro. Vamos atirar daqui de fora. Vai perder o vidro da porta, mas, em compensação, encerra o estrago agora mesmo, pois é como eu disse, se não pararmos com ele agora o interior do carro vai ser todo destruído.

– Mete bala, policial, mete bala! − gritou desesperado o Ambrósio.

Os policiais afastaram a turba. Dois 38 foram apontados para o vidro da janela. Dez estampidos foram ouvidos. Lá dentro, o cão prostrou-se mortalmente. A porta foi aberta e o cão puxado pelo rabo. Os policiais orientavam o povo a não tocar o animal por causa do risco de contaminação. A Zoonoses foi comunicada e logo chegou. Esta tomou conta do caso e a primeira orientação foi dada ao Ambrósio. Foi-lhe dito para não entrar no veículo, pois estava todo cheio de baba. O diagnóstico de raiva só poderia ser confirmado após exames. Talvez não fosse raiva, mas, a título de segurança, o melhor seria que o interior do carro passasse por uma desinfecção. Logo veio uma empresa do ramo e fez o serviço. Quando o carro foi liberado, Ambrósio se assustou com o estrago nos bancos e com os furos das balas. Os amigos o consolaram. Deixou o veículo no lava-jato e foi trabalhar. Antes de adentrar à loja, deu um suspiro, como que dizendo a si mesmo: hoje ainda é segunda-feira!

O tempo passou, algumas semanas se foram. Com a ajuda do patrão, recebeu um empréstimo para pagar o concerto do Chevetinho 82. Ficou caro, pois o interior teve que ser todo remodelado, mas valeu a pena, porque Chevetinho igual aquele ninguém tinha. Em compensação, assumira uma dívida que, para ele, era grande. Pensou em até vender o carro e comprar uma moto, mas só de pensar em perder o Chevetinho ficava com febre. O que fazer? A única solução seria arrumar um serviço extra, que pudesse ser executado aos finais de semana. Mas qual? Atendendo com a máxima atenção aos clientes da loja, seus pensamentos voavam longe. Nisso, apareceu Patrícia, como uma miragem naquele seu deserto de azares e contratempos.

– Bom dia, Ambrósio, fiquei sabendo do que lhe aconteceu. Poxa, cara, como você é azarado.

– Fazer o quê? Mas tem as coisas boas, como você aqui, por exemplo.

– Hum, o que você quer dizer com isso?

– Nada, amiga, apenas disse que é bom te ver. Entre tantas amolações de ultimamente, te ver é sempre salutar. Veio comprar outra sandália?

– Não, apenas estava passando quando resolvi te visitar.

– Não disse que há coisas boas na vida?

– Ambrósio, Ambrósio, você está com um sorriso malicioso.

– Que é isso, Patrícia, nada a ver. O seu pai, tudo bem?

– Tudo sob controle. Já vou. Um abraço.

– Foi bom te ver. Até mais.

Na outra segunda-feira, Ambrósio procurou o Padre Alaor. Contou tudo sobre os últimos acontecimentos e perguntou por que sua vida era um pandemônio só. Padre Alaor orientou mais rezas e que frequentasse, pelo menos, as missas dos domingos, fato nunca acontecido. Na terça-feira, foi à casa de Dona Mariinha, famosa benzedeira. Esta se assustou com o ramo de arruda usado na benzeção. O ramo murchou tanto que a senhora confessou que nunca tinha visto situação igual. Sugeriu, pelo menos, umas trinta sessões para tirar o mau olhado. Na quarta-feira, participou de uma reunião na Casa da Sopa, instituição espírita de orientação kardecista. Um dos médiuns disse que havia um espírito lhe atazanando a vida, e que seria necessário algumas reuniões para tentarem descobrir quem era e porque estava encostado nele. Na quinta-feira, ficou sabendo de um babalorixá que acabara de chegar à Cidade. Foi até lá. O homem jogou os búzios e descobriu que um grande amor estava para acontecer em sua vida, e que a maré de azar o deixaria para sempre se ele fizesse uns trabalhos numa encruzilhada de estrada rural, qualquer uma delas, mas que, primordialmente, fosse próxima à antiga ponte do Rio Paranaíba. Na sexta-feira, foi à casa de Dona Presta, que, através das cartas de tarô, descobriu que tudo estava acontecendo por causa de uma promessa não cumprida quando ainda menino. Ambrósio não conseguiu lembrar que promessa foi essa. No sábado, fez a derradeira tentativa, ao procurar um xintoísta descendente de japoneses radicado na Cidade há alguns anos. O homem informou que seu problema era de falta de confiança em si mesmo, que tinha um enorme potencial e que se acreditasse mais em sua capacidade, tudo estaria resolvido. Depois de longos seis dias de trabalhos em consultas espirituais, Ambrósio resolveu descansar no sétimo dia, continuando sem nada saber sobre o porquê de tanto azar.

A vida seguiu para Ambrósio naquela base do dia sim e dia sim, algum desastre lhe acometia. Nada muito grave, mas o suficiente para deixá-lo cada vez mais nervoso. Seu comportamento mudou tanto que os amigos se preocuparam, mas não conseguiam extrair do amigo algo que pudesse decifrar o enigma da brusca transformação de Ambrósio. Até o recomendaram visitar o Seu Amarildo no intuito de se encontrar com a Patrícia. Nada feito. Ambrósio estava amuado. O rendimento na sapataria não era mais o mesmo. O patrão arrancava os cabelos quando percebia seu tão precioso gerente sendo indelicado com os clientes. Até que, num belo dia, ou não tão belo assim, Ambrósio sumiu. Literalmente sumiu. Casa da Rua Juca Mandu trancada e com um vistoso anúncio de venda. O corretor explicou que Ambrósio vendera, sem ninguém saber, a casa para a Dona Lurdinha e esta queria fazer negócio com a mesma. Ambrósio sumiu. Os amigos se perguntavam o que havia acontecido. O patrão informou que Ambrósio acertara as contas e nada dissera. Ninguém sabia o porquê da atitude de Ambrósio. Até Patrícia ficou abismada. Assim, cinco anos se passaram desde o sumiço de Ambrósio.

Em Patos de Minas, cada um se ocupou com seus afazeres e praticamente ninguém mais se lembrava do Ambrósio. Até que certo dia, um empresário patense que estivera em Manaus a negócios retornou com uma história bombástica. Contou ele aos amigos que um homem branco tinha aparecido misteriosamente numa aldeia indígena do Amazonas e por lá resolvera ficar, sendo aceito por todos, principalmente pelo pajé, que o adotou como seu auxiliar. E o que fez o pajé a gostar do homem branco foi um estranho produto que ele aprendeu a produzir com um tal de Tico Mandacarú¹: uma faca cega para cortar manteiga de leite de uma lagartixa comum na floresta amazônica que dá choque de mil volts e que ao ser consumida, o cidadão é eletrocutado de tal forma que ou ele morre na hora ou se cura de todas as doenças. Depois de praticamente não morrer ninguém e de inúmeras curas, o homem branco e o pajé se tornaram ídolos por lá. Quando o repórter lhe perguntou o nome e de onde veio ele simplesmente disse que se chamava Ambrosius Chevetino, e não quis mostrar de jeito algum a tal manteiga de leite de lagartixa. Não demorou muito, em Patos de Minas um foi comentando com o outro até que um mundaréu de gente ficou sabendo e passaram a se perguntar: seria o Ambrósio da sapataria?

Se era o Ambrósio patense não se sabe, o que se sabe é que, misteriosamente como surgiu numa aldeia indígena da Amazônia, num determinado dia ele sumiu. Poucos anos depois, veio a notícia de que um certo homem branco de nome Ambrosius Chevetino tinha desenvolvido uma usina de energia lunar movida a raios solares numa tribo indígena no Mato Grosso. E depois dessa nunca mais se teve notícia do Ambrosius Chevetino. Seria o Ambrósio da sapataria?

* Leia “Tico Mandacarú”.

* Texto: Eitel Teixeira Dannemann.

* Foto: Es.vecteezy.com, meramente ilustrativa.

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