DESASTRADO AZARADO, O − 1/4

Postado por e arquivado em CANTINHO LITERÁRIO DO EITEL.

Desastrado é um sujeito desajeitado, sem habilidade, canhestro. Quer dizer, um sujeito desajeitado é aquele, por exemplo, que ao levar um copo d’água à boca inevitavelmente vai derramar o líquido. Ambrósio era profundamente desastrado e, para complicar, uma nuvem negra de azar pairava há anos sobre sua cabeça. Estas duas pequenas particularidades estavam atazanando a vida do pobre coitado. Ele estava até pensando em se mandar de Patos de Minas na tentativa de que a mudança de ares pudesse reverter um pouquinho o triste quadro. Namorada? Na última vez em que se apaixonou, resolveu, depois de muita briga consigo mesmo, telefonar para a garota com o intuito de convidá-la para uma sessão de cinema no Riviera. Foi começar a conversar e aconteceu um corte de energia na Cidade que perdurou por longas seis horas. Se o Ambrósio estiver segurando uma fatia de pão com manteiga e ela, porventura, escapulir de sua mão – o que invariavelmente acontece – é reto e certo que ela cai com a manteiga virada para baixo. Com tampa de laranja é a mesmíssima coisa.

Apesar de tremendamente desastrado e azarado, Ambrósio era um sujeito direito e muito querido pelos amigos e conhecidos. Ele trabalhava como gerente de uma loja de calçados na Rua Major Gote e era homem de confiança do patrão. Com vinte e cinco anos desastradamente e azaradamente bem vividos, tinha um porte físico suficiente para mexer com muitos corações femininos. Mas sua falta de jeito sempre complicava as coisas. Até que ele conheceu uma linda moça que apareceu na loja para comprar um par de sandálias. Foi a mulher entrar e os olhos se cruzaram. Para ele, paixão fulminante. Para ela, apenas uma solicitação de atendimento. Como a loja era muito eficiente nesse quesito, um vendedor já estava prestes a atender a moça quando o Ambrósio se virou para o funcionário e fez um sinal claro de que ele ia atendê-la. Nisso, em sentido contrário, vinha o Fagundes carregando umas dez caixas de sapatos. O choque foi inevitável. Voaram caixas e sapatos para todo lado. O Fagundes caiu em cima do colo de uma senhora gorda que aguardava sua filha experimentar um par de botas. Ambrósio caiu com a cara nos pés da moça. Morto de vergonha, ele rapidamente se levantou batendo as mãos nas roupas para tirar o pó. Enquanto Ambrósio se desculpava com a moça, a senhora gorda se desesperou com o vendedor que caíra em cima de seu colo.

– Aaaaaaiiiiiiiiiii! Socorro, tira esse tarado de cima de mim.

– Calma, minha senhora, já estou saindo, foi sem querer.

– Que sem querer coisa nenhuma, você passou as mãos nas minhas pernas.

– Foi acidental, minha senhora.

– Eu quero falar com o gerente, eu quero falar com o Gerente, eu quero…

– Estou aqui, minha senhora, pode falar.

– Exijo um pedido de desculpas daquele tarado.

– Calma, foi um acidente. Geraldo, faça o favor de atender aquela moça. Agora, minha senhora, vamos lá para a minha sala tomar um pouco de água.

– Você também, é? Por que você está me chamando para ir à sua sala?

– Minha senhora, eu como Gerente dessa loja peço mil desculpas em nome do funcionário. A culpa foi toda minha, foi um pequeno acidente. O importante é que ninguém se machucou.

– Não me interessa se foi acidente ou não. O negócio é que aquele carinha ali passou a mão nas minhas pernas.

– Fagundes, vem cá. Por um acaso você passou a mão nas pernas dessa senhora?

– Que é isso, Ambrósio, juro por tudo quanto é mais sagrado nessa vida que foi sem querer. Quando eu ia me levantar de cima do colo dela, eu estava firmando meu corpo no chão com uma das mãos. Como o carpete está meio solto, a mão escorregou. Aí, eu levei a outra mão para me firmar e sem querer rocei a perna dela. Foi só isso, Ambrósio.

– Mesmo assim, peça desculpas.

– Mil desculpas, minha senhora, juro que foi sem querer.

– Mãe, vamos embora, deixa pra lá, foi um acidente.

– Uai, filha, não vai levar a bota?

– Não tem meu número, mãe. Vamos embora.

– Pois está muito bem, seu gerente. Em respeito à minha filha, eu vou deixar passar. Mas tem uma coisa, eu nunca mais volto aqui, porque, tirando meu finado Josias, jamais homem nenhum passou a mão nas minhas pernas. Até nunca mais. Vamos filha, aqui nunca mais compramos nada.

Após a saída da senhora gorda e sua filha, Ambrósio levou o funcionário até sua sala para acalmá-lo e incutir em sua cabeça que o acontecimento foi um mero acidente e que nada daquilo influenciaria nas relações trabalhistas entre ele e a loja. Depois, voltou para a loja e a moça já tinha saído. Raios, como sou desastrado, disse ele baixinho. Encerrado o expediente naquela quinta-feira, antes de ir para casa, Ambrósio resolveu passar na banca de revistas do Agenor para comprar alguma coisa para ler à noite. Seus olhos se alumiaram quando viram a linda mulher folheando umas publicações. Ele entrou sem tirar os olhos dela e deu um jeitinho de se aproximar.

– Oi, você por aqui?

– Olá! Estou escolhendo umas revistas. Puxa, que confusão lá na sua loja, hêim?

– Pois é, mas você foi bem atendida?

– Apesar do escândalo daquela senhora, fui muito bem atendida.

– Se importa se eu perguntar o seu nome?

– Claro que não. Patrícia.

– Prazer em conhecê-la, Patrícia. Meu nome é Ambrósio.

– Prazer, Ambrósio.

– Sabe Patrícia, olhando assim de pertinho tenho a impressão de que já te vi em algum lugar.

– Essa cantada é muito antiga.

– Não, pelo amor de Deus, jamais me passou pela cabeça uma coisa dessas.

– É o que todos dizem.

– Juro, Patrícia. Seu semblante não me é estranho.

– Será mesmo?

Já demonstrando nervosismo pela reação da mulher, pois Ambrósio além de desastrado e azarado era também um pouco tímido, e além disso não era nenhuma sumidade na arte da cantada, naquela de se afastar um pouquinho firmou a sola do sapato num papel de bala e se desequilibrou. Num gesto brusco, ele se apoiou no mostruário das revistas que pendeu para frente e voltou. Com a grande sacudida, todas as revistas vieram ao chão, passando antes pela cabeça de Patrícia. Foi um grande estrondo que assustou aos que estavam no interior da loja.

– Meu Deus do céu, como sou desastrado. Você se machucou?

– Não, só me assustei com o barulho.

– Puxa vida, me desculpe Patrícia.

– Ok, tá desculpado. Bem, pelo menos este acidente teve alguma valia.

– Uai, por quê?

– Aqui, encontrei uma revista para levar. Obrigado. Foi um prazer, ok? Até logo.

– Até logo, Patrícia. Quando precisar de calçado, sabe aonde encontrar, certo?

– Pode deixar Ambrósio, já aprendi o caminho.

Ambrósio chegou em casa na Rua Juca Mandu morto de raiva consigo mesmo. Por que ele era assim tão desastrado? Depois de duas trapalhadas num período de tempo tão curto, o que Patrícia estaria pensando a respeito dele? Aliás, Patrícia tinha que pensar alguma coisa a respeito dele? Afinal de contas, ela era apenas uma cliente que foi até a loja comprar um par de sandálias. Mas nada tirava da cabeça dele o fato de já ter visto aquela mulher em algum lugar. E ainda por cima, ela pensou que ele estava jogando uma cantada para cima dela. Ou será que não foi essa a intenção? De qualquer modo, Ambrósio tirou a mulher da cabeça e foi tratar de dar uma arrumada na casa que estava numa tremenda bagunça. Para tanto, deixou de encontrar com os amigos no Bar do Cochila. Mas seus afazeres foram interrompidos pela campainha.

– E aí, Pirola, bão?

– Meu irmão, estou precisando da sua ajuda. Puxa vida, mas que bagunça, Ambrósio. Amigo, você está precisando dar um jeito de casar para ver se essa casa fica arrumada. Que é isso, minha gente.

– Pois eu estava justamente começando a arrumá-la. Sabe de uma coisa, taí, encontrei o companheiro para me ajudar.

– Sai pra lá, jacaré, tô fora. O negócio é o seguinte: dá para você me emprestar uma de suas gravatas?

– Por um acaso é pra você?

– Não Pedro Bó, é pro Papa.

– Mas peraí, Pirola, desde quando você usa gravata?

– É para uma causa nobre.

– Causa nobre? Êpa, tem caroço nesse angu.

– Como é que é, vai emprestar a gravata ou não vai?

– E por um acaso eu recuso algum pedido do amigo? Mas Pirola, agora eu lembrei que você não tem terno.

– Não vou precisar de terno não. Acontece que o Epaminondas vai naquele festão de amanhã à noite na fazenda do Seu Amarildo. Sabe como é, ele é muito amigo dele. Como eu sou um cara de sorte, ele resolveu me levar. A gravata é só para dar charme, sacou?

– É rapaz, dizem que vai ser um festão.

– Quer que eu fale com o Epaminondas para te levar?

– Ah, sei lá. Pirola, acho que não vai pegar bem. Aliás, não vai pegar bem de jeito nenhum.

– Pôxa, Ambrósio, você cansou de brincar naquela fazenda quando seu pai trabalhava lá.

– É, mas isso foi há muitos e muitos anos, o Seu Amarildo nem deve mais se lembrar de mim. E ademais, tem muito tempo que eu não o vejo.

– Deixa de ser bobo, sô, lá você conversa com ele e diga quem é. Tenho certeza de que ele não vai se importar, pois ele gostava muito de seu pai.

– Amanhã eu te dou a resposta. Agora vem cá pra você escolher a gravata.

– Ah, essa foi boa, escolher a gravata.

– É claro! Apesar de serem apenas duas, você vai ter que escolher uma delas, não é? Ou o senhor pretende levar as duas?

– Tá difícil, amigo, é uma pior do que a outra.

– Vai caçar sapo no brejo, sô, escolhe logo a que você quer porque preciso arrumar essa bagunça.

* Texto: Eitel Teixeira Dannemann.

* Foto: Es.vecteezy.com, meramente ilustrativa.

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