ERNANI DE MORAIS LEMOS X OLIVEIROS MARQUES DE OLIVEIRA: CIZÂNIA ENTRE ADVOGADOS

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No início da década de 1940, dois advogados eram cidadãos destacados no Município de Patos sem ainda o “de Minas”: Ernani de Morais Lemos e Oliveiros Marques de Oliveira. O primeiro, Profissional Liberal; o segundo, Promotor de Justiça da Comarca. Participantes em várias atividades na comunidade, seguiam suas vidas advocatícias aparentemente dentro da normalidade. Até então, nenhuma rusga entre eles foi notícia nas páginas do jornal da época, o Folha de Patos. Até que, na edição de 27 de junho de 1943, numa matéria explosiva que ocupou as duas páginas centrais do jornal, o Dr. Ernani faz uma gravíssima acusação à Ordem dos Advogados contra seu colega Dr. Oliveiros:

O denunciante, dr. Oliveiros Marques de Oliveira, promotor de justiça da comarca, exerce as funções de seu cargo com a mais irritante das parcialidades.

Por via dessa parcialidade é que ele se tornou meu inimigo ferrenho e, Deus louvado, fazendo uma análise retrospectiva de minha vida de 11 anos como advogado na comarca, só pôde alegar uma rispidez de linguagem em um processo recente.

Neste processo, entretanto, não fui constituido advogado de ninguem.

O dr. juiz de direito, autoridade máxima da comarca, é que houve por bem nomear-me defensor de outra autoridade, então denunciada, o dr. Delegado Regional de Policia.

Por designação de uma autoridade, iniciei a defesa de outra autoridade (Cert. n. 1).

Sendo pública e notoria na cidade, a inimizade pessoal entre o dr. Promotor de Justiça e o dr. Delegado Regional de Policia, ocasionada, no dizer deste, pelas interferências constantes daquele, escrevendo cartão ora de apadrinhamento ora de perseguição a pessoas em fatos policiais, estranhei, como era natural, não se declarasse de logo suspeito o dr. Promotor de Justiça para agir contra o seu desafeto.

Estranhando isso, é que notei o “açodamento e a perfídia” com que a denuncia fôra articulada.

O respeitável acórdão que a determinação da Procuradoria Geral do Estado repetiu, era para se “apurar” ou “averiguar” a atuação do dr. Delegado Regional no processo de habeas corpus, e, no caso de positivada a culpa, ser então aplicada a lei.

Não dizia, como não podia dizer sem flagrante desrespeito ao art. 513 do c.c.p. nacional, que o dr. Delegado de Policia se tornara criminoso de um ato reconhecidamente de “prevaricação funcional”, mesmo porque essa afirmativa “a priori” redundaria em prejulgamento da causa.

E sem um documento que a instruisse nesse sentido, como determina o referido art. 513, foi dada a denuncia, revelando a pressa de quem muito fazia para quem pouco mandava.

Diante disso é que entendemos, até que uma inteligência mais lúcida e mais clarividente nos convença do contrário, que houve açodamento e malicia do R. do M. Público na articulação da denuncia.

Calássemos esta circunstância vital e visceral para o processado, que enfeixa mesmo o seu “pecado original”, e teríamos falhado abertamente, desastradamente, peremptoriamente, à missão que a propria justiça nos confiou.

Quando procurado pela parte, e a sua defesa importa em criticar a atitude reprovável de qualquer funcionário de justiça, temos o direito de recusar o serviço.

Mas quando destacados pela autoridade parar exercitar, por nomeação, um mandato de defesa, trairíamos ao nosso próprio decôro e sentimento, se relegássemos, titubeantemente, a plano secundário, elementos essenciais e ontológicos do processado.

Por isso é que, recentemente nomeado defensor do réu miserável Januário Francisco da Silva, cuja absolvição acaba de ser confirmada pelo Colendo Tribunal, verberámos com veemencia a atuação do mesmo promotor de justiça que apelara neste processo em que a legítima defesa, sôbre caracterizada, era evidente, quando, pelo mesmo motivo, deixara de recorrer em outros processos de réus que puderam constituir e pagar a seus advogados.

Sempre entendi que o advogado contratado pode aceitar o serviço com as restrições a que acceda o cliente, mas ao advogado nomeado, a consciência lhe impõe a defesa integral dentro da ética, sem restrições de carater pessoal que importam em prejuizo lamentável da própria defesa.

Assim entendendo, assim agiremos sempre, a menos que a Respeitável Ordem dos Advogados determine o contrário.

A denúncia não especifica a parte da defesa nossa que ofendeu aos melindres do denunciante.

As citações de Galdino de Siqueira, Oliveira Filho, Jorge Severino e Carrara, e de todos os artigos de lei dela constantes, podem ser a causa da ofensa, porque tornaram a denúncia “ineficaz e inépta”, no rigorismo da terminologia jurídica.

Pode tê-lo ofendido, a revelação de seus comentarios de esquina, mas a isso não pode êle fugir, porque com o processo contra o Delegado, segundo a êste contaram pessoas que ouviram, o dr. Promotor na esquina se dirigiu pessoalmente ao sr. Otávio Dias Maciel para assegurar que, perdendo o dr. Eduardo o cargo, passaria êle, promotor, a Regional e o cargo de promotor poderia ser preenchido pelo dr. João Resende, cunhado que é do interpelado Otávio.

No processo movido contra o dr. Delegado Regional, não por desrespeito a habeas corpus, mas por antecipação de seu cumprimento, uma frase existe passível de reprimenda, que, entretanto, não foi por nós articulada.

E’ a de que “Na região os criminosos DIPLOMADOS e CONDECORADOS passeiam a sua impunidade, sem que as AUTORIDADES deles se apercebam” (Cert. n. 2).

Isso sim, é uma irreverência, uma ofensa gravíssima, uma injúria a tôdas as autoridades, sem distinção, dentro da Região do Delegado processado, a qual, sôbre ofender, encerra uma perfidia e uma mentira revoltantes que atentam contra os nossos foros de civilizados e contra a atuação de tôdas as nossas autoridades.

Mas esta frase jamais poderia servir de motivo para a denúncia promotorial, porque assacada principalmente contra o Delegado, seu inimigo pessoal, e partida de um advogado cuja amizade é o “lei-motif” de aquele promotor tornar-se de um partidarismo visível e verificado por tôda gente que queira enxergar, dentro da comarca.

Demonstrando a exacerbação fictícia dessa asserção, é que finalizamos poder a malta dos diplomados e condecorados, sob uma chefia tambem fictícia, cercar e arrasar a casa do delegado, caso o habeas corpus não fosse respeitado.

Enxergar condenável irreverência e injúria minhas, ao rebater a injúria e a irreverência a tôdas as autoridades que a frase de outro advogado evidenciou, é a mais extremada e a mais exarcebada manifestação de partidarismo irrefreável.

O outro pode ofender e pode macular por grosso e atacado a tôdas as autoridades, mas a Ordem deve reprimir a linguagem do advogado que tem a ousadia de afirmar que a frase é absurda, é atentatória e encerra a mais deslavada mentira!

O denunciante a si mesmo arroga o direito de transformar os julgadores em escafandristas eméritos para o destaque da frase ou da palavra que intimamente o magoou e o feriu, no mare magnum de um processado crime, destinado a naufrágio certo, qual barca perdida sem bùssula e sem rumo.

No entanto, não têm êle, o dr. Oliveiros Marques de Oliveira, credenciais para bater à porta dêsse Respeitável Sodalicio.

Pouco depois de sua posse no cargo de promotor, surgiu a denúncia que o dr. Delegado remeteu à Procuradoria Geral, na qual se dizia ter êle secretariado uma junta que extorquiu certa importância dos srs. Humberto de Padua Botelho e Oscar Gomes de Deus, relativamente a porcentagens de diamantes encontrados.

Depois disso, começou êle a distribuir cartas e cartões com o sinete da promotoria, tornando esta promotoria de justiça em cobradora de “Casas comerciais” e acertadora de “negòcios particulares”.

Veio depois o processo-crime contra o fazendeiro Antônio Piau, ocasião em que o Promotor pediu 50 contos de réis para deixar o cargo e garantir-lhe a absolvição, resultando da negativa do réu a mais forte das perseguições, como Piau direta e pessoalmente se queixara à Procuradoria Geral, e como consta de um oficio do então Comandante do Destacamento local, junto aos autos do mesmo Piau, no Cartório Criminal do Tribunal de Apelação. Dentro do mesmo processo Piau, o dr. Promotor de Justiça escreveu um cartão à testemunha de defesa Rosa Corrêa (doc. n. 3), determinando que esta testemunha, antes de depor em sumário, comparecesse a seu Gabinete para “orientà-la no processado”.

E como a testemunha não o atendesse e dissesse que na hora do crime, em outro local, em sua casa, vendera um pedaço de fumo ao réu Júlio, cuja confissão da polícia assim era inverossímil, o dr. promotor, ato continuo, denunciou a testemunha ao Fisco Federal (doc. n. 3) como atacadista de fumo que sonegava imposto, apurando, posteriormente, o mesmo Coletor a inexatidão da denúncia, pelo que deixou de efetuar a cobrança.

No processo de Sebastião Rodrigues Borges (doc. n. 4), em que fôra advogado contratado o dr. José Olimpio Borges, o senhor promotor, depois de no dia anterior ter feito a mais carregada das acusações contra um réu defendido por mim que agira em legítima defesa comprovada, pretextou uma doença momentânea para deixar de acusar o réu, deixando ainda de apelar da absolvição, apesar de no plenàrio não haver testemunhas de defesa, depois de ter a pronúncia verificado a caracterização da tentativa, porque o réu, desfechando dois tiros, matara o cavalo atrás do qual a vitima conseguiu esconder-se.

No recente processo de Francisco Ferreira Coelho e outros, êle próprio interpelou no Forum o réu confitente Joaquim Quintino (doc. n. 5) e como êste lhe dissesse que repetira uma confissão ditada pela polícia, por medo, o dr. Promotor, ao envez de tomar por termo essa declaração expontânea o que êle mesmo provocara, convidou o réu para processar a polícia e como êste, certamente por medo maior, a isso se negasse, continuou a acusá-lo como verdadeiro autor da morte.

Quando lhe convém, entrega-se êle, pois, aos desejos e vontades das partes.

Neste mesmo processado em que levíssimos são os indìcios, processos em que os demais promotores deixam a apelação por conta da parte assistente − neste processo em que havia assistente (doc. n. 5), o dr. promotor de justiça, demonstrando querer segurar os réus na cadeia, dissera a um parente dos mesmos réus que apelara tão só a pedido da mesma assistente.

Assim processando, evidenciou que seus atos não são de aplicação de justiça, mas positivamente ao sabor de solicitações particulares.

Há pouco, em um processo de contravenção por uso de arma proibida e que devia ser mesmo arquivado por causa da exceção que o caracterizou, mas por êste motivo tão só, opinou êle, numa solicitude exagerada, pela devolução da arma ao autuado, por não ter êste costume de exibí-la, embora disso não houvesse prova ainda nos autos (doc. n. 6) que apenas se iniciavam. Parecer este que levou a Polícia a restituir armas tomadas em Capelinha do Chumbo (doc. n. 7), lugar onde a repetição de crimes é constante, e onde se deu agora um crime em que dizem que tres são as vìtimas.

Não fosse esse modo de proceder do dr. Promotor, a polícia não estaria inibida de tomar as armas ocasionadoras de crimes, mas acauteladas, notando-se que esse parecer veio à lume justamente por ocasião em que um decreto federal proibia o uso de armas até para os que tinham licença da polìcia. No documento n. 8, o promotor acena a um criador de porcos soltos, consoante o seu próprios dizeres, com o crime do art. 164 do código penal, fingindo desconhecer diante do destinatário que é homem rústico e roceiro, que para a caracterização dêsse crime é mister a comprovação de dolo especial e específico, que não pode resultar de um ato ordinário de criação de porcos, mas verdadeiramente esquecido de que o nosso código prevê na sua escala criminal, como acentua o Ministro Francisco Campos, os falsos avisos de crimes ou contravenção.

Não se pode calcular a repercussão de um falso aviso, feito por uma autoridade, na mentalidade medrosa do nosso caboclo.

Inùmeros são os desmandos dessa autoridade para registro continuado e às vezes pitoresco.

Não podemos calar, todavia, o constante da certidão inclusa (doc. n. 9), em que o promotor, por carta, “convida o sr. José Amaro Teixeira para vir a seu Gabinete para assunto de justiça, e pespegar-lhe, dentro do aludido Gabinete, a citação pessoal para uma demanda na Comarca de Belo Horizonte.

Com procuração, então, de José Amaro Teixeira, fizemos o seguinte protesto, nos autos, ao Exmo. Sr. Juiz da 2.ª Vara da Capital:

Item 4 da Contestação:

“Que a ausência momentânea e transitória do réu, não encontrado por ocasião da primeira citação, não podia levar o dr. Oliveiros Marques de Oliveira, promotor de justiça da comarca de Patos, ao ato capcioso e insidioso, inédito nos anais da comarca, de, como promotor, chamá-lo para assunto de justiça  e, em pleno Gabinete, mandar citá-lo para uma ação  particular em que interesse algum existe para a Promotoria Pública;

5:) Que a carta inclusa do dr. Promotor de Justiça, atraindo-o manhosamente ao redil de uma citação inesperada, anódina e surpreendente, ficará nestes autos como documentação de um abuso inexprimível de poder, partido de autoridade que devia ter mais consciencia e responsabilidade no cargo que exerce;

6:) Que chamado pela Promotoria Publica, o contestante, ao atendê-la, recebera a citação e a informação de que o chamado era tão somente para aquele ato e para aquele efeito;

7: Que advogados, os mais desabonados, ao que consta, jamais fizeram façanha tão alarmante de, com engodos, atrair a seu escritório o adversário de seu constituinte para pespegar-lhes a citação inicial da causa;

8:) Que o contestante sem reclamar contra a citação que teria de realizar-se inevitavelmente, protesta veementemente contra o ato da promotoria publica, cuja função é promover justiça, e não usar do cargo para uma advocacia sem precedentes na comarca de sua residencia;

9: Que êsse protesto fica consignado nestes autos contra um ato excepcional e incompreensível do promotor de justiça de Patos, porque sabemos trazido o fato ao conhecimento do eminente juiz, dr. Newton Ribeiro da Luz, cujos atos encarnam sempre a dignidade sem mácula da Magistratura de Minas Gerais”.

Não digo como promotor de justiça, mas se como advogado tivéssemos que arrastar a conhecida simplicidade e boa fé de José Amaro Teixeira a nosso escritório “para assunto de justiça” e, aproveitando disso, dele pespegássemos uma citação para uma demanda anódina em Belo Horizonte − antes que a Ordem nos repreendesse ou nos expulsasse, seríamos o primeiro a rasgar o nosso diploma de bacharel, porque anteriormente havíamos sepultado o nosso carater, a nossa honra, a nossa dignidade pessoal.

Esta é a fibratura moral do homem e da autoridade, que nos denunciou em estilo emprestado, sem ao menos positivar a denúncia.

A Ordem dos Advogados, longe de receptáculo da perseguição de autoridades desviadas a advogados, tem que ser o amparo e o sustentáculo de pequenos advogados disseminados pelo país, quando visados pelo capricho e pela injustiça.

Assim sendo, se andei errado que me apliquem sanções; mas se o erro é da autoridade denunciante, essa Ordem tem o dever indeclinável de, passando o processado à Procuradoria Geral de Estado, representar contra o promotor que além de caprichar na comarca contra o advogado, ainda pretende, com o prestígio do cargo, infundadamente alijá-lo da mesma Ordem.

Nesse transe de minha vida profissional, entendi dever juntar dois atestados apenas. O do dr. Antônio Dias Maciel, que foi chefe do escritório onde iniciei a advocacia, que foi Diretor-fundador do Estabelecimento onde sou obscuro professor, e que foi Presidente da Câmara de Patos, com a minha colaboração como Vereador.

E o do dr. Natal Dias Campos, verdadeiro promotor  com quem sempre trabalhei na comarca e que, para maior glorificação da magistratura mineira, ascendeu ao alto cargo de juiz de direito da comarca de Frutal.

PATOS, 18 – VI – 943.

Ernani de Morais Lemos.

* Fonte: Texto publicado com o título “Minha defesa na Ordem dos Advogados” na edição de 27 de junho de 1943 do jornal Folha de Patos, do arquivo da Fundação Casa da Cultura do Milho, via Marialda Coury.

* Edição do texto: Eitel Teixeira Dannemann.

* Fotos: Trechos do artigo original.

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