Muito se tem escripto sobre este magno assumpto depois que ao Governo Exm.º Sr. Dr. João Pinheiro, approuve reformar este ramo de administração. Muito se tem discutido, não só sobre o programma novo, como tambem sobre outras medidas governamentaes, tendentes a libertar o ensino publico de quaesquer liames que o prendam a qualquer religião, máxime á dominante, embora não official, no nosso Paiz.
Conhecendo a nossa pequenez, temos deixado de tomar parte no concerto geral; temos porem attenta e accuradamente todos os commentarios, pró e contra, que nos tem chegado ás mãos, todos os artigos louvamingos, todas as atrocidades de opposicionistas á outrance, todos os conceitos sensatos e mornos, dos escriptores moderados e neutros em materia politica.
E após tamanha leitura, temos sentido irresistivel vontade de nos alistarmos em algum desses grupos, tomando parte na discussão de um assumpto que é de interesse geral e palpitante.
O novo programma de ensino, elaborado accuradamente é uma prova bella e evidente de que o actual Secretario do Interior está animado de encendrado amor pelo nosso Estado e procura melhorar-lhe a situação futura pelo unico meio apto, á alcançar esse fim; a diffusão da instrucção, máxime a primaria.
E comtudo o programma é INEXEQUIVEL.
Para que uma medida qualquer possa ser considerada exequivel, é preciso que ella possa ser posta immediatamente em pratica, em todos os pontos do territorio sujeito ao Governo que á ordene.
Está nestas condições o novo programma de ensino? Vejamos.
Grande parte dos professores primarios, e alguns até normalistas, desconhecem por completo muitas das disciplinas obrigatorias do novo programma, e é claro que quem são sabe não pode ensinar.
Obrigar individuos ja diplomados a fazer novo exame, para exercer a profissão, é attentar claramente contra um direito adquirido, e será pois uma medida absolutista, e vexatoria e anti-constitucional.
Deixando de parte outras materias, ha duas que quasi todos os professores desconhecem por completo: canto coral e escripta pelo systhema americano, (innovação yankee) que nunca se ensinou em nenhuma escola normal.
Um pobre mestre escola, que foi pela natureza dotado de uma voz muito muito approximada ao ruído produzido por uma taquara rachada, quando nella se sopra, e ensinar canto a quarenta e mais alumnos, deve ser cousa curiosa! O único resultado pratico será tirar a um ou outro alumno que tenha vocação para o canto, toda a vontade de continuar a cantar, e todo o gosto pela harmonia.
Quanto a calligraphia, peior ainda é; alguns professores escrevem bem o cursivo inglez, que lhes foi ensinado com todas as regras, e estão pois aptos para o ensino dessa materia; outros mal sabem escrever o cursivo que aprenderam. Os primeiros deverão deixar de ensinar o que sabem para ensinar o que veem agora pela primeira vez; e os ultimos que não sabem o que aprenderam, poderão ensinar o que nunca viram?
Só por isto, é inexequível o programma; mas ainda ha mais.
As escolas rurais, são geralmente frequentadas, máxime no sertão, por meninos que ali vão para, no menor espaço possivel de tempo, apprender a ler uma carta, escrever outra dita, e fazer as quatro contas. Os que sabem fazer seis ou oito contas são considerados lettrados e portanto quasi inaptos para o serviço agricola.
Ora, si o professor perder tempo com physica, chimica, zoologia, etc., a maioria dos alumnos que quasi nunca fica na escola mais de um anno, voltará para casa mais ignorante do que quando de lá sahira.
Para tornar o programma exequivel neste ponto seria preciso que o Governo obrigasse os pais de familia a manter os filhos na escola, até completarem o curso primario, o que seria outra medida inexequível.
Concluimos pois que o novo programma de ensino, podendo ser posto em pratica em muitos pontos do Estado, não passará de chimerico em muitos outros, e é isto que o tornará inexequível, embora pese aos louvaminheiros governamentaes.
“A escola é um edificio publico, e, portanto, não só não pode ter symbolo algum de religião, catholica ou acatholica, como tambem não pode ser local para funccionar nenhum culto”. Gazeta de Uberaba n.º 3020.
Nada mais natural que a prohibição feita aos professores publicos de leccionarem religião dentro de suas escolas, quer ellas funccionarem em proprio nacional, quer nas casas dos ditos professores.
A sala das aulas é sempre edificio publico, com a differença porem que, funccionando a escola em casa do Professor, a referida sala começa a ser edificio publico ás 10 horas da manhã, e deixa de o ser ás 2 da tarde, sendo, fóra dessas horas, um aposento do domicilio do professor, que para a sua acquisição empregou dinheiro ou delle paga aluguel, podendo pois utilisal-o como lhe convier.
Pode o Governo prohibir ao professor que, fora das horas de aula, jogue lasquenet em a sala da casa de sua residencia, sob o pretexto de que essa sala serve para escola? Cremos que não!
E si não pode prohibir o jogo, poderá impedir o ensino da religião?
A nosso ver, o professor pode utilisar qualquer dos aposentos do seu domicilio a seu talante, cabendo ao Governo o direito de procural-o, si praticar actos attentatórios da Constituição e leis do paiz, ou contrarios a moram e bem publico.
Procedimento contrario por parte do Governo, só na Russia, ou na Turquia, com licença dos terroristas.
Interpretamos pois a ordem do Governo d’este modo:
É vedado aos professores publicos o ensino de qualquer religião nas horas destinadas aos trabalhos escolares; é igualmente vedado esse ensino, fora dessas horas, nas salas escolares, quando elas sejam proprio estadoal.
Outra interpretação traria o absurdo da coacção da liberdade individual para garantia da liberdade de consciencia.
E para terminar lembramos duas palavras de conhecido litterato, sobre este assumpto, publicadas em um dos jornaes de Uberaba: “Tendo nós bem pronunciada, a bossa do abuso, não tardaria que a aula extra seria aula commum, voltando Minas ao systhema de outr’ora em que os alumnos papagueavam, lindamente, sobre cathecismo, mas embatucavam desde que arguidos sobre outras disciplinas”.
E’ bôa! Impedir o exercicio de um acto licito, só porque é possivel que o exercente abuse desse direito? Julgamos o principio tam contrario á bôa razão, que não o commentamos, certos de que o illustrado autor d’essas linhas não as escreveu com a intenção que ellas parecem ter.
Catão Netto
St. Rita¹ − Outubro − 1907.
* 1: O distrito de Santa Rita pertenceu a Patos sem ainda o “de Minas” até 17 de dezembro de 1938, quando, através do Decreto-Lei Estadual n.º 148, desmembrou-se para constituir o novo município de Presidente Olegário.
* Fonte: Texto publicado com o título “Instrucção Publica” na edição de 20 de outubro de 1907 do jornal O Trabalho, do arquivo da Hemeroteca Digital do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, via Altamir Fernandes.
* Foto: Início do primeiro parágrafo do texto original.