Eles vieram e começaram a vasculhar o meu muro. Homens sabe-se lá vindos de onde subiram em meu muro. Contei quatro a zanzarem por ele, para lá e para cá, conversando sem se preocuparem com a minha presença. Depois de tanto tempo sozinha, totalmente abandonada, lá estavam quatro homens em cima do meu muro. Desceram e caminharam pelo meu pátio antes abarrotado de ônibus, adentrando ao prédio que já teve uma enorme movimentação comercial¹. De lá saíram com uma placa de metal, madeiras e ferramentas. Foi então que percebi a gravidade da situação. O que estava gravado na fatídica placa dilacerou os meus sentimentos de imóvel que um dia foi útil a inúmeras almas. Quantos dias sozinha? Meses, anos, sei lá. Quantos anos servi? E agora, no antro da solidão, surgem quatro homens e afixam no meu muro essa maldita placa, essa execrável placa para manifestar aos meus arqueados e sofridos tijolos a marca da indiferença, da ingratidão, pois a insensível placa, tetricamente, representa o meu fim.
Fui uma privilegiada, sim. Afinal, viver tantos anos como vivi ao lado da marcenaria do Seu Clóvis² é, acima de tudo, uma honraria. E o melhor de tudo é que tive o Seu Clóvis dentro do meu ventre, várias, inúmeras vezes. Triste o dia em que ele se foi. Triste presenciar aquele imóvel tão solitário, como eu. Agora, a placa, a maldita placa, a me avisar diariamente que não muito distante no tempo deixarei de existir para ceder lugar ao progresso, assim como vai acontecer com a minha colega que amparou o Seu Clóvis³. O amargor da placa me consome como água mole pingando ininterruptamente em pedra dura. Assim, vou mirrando a cada segundo, numa angústia de fazer o assassino mais cruel sentir pena de sua vítima. Soam em minhas estruturas as marretadas da destruição, o pó da demolição, o ronco dos motores levando os meus entulhos. Apesar de fazer parte da História de Patos de Minas, vai chegar o dia em que ninguém mais me verá. E deixarei saudade!
* 1: Esse imóvel, na esquina da Avenida Brasil com Rua Dona Luzia, foi sede da Empresa São Cristóvão.
* 2: Leia “Clóvis Simões Cunha: Guaratinga, 30 de Janeiro de 1944”.
* 3: Leia “Deixarei Saudade − 31”.
* Texto e foto (02/12/2018): Eitel Teixeira Dannemann.