Parece que foi ontem mesmo que você me contava, emocionado, que meu pai lhe pedira para tirar uma prova bem legível da primeira página composta em nossa revista de n.º 1, para que ele pudesse ler, já que ele, o fundador da Debulha, reconhecendo seu estado de saúde, lhe dissera que achava muito difícil ver a revista circulando. A página de número 42, trazia o artigo “Aborto Legalizado!” de autoria do Ver. Oadi Salum.
Lembro-me ainda de sua reação de desconsolo, quando terminamos de distribuir o n.º 1, e você, junto com os colegas da oficina, havia bebido “umas e outras” para comemorar e num desabafo, disse que não lhe demos a mínima pelo trabalho duro e penoso para editar aquele histórico número de nossa revista.
Lembro-me também das noites que viramos juntos, para cumprir o compromisso de fazer a Debulha circular na data certa.
É claro que me recordo de suas falhas e erros, mas as lembranças agradáveis superaram em muito as pequenas notas destoantes de nosso relacionamento profissional ou nos longos anos de convivência amiga, dentro e fora das paredes da Gráfica Ebenézer.
Trabalhamos juntos na construção de planos, alguns não executados. Trabalhamos juntos em espetáculos teatrais, como em “Eu Chovo, Tu Choves, Ele Chove…” e “A Grande Estiagem”. Nos dois você era o responsável pela sonoplastia.
Folheando hoje as revistas que editamos juntos, e foram sessenta, pude comprovar que o que vai dizer nosso amigo comum, Carlos Alberto Donâncio Rodrigues, o Xaulim, é bem verdade. No n.º 1 de “A Debulha”, você, na época escrevendo junto com a Inês e o Marquinho, falava de Luiz Gonzaga Jr., de Simone, do Grupo Canto-Chão e entrevistava o músico Anísio Dias. No n.º 2, além de uma matéria sobre Baden Powell, a entrevista foi com o Grupo “Canto-Chão”. Ainda encontramos em todas as revistas notas sobre todos os espetáculos artísticos que se realizavam em Patos, dicas dos melhores discos e livros, além de entrevistas com nossos artistas, como Dalla, Guiga, Maria Célia, D.ª Maria da Graça, e tantos outros. A ninguém você negava uma crônica. Sua coluna sempre tinha espaço para todos e para tudo. Realmente você havia entendido o propósito pelo qual criamos “A Debulha”. Como ninguém você soube viver o lema da revista: “uma revista aberta à cultura em todos os seus aspectos”.
SEM FRONTEIRAS, este era o seu cantinho e aqui você se realizava, ao ponto de dizer que só trabalhava como tipógrafo, por causa da Debulha. Nestas páginas, que sempre teve quantas quisesse, você era rei e mendigo, artista e operário. Você plantava, você regava e cuidava com carinho. Também você colhia: flores e espinhos… Algumas vezes chegou a ser mal interpretado e criticado, mas inúmeras foram as oportunidades em que recebeu cumprimentos e agradecimentos. Infelizmente este clichê está sendo usado hoje, pela última vez e é também lembrando dele que fala o Xaulim:
POR UM AMIGO QUE FICOU…
“Não viemos por teu pranto
nem viemos prá chorar
viemos ao teu encontro
e estamos no teu altar…”
(Geraldo Vandré)
Muitos homens, talvez a maior parte, depois de cumprir a sentença que é a vida, morrem sem ter sequer nascido. Não apenas os privados do alimento para o corpo, mas também aqueles privados dos estímulos e das condições para a vida espiritual e emocional que é o que distingue a espécie humana das demais.
Algumas pessoas pensam sentir e revelar, é uma deformação, é um desvio de conduta. Acredita-se que a principal virtude da vida é esconder os sentimentos. Macho mesmo é o que não chora, o que não ama, o que não sofre.
E amigo… quanto sonho… quanto sonho… quanto sonho… Quantos tinham em você um parceiro sempre disposto a dividir o sonho, a acreditar que a vida importa muito mais pelo sentido de doação e utilidade que falemos dela, que nos coloca na sua dimensão mais ampla.
“Sem Fronteiras” era ao mesmo tempo uma tribuna e uma trincheira daqueles que são os renovadores de emoções: os artistas.
Queria dizer muito mais, mas paro por aqui, porque não há quem consiga escrever chorando.
Nós do movimento cultural, principalmente, lhe devemos muito. Mas essa dívida só pode ser resgatada com a moeda da lealdade, da sinceridade. Essa moeda ninguém tem no bolso, mas alguns a têm no coração.
Prá você Vicente, que ficou no meu coração.
Belo Horizonte, 28 de junho de 1983
Carlos Alberto Donâncio Rodrigues.
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Se não bastasse seu trabalho nas páginas de “Sem Fronteiras”, você ainda idealizou a seção “Novos Poetas”, Poetas Novos”. Olhando as sessenta revistas que você diagramou, encontrei poemas de Aurélio Pinheiro, Carlos Magno Santana, Esther Lima, Esther Maciel, Eugênio Pacelli (Civuca), João Vicente, José Clarete e Prekexé ou Helder Vanderlei. E foi ele que nos enviou o poema “Flor Partida (pro Vicente que tanto fêz por todos nós):
FLOR PARTIDA
Das partidas
onde o seco vento afagou
Um grito em desatino
Flor árida
carne atribulada
pensamentos em desencanto
um canto,
que poucos ouviram
Eu vi…!
Sente aquele noite fria
onde a vida se flui
na insensatez
de novas estrelas perdidas?
Morte
que se compraz
na dor
daqueles que um dia te amaram
e que te amarão sempre
Helder Wanderley – Prekexé
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Dizer o que, agora?! Talvez… e como queria que não tivesse ainda chegado o hora! Dizer que no dia que você se sentiu menosprezado os julgou que seu trabalho foi desconsiderado por nós, aos distribuirmos para os assinantes e nas bancas o n.º 1 de A DEBULHA, estávamos juntos, fincando um marco indelével na história do jornalismo de Patos de Minas e Região. O que naquele dia você não entendeu e que talvez pelo cansaço, pela dor da perda recente do meu pai eu não tenha lhe dito, é que estávamos lado a lado, de ombros emparelhados, suportando a mesma carga, mas também colhendo o mesmo fruto! Era o nosso sonho que se realizava. Ele era seu também Vicentinho!…
Muito obrigado, que Deus o tenha.
João Marcos Pacheco
Patos de Minas, 28 de junho de 1983.
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Ele foi nosso aluno. Ele foi nosso amigo. Ele foi nosso companheiro de trabalho.
Ontem, quando eu já escrevia esta coluna, falava sobre as comemorações de seu aniversário, ocorrido dia 19 e, de sua alegria em receber os amigos naquela data. Hoje, estas linhas foram cortadas, e eu tenho que falar da tristeza que você nos deixou, viajando tranquilamente para o Eterno, assim como você planejou, e ouvindo a voz de sua mãe dizer: “como é possível um coração tão pequeno, suportar tamanha dor”.
Vicente de Paulo (o Vicentinho da Gráfica Ebenézer), quis descansar desta caminhada terrena aos 25 anos de idade, quando toda a juventude tenta para viver ele buscou a morte, deixando uma saudade imensa nos corações dos familiares e amigos.
Cessou o riso descontraído. Cessou o entusiasmo jovem de uma pessoa que parecia amar muito a vida. Descanse em paz, Vicente.
Terezinha de Deus Fonseca e Lourdes Fonseca, na coluna O Mirador.
NOTA: Vicente de Paulo Rodrigues nasceu em 19 de junho de 1958 e faleceu em 28 de junho de 1983.
* Fonte: Edição n.º 71 da revista A Debulha de 30 de junho de 1983, do arquivo do Laboratório de História do Unipam.