Tinha eu de 11 a 12 anos quando despertou em mim o desejo de trabalhar para os menos favorecidos pela sorte, principalmente pelas crianças abandonadas e idosos carentes. Naquela época, áureos tempos, estudava no Colégio Nossa Senhora das Graças, dirigido pelas Irmãs Sacramentinas de Nossa Senhora, congregação fundada pelo Padre Júlio Maria de Lombard, grande missionário belga.
Em 1944, mais ou menos, minha professora de religião, Irmã Alice, deu para suas alunas da 1.ª série, um trabalho de redação com o título “Que faria se fosse rica”? Eu respondi, entre tantas coisas que, se eu fosse rica utilizaria meu dinheiro construindo um orfanato e a ele daria o nome de “Jesus Crucificado” como símbolo de sofrimento de uma criança abandonada. Minha professora depois de ler minha redação, devolveu-a a mim e num canto do meu caderno deixou gravadas estas palavras: “Cuidado, Edith, Nosso Senhor irá exigir muito de você. Por que será”? Aquilo fixou-se dentro de mim. Que significado teriam aquelas palavras? Perguntei a ela o que desejava me dizer. Ela apenas me respondeu: “Um dia você compreenderá”.
O tempo foi passando… passando… fui crescendo… muita coisa aconteceu em minha vida. Mas sempre me vinha aquele desejo de amparar criancinhas sofredoras. Ainda estudava (estudei no Colégio Nossa Senhora das Graças até me formar) quando eu e minha prima Helena fizemos algumas tentativas para a realização deste sonho. Chegamos a olhar uma casa. Depois olhamos para nossos bolsos. Nem um níquel para pagarmos o aluguel. Éramos pobres. Foi embora a nossa vontade. Mas o tempo não matou o ideal. O tempo foi correndo e eu correndo atrás dele.
Até aos 24 anos de idade, Deus me deixou uma interrogação: “E o meu ideal, e o meu sonho de criança não se realizaria?”. Nesta idade casei-me com Ângelo Borges de Melo, meu primeiro namorado, ainda na adolescência. Então, já casada, Deus se manifestou em mim, acendendo a chama do desejo de ser útil, aparecendo a oportunidade sempre esperada. Morava em Patos de Minas uma senhora chamada Lia Brochado que, como eu, tinha vontade de ajudar os pobres. Convidou Maria da Penha Castro Olivieri e a mim para construirmos umas casas para os desabrigados. Consultei Ângelo, ele concordou e eu aceitei imediatamente a ideia. Havia chegado a hora de ser realizado “um sonho de criança?”. Sim. Chegou a minha hora. Nosso primeiro ato foi dar um nome ao movimento. Ele veio: Fundação Social Sagrados Corações.
Tudo de bom nesse mundo encontra dificuldades até se tornar, mediante a luta e perseverança, uma realidade. A Fundação Social Sagrados Corações também teve as suas dificuldades. A primeira dificuldade foi ser reconhecida pelo nosso povo como um movimento puramente social e caritativo, isento de qualquer cor política. A segunda, foi a desconfiança de nossa gente que achou impossível alcançarmos algumas vitórias nesse campo de trabalho que, apesar de árduo, escolhemos espontaneamente. Mas tudo foi enfrentado e, graças a Deus, chegou a hora e não tardou muito, em que todos compreenderam e viram a necessidade de um trabalho social junto ao nosso pobre.
A esta altura, D. Lia Brochado deixava o movimento em prol das construções de casas e nós, então, optamos para a construção de um Lactário. O primeiro de Patos de Minas. Nossa entidade já estava registrada no Cartório das Pessoas Jurídicas e no Departamento Nacional da Criança. O Senhor Genésio Garcia Roza, Prefeito naquela época, doou o terreno para a nossa primeira realização: O “Lactário”. Sua direção ficou sob a responsabilidade do Doutor Benedito Alves e da Dietista Aurea de Bessa. Mais tarde vendemos o prédio para a L.B.A. por Cr$670.000,00. A L.B.A., por sua vez, fez convênio com a Prefeitura e esta, tempos depois, deixou morrer aquela obra, transformando-a no Posto de Saúde “Eufrásio Rodrigues”.
Com o resultado financeiro da venda do Lactário, começamos a pensar na construção da Casa das Meninas. Até que enfim havia chegado a minha hora de ver um sonho de criança ser realizado. O meu sonho. A Fundação já era enriquecida pelos seguintes membros: Coraci Affonso de Castro Alves, Clélia Borges de Melo, Júlia Brandão de Morais, Hermelinda Artiaga de Souza, Maria de Lourdes Borges, Waldomira Rodrigues Ribeiro, Alcina Pereira da Fonseca, Ivone Steves, Natalícia Rodrigues Borges, Camila Rezende Viana, Conceição Nepomuceno, Dalcy Artiaga, Estevina Nepomuceno Teixeira, Maria Olímpia Queiroz de Melo, Terezinha Queiroz Garcia, Maria Anunciação Queiroz Garcia, Zilica Couto, Celcídia Alves Tibúrcio Campos, Olga Borges de Castro, Margarethe Oliveira, Maria Aparecida Rocha Ribeiro, Valdete Nascimento, Elza Medeiros de Queiroz, Abadia Montes, Maris de Lourdes Queiroz Pereira, Neuza Rosa Pinheiro, Maria da Conceição Maciel, Dália de Melo Pereira, Nilza Batista Neves, Terezinha Santos, Pulqueria Santos, Diva Peres, Glória Porto Nunes, Célida Bahia, Maria da Glória N. Teixeira, Zilá Elias Leite, D. Djalmira (um lapso de memória quanto seu sobrenome), e esta sonhadora Edith Gomes de Deus Melo.
Em janeiro de 1960, coube a mim a liderança do movimento. Abri uma coluna no “Jornal dos Municípios” de propriedade do Senhor José Maria Vaz Borges, que nos cedeu um bom espaço. Comecei a escrever. A mostrar ao povo a necessidade da construção da Casa das Meninas. Depois abri uma coluna na “Folha Diocesana” denominada “Cantinho da Fundação Social Sagrados Corações” em março de 1960, também sob minha responsabilidade. Continuávamos trabalhando com bravura. Os donativos foram chegando. Continuava escrevendo, pedindo.
Já em 3 de abril de 1960 a entidade tornou-se “Fundação Social Sagrados Corações, Associação de Proteção à Maternidade, Infância e Velhice de Patos de Minas”. Mais tarde desapareceu a Fundação e ficou só a Associação.
Eu continuava pregando através dos jornais: “A prática da caridade é dever de todos os homens. A caridade não obriga a dar TUDO o que possui. Mas, tem o direito de reclamar UMA PARTE do que possui”. Eu procurava sacudir, alertar, acordar o povo. Apelamos para o povo de outras cidades: São Gonçalo do Abaeté, João Pinheiro, Araxá, Lagoa Formosa, Carmo do Paranaíba e íamos aumentando nosso capital, através de toda espécie de trabalho.
Agora, onde seria construída a Casa das Meninas? Surgiram dois doadores: um terreno com 20.000 m² nas proximidades do “Curral das Taboas”, de propriedade do senhor Wirmondes Afonso de Castro, e um quarteirão no Bairro Boa Vista, de propriedade do senhor Genésio Garcia Roza. Devido este último estar no alto de uma colina, com ampla vista da cidade, ele foi o escolhido. Após a escritura de doação ele foi todo cercado com cipreste e arame farpado. Começamos a promover eventos para angariar recursos a fim de dar início à construção. Fizemos jantares, festa junina, teatro, renda de filmes, bailes com eleição da Rainha da Primavera, etc.
Em julho de 1960 lancei a ideia de editar uma revista (Alvorada Patense), com a colaboração de Antônio de Oliveira Mello. Começamos a Campanha das Assinaturas: Cr$ 200,00 cada uma. Em 25 de dezembro de 1960 foi lançada e começamos a construção da Casa das Meninas, com o preço do alicerce, numa área de 2.000 m², de Cr$ 1.100.000,00. O serviço foi empreitado pelo senhor João Batista Santos. Coube a mim acompanhar toda a obra. Durante todo este tempo mandei imprimir uma série de cartazes ilustrados por crianças desamparadas com dizeres como estes: “Mais uma criança que deposita em você a esperança de uma vida melhor. Faça algo por ela, ajudando na construção da Casa das Meninas”. “Dentro do grande mistério que é o sofrimento, há um pequeno mistério, mais profundo, mais mistério. É o sofrimento do inocente. De quem não tem culpa de nada”. Estes cartazes sensibilizavam o povo que começou a nos ajudar cada dia mais.
Em 1961, estava na presidência, segui de perto a abertura das valetas. Foi uma emoção muito grande para mim. Ângelo, meu esposo, e eu subimos mais de 1.000 vezes aquele morro durante 1.825 dias. Minhas companheiras continuavam trabalhando sem descanso, bravamente, dia e noite. Eu continuava nos jornais com notícia do movimento e da construção. Como entendia de contabilidade tínhamos escrita regular, e publicava mensalmente os balancetes. Naquele ano promovemos o “Baile com Desfile de Calçados”, “Baile de Inauguração da Boate Menina Moça”, “Apresentação do Corpo de Ballet Klauss Viana”, “Campanha dos 5.000 Tijolos”.
Dia 30 de abril de 1961, eu anunciava eufórica: “Estamos levantando as paredes. É verdade. As paredes internas sobem do chão, graças à bondade do povo”. Continuávamos com as promoções de festas: “Baile dos Estudantes”, “Baile da Suéter”, “As dez mais Elegantes de Patos de Minas”, “Noite Havaiana”. Fizemos a Campanha das Telhas e o senhor Altino Caixeta doou o madeiramento da casa.
Em 1962, adquirimos um quarteirão de terras anexo à Casa das Meninas. Começamos a plantar mandioca, que era vendida no Mercado Municipal. Começamos um pomar com 200 pés de frutas. À medida que eram produzidas as frutas, também eram levadas ao mercado. Mais uma renda para a construção.
Em 1.º de abril de 1962 a Associação Rural, através do seu Presidente, Eurípedes Pacheco (Pai Vaca), cedeu-nos os dois tradicionais bailes da IV Festa do Milho, cuja renda seria em prol da nossa construção. Começamos também a participar da Festa com a “Eleição da Rainha-Mirim do Milho”. Era a miniatura do carro alegórico, construído sob a orientação do senhor Vicente Nepomuceno e a candidata tinha o mesmo traje da Rainha da Festa.
Em 1962 fizemos mais uma Campanha do Tijolo e a casa ia crescendo. “O Diário”, de Belo Horizonte, publica um comentário sob o título: “Fundação Sagrados Corações dinamiza Assistência Social em Patos de Minas”. Nosso movimento crescia. Algumas companheiras saíram da Fundação. O trabalho era mesmo exaustivo.
Em agosto de 1962, Dr. Sebastião Paes de Almeida, que nos visitou, fez a doação de todos os vidros empregados na construção, no valor de Cr$ 750.000,00. Dia a dia vejo meu sonho se realizando. Em outubro de 1963, “O Diário do Comércio” de Belo Horizonte publica “Patenses Constroem ‘Casas das Meninas’ para amparar infância”. Nosso trabalho já é conhecido e isso nos dá força, coragem, para continuarmos lutando.
A obra foi feita em duas etapas. A primeira nos custou Cr$ 1.800.000,00 e constou de salas de aula, clausura das irmãs, salão para trabalhos manuais, gabinetes médico e dentário, farmácia, enfermaria, biblioteca, lavanderia, galpão, rouparia e banheiros. A segunda nos custou mais de 900 mil cruzeiros e incluiu 3 dormitórios, 2 refeitórios, copa, capela, cozinha, despensa, playground, quarto de despejo. A esta altura aproveito o meu programa na Rádio Clube de Patos para entusiasmar o povo, porque o fim da construção estava próximo. Faz-se a Campanha dos Tacos para o piso, da telha, do mobiliário, louças, panelas, roupa de cama, alimento.
Quando a construção estava no auge, Monsenhor Manuel Fleury Curado e Dom José André Coimbra haviam conversado com as Irmãs Servas do Espírito Santo, em Santo Amaro, São Paulo, convidando-as para administrarem a Casa das Meninas. Cheguei a ir lá para me encontrar com a Madre Arnáldia a fim de dialogarmos sobre o assunto. Ela se entusiasmou muito com a obra. Mas precisava da licença de Roma. Começamos com uma longa troca de cartas. Iam nossas notícias. Ela mandava as suas. Uma batalha que parecia não ter fim. Finalmente, um telegrama datado de 27 de agosto de 1965 informou: “As irmãs chegarão quinta-feira”.
Realmente chegaram. As Servas do Espírito Santo, co-fundadoras da Casa das Meninas foram: Irmã Águeda Gontijo, Irmã Maria Felícia Seger, Irmã Alexandrina Hommes, ficando as três hospedadas no Colégio Nossa Senhora das Graças até que fizéssemos a limpeza na casa, e, posteriormente, Irmã Emanuela Teixeira. Mais tarde chegaram Irmã Bertrand, Irmã Tomazilda, Irmã Henriqueta, Irmã Alcina, Irmã Cláudia.
A Casa das Meninas Nossa Senhora Aparecida foi inaugurada em 12 de outubro de 1965, dia de sua Padroeira, Dia da Criança. Naquele dia, todos nós, Irmãs e Fundadoras da obra, achávamos agitadas. Chovia demais, o que nos deixava inquietas. Como inaugurar a casa sob aquele temporal! Mas Deus foi tão bondoso que, quando o carro alegórico, trazendo a imagem de Nossa Senhora Aparecida, apontou no morro, seguida por uma procissão de dezenas de carros, a chuva parou e um belo arco-íris enfeitou o céu. Na porta da Casa das Meninas, nossas primeiras internas, em número de 5, as Servas dirigentes, vindas de Belo Horizonte, Juiz de Fora, a Madre Provincial Arnáldia, Monsenhor Fleury Curado, autoridades diversas, Irmãs Sacramentinas, nós da Fundação e muitos amigos.
O carro alegórico parou. A fanfarra do Colégio Marista saudou, com entusiasmo, Nossa Senhora Aparecida, doada pelo saudoso Padre Almir Neves de Medeiros. Monsenhor Fleury foi até lá, pegou nas mãos da padroeira e os fogos subiram e estouraram no espaço. Palmas e mais palmas. Monsenhor entregou a imagem para a Madre Provincial, colocando-a num altar feito em sua homenagem. Lá ela foi coroada pela primeira criança acolhida: Maria Filomena, e pela 1.ª Rainha Mirim do Milho: Maria Aparecida Caetano Amorim. Eu, emocionada chorava como uma criança, seguida por todas, também emocionadas. Depois, a celebração da Santa Missa pelo Monsenhor Fleury. Todas as irmãs presentes acenderam uma vela cantando, emocionadas. Depois da missa, a bênção e visita à Casa. Depois, frente ao altar de Nossa Senhora da Aparecida, os pronunciamentos de vários oradores: Madre Arnáldia, Monsenhor Fleury, Monsenhor Sebastião Fernandes, Senhor Pedro Pereira dos Santos, Prefeito de Patos de Minas, Dr. Joseph Borges de Queiroz, MM Juiz de Menores Dr. Enéas de Moraes, Maria Aparecida Caetano Amorim, Irmão Cirineu, marista, minha companheira da Fundação, Júlia Brandão de Morais, a Princesa Mirim do Milho, Suely de Castro Bernardes e, por último, pronunciei o meu discurso.
Mais uma vez, parando no tempo, olhando aquela casa imensa, vendo crianças correndo pelas varandas, eu me lembrei das palavras de minha Mestra, quando tinha 12 anos: “Cuidado Edith, Nosso Senhor irá exigir muito de você. Por que será?” E como exigiu!!!
* Fonte e fotos: Do Nascer ao Por do Sol, de Edith Gomes de Deus Melo.
