Dia desses, caminhando serenamente pelo Centro da Cidade, postei-me em frente à entrada do saudoso Cine Riviera. Meus olhos fixaram-se em homens trabalhando nas obras no interior daquele outrora espaço mágico destruído por chamas do além¹. As vistas percorreram sinuosamente o saguão de entrada e lá no fundo se depararam com o local onde ficava a tela, o imenso pano branco onde desfilou arrojadamente uma infinidade de heróis, bandidos e anônimos. Quantas lágrimas, quantos sorrisos, quantas paixões prós e contras aquele pano branco retangular nos proporcionou. Aquela brancura tinha vida, vida que não tinha nada a ver com a nossa vida, mas, inúmeras vezes, sem querer ou até querendo sem nos apercebermos, a vida representada naquele pano branco influía na nossa íntima vida espiritual a ponto de influenciar a nossa vida material. Como? Sei lá, a gente deixava aquele espaço meio aéreo, flutuando com as cenas incrustadas nos neurônios e suas sinapses transmitiam-nos sensações ora tranquilizantes ora amargosas. Ria-se, chorava-se ou muito pelo contrário.
Um pequeno esbarrão trouxe-me de volta à realidade. Segui em frente, dobrei à esquerda e desci a Major Gote. Após a José de Santana, atravessei a rua e postei-me em frente ao prédio onde funcionou o Cine Garza. Encostado a uma parede, fechei os olhos e o interior do cinema, com suas cadeiras desconfortáveis de madeira, tomou conta de minha mente. No meio de tiroteios, abraços amorosos, épicos heroicos e viagens interplanetárias em preto e branco a gente se sentia flutuando e o pano branco nos puxava, praticamente nos intimava a participar mentalmente dos acontecimentos. Quantas vezes eu senti uma vontade tremenda de me levantar da cadeira e adentrar àquele pano branco. Muitas vezes, também, ignorava aquele pano branco porque a aventura real fluía na cadeira ao lado.
De repente, vi-me à porta do Garza com um monte de revistas do Tarzan, Batman, Fantasma e Flash Gordon. Era domingo, hora da matinê. Lá estava eu trocando revistas com amigos e desconhecidos. Às vezes levava “manta”, ora levava vantagem. Fazia parte do jogo, o nosso jogo inocente. Foi quando ela apareceu, a Tita. Aquela negrona e seu vestido colorido vinha caminhando sisuda, sabe-se lá pensando em que. Naquela época, nós, garotos na faixa de 8 a 10 anos, tínhamos em mente que a Tita era louca e, pasmem, comia criancinhas, assim mesmo como os antigos diziam a respeito dos comunistas. Por causa disso, nossos neurônios imaturos zombavam daquela sábia e inofensiva criatura. De imediato, ela reagia ferozmente, ditando palavras de ordem contra a nossa falta de respeito. Vez ou outra, corria atrás do garoto mais exaltado. Não seria bem correr, pois a bonachona mal conseguia caminhar com pés descalços e seus muitos quilos. Mas assustava-nos quando nos encarava com seus olhos ferinos e brandia uma velha sombrinha como que querendo nos dizer que ia parti-la em nossas cabeças.
Eu, juro de pés juntos, nunca direcionei uma única palavra maldosa à Tita. Mas, num domingo, em 1966, a coisa sobrou para mim. Todos correram, eu fiquei parado olhando embasbacado para ela, e a Tita imaginou que eu era o autor da agressão verbal. E partiu para cima de mim. Corri desesperado em direção à Rua José de Santana, dobrei a esquina rumo à Avenida Getúlio Vargas num plano de fuga gerado instantaneamente. No que eu dobrei a esquina, fui direto no peito de uma senhorinha de seus lá 70 anos, por aí. Caí para um lado, ela caiu para outro, e minhas adoráveis revistas se espalharam pela calçada. O povo se ajuntou, uns me apalpando, outros com atenção à senhorinha, e eis que a Tita chegou bufando. Quando a vi, fechei os olhos e fiquei quietinho, só imaginando que minha vida de poucos anos chegara ao fim. Foi um terror indescritível. Comecei a apresentar pequenas convulsões e algumas pessoas se preocuparam. Enquanto a senhorinha estava bem e já de pé, eu continuava deitado imaginando o momento do golpe fatal. Foi quando ouvi uma voz serena e senti uma mão tocando o meu rosto. Aquela voz aveludada perguntava-me se eu estava bem, se estava sentindo alguma dor e pedia-me para levantar. Eu não tive coragem de abrir os olhos. Então, senti alguém me levantando bem devagar com um abraço apertado. Ouvi um leve murmúrio como se a pessoa estivesse chorando. Sim, ela estava chorando, pois logo senti suas lágrimas pingando em meu rosto. Lentamente abri os olhos e levei um grande susto, pois quem me abraçava e chorava sobre mim era a Tita.
Outro esbarrão trouxe-me de volta à realidade. Imediatamente, subi a Major Gote fazendo o mesmo percurso daquela fuga histórica. Parei exatamente no local onde caíra e ali revivi toda a cena. Lá estava eu nos braços da Tita, ela chorando em soluços e perguntando-me se eu estava bem. Devagar, levantou-se comigo no colo e suavemente depositou-me ao solo, passando a mão levemente na minha cabeça. Em estado de pânico, olhei profundamente em seus olhos e o que senti até hoje não consigo descrever em palavras. Eu esperava a morte, mas os olhos da Tita fitavam-me com tanto carinho que… como disse, não consigo descrever em palavras. Eu, um garoto de 9 anos, que sempre imaginara a Tita como uma “monstra”, ali estava sendo dominado por olhos de paz. Aquela mulher chorando ao afagar o meu rosto contrito pelo medo fez-me crer imediatamente o quão equivocado éramos todos os garotos. Naquele momento, pensei em quando alguém me chamava por um apelido que não gostava. Eu bufava de raiva e dava vontade de bater naquela pessoa. Oh, eis então o porquê a Tita reagia contra nossas injúrias. Mundo cruel onde meninos se julgavam superiores a uma criatura tão pura.
Ainda meio desnorteado, com a Tita afagando meus cabelos, recebi de um estranho as minhas revistas. A senhorinha já tinha partido, o povo se retirou e ficamos ali, eu e Tita, Tita e eu. Olhei para aquela figura portentosa, que já não chorava mais, ostentando um sorriso de felicidade por me ver bem, dei-lhe um beijo no rosto e parti. E como o fêmur que o antepassado humano atirou ao ar no filme 2001 – Uma Odisseia no Espaço, como ser humano evoluído acordei num futuro sem a Tita, mas carregando dentro de mim o seu sentido de vida.
* 1: Leia “Cine Riviera é Consumido Pelas Chamas”.
* Texto: Eitel Teixeira Dannemann.
* Foto: Espiritadoterceiromilenio.blogspot.com, meramente ilustrativa.