Há tempos o instante está ausente e há ferrugem no sorriso. Mais precisamente fará 10 anos em 11 de outubro. Foi quando um dos poetas mais reverenciados do rock nacional sucumbiu à doença. Foi quando não mais foram escritos versos inéditos por Renato Manfredini Júnior. Assim como deixou fãs de todas as idades em toda parte do País, também na região há milhares de jovens/adultos/crianças que se deixaram contagiar pelos versos das letras escritas por Renato Russo. Mas a ligação da Legião Urbana com a região vai além de grupos de fãs. “Não consigo imaginar nada tão mágico depois de Patos de Minas! E olha que muita coisa rolou depois disso nas nossas vidas”, declarou o baterista Marcelo Bonfá.
Mas como uma cidade no interior de Minas poderia ficar marcada na memória de um dos membros da Legião? Aqueles fãs fervorosos já sabem, mas para os que começaram agora a se encantar pelo rock da banda aí vai a resposta: foi em Patos de Minas, cidade localizada a 230 quilômetros de Uberlândia, que a Legião Urbana fez o primeiro show da carreira. Isto há exatamente 24 anos, a serem completados na próxima terça-feira. Foi em 5 de setembro de 1982 que a banda subiu num palco pela primeira vez. “A Legião tinha outra formação, com o Paraná na guitarra e o Paulista nos teclados e o som era alguma coisa meio rock progressivo. As músicas tinham uns nomes esquisitos tipo O cachorro e Grande Inverno na Rússia?”, lembrou Bonfá.
Tudo começou numa estrutura totalmente improvisada na arena do Parque de Exposições. Como o palco de shows era muito alto e a arena enorme para um festival de bandas iniciantes, foi construído outro de um metro bem na poeira do chão de terra, sem cobertura nem nada. O som é uma história à parte: foi preciso reunir quase todos os equipamentos que existiam na cidade para realizar o evento. “Me lembro bem da forma como captávamos o som do violão. Era preciso soltar todas as cordas, colocar um microfone dentro do violão, afinar tudo de novo para depois começar a tocar”, lembrou o técnico de som Marcos Amorim, hoje responsável pela sonorização de César Menotti e Fabiano.
A falta de estrutura fez entrar em cena um despojado poeta. Marcos Amorim precisava de um voluntário para ajudar a passar o som do violão e Renato, solícito, foi logo subindo ao palco. Afinal, desde que chegara à cidade pela manhã nada havia para fazer e o grupo estava “passando o tempo” pelo Parque. Foi assim, no improviso, que a Legião Urbana abriu o Festival Rock no Parque. “Nunca tinha visto uma coisa destas antes, começar o show durante a passagem de som. Mas Renato subiu ao palco e não parou mais de tocar. Nestes anos nem sabia quem ele era, pensava apenas que era um louco”, apontou.
Renato Russo só desceu para, acreditem, ser preso. Se lembrem da época: 1982. O Brasil se preparava para as primeiras eleições diretas após anos de ditadura militar. A repressão era mais leve, mas não significa que não existia. Principalmente numa pequena cidade do interior de Minas Gerais. Que ousadia falar que “os PMs armados e as tropas de choque vomitam música urbana”, como dizia Música Urbana do Legião. Ou mesmo declamar os versos de Que País é esse?, assustadoramente atuais. Ou fazer apologia ao voto em branco como forma de protesto como bradava Vote em branco da Plebe Rude, principal atração do dia. Pior ainda: o discurso inflamado de Renato Russo defendendo a liberdade de expressão.
Resultado: cadeia. Desceram todos, Plebe Rude e Renato Russo direto para a delegacia de polícia do próprio Parque de Exposições. “Tive sorte, pois no momento em que a Plebe estava indo em cana eu tinha saído para dar umas voltinhas e quando voltei eles já estavam cercados pela polícia”, contou Marcelo Bonfá. Não foi brincadeira para Renato Russo. Mesmo algemado fazia questão de argumentar, dizer da liberdade artística e dos direitos à cidadania. “Entrei em pânico, porque saí correndo para a delegacia e o Renato lá, só contribuindo para aumentar a temperatura e o nervosismo das discussões. Nada que eu falava adiantava. Mas Renato era tão convicto do que defendia que conseguiu convencer o chefe de polícia a liberá-los sob uma condição: de sair da cidade imediatamente. Mas como, se o ônibus só saía de madrugada? Aí foi outra discussão. Assim foram os últimos momentos de um primeiro de milhares de shows do Legião”, relembrou Carlos Alberto Xaulim, produtor cultural responsável por fazer de Patos de Minas uma cidade inesquecível àquela que ainda é uma das principais bandas de rock do Brasil
E pensar que nem era para a Legião Urbana figurar entre as nove atrações no dia 5 de setembro de 1982 no parque! Porque a idéia do produtor Carlos Alberto Xaulim era trazer à cidade bandas inéditas ou pouco conhecidas dos patenses, mas já com nome pelo Brasil. Um festival como os alternativos atuais, que na época eram raros. Foi por isso que, como de Brasília emergiam várias bandas de rock, Xaulim logo convidou a Plebe Rude que tinha mais sucesso na época e o Aborto Elétrico, antiga banda de Renato Russo para o Rock no Parque. Detalhe: sem nem um centavo de cachê. Só ganhavam passagens de ônibus e comida. E a visibilidade de um festival.
Oito dias antes do show, mais de mil cartazes impressos, liga para o telefone de Xaulim o próprio Renato Russo. Queria comunicar ao produtor que quem tocaria em Patos não seria o Aborto Elétrico, mas sim uma outra banda que formara poucos dias antes: a Legião Urbana. Quem conhece a história da banda se lembra do motivo: uma briga homérica com o baterista Fê Lemos cujo estopim foi a música Química. “Tinha 27 anos na época e pensava que, sem desmerecer as bandas, não fazia a menor diferença para Patos se fosse o Aborto ou Legião. Só que o Renato fez questão de que mudasse o nome da banda até mesmo nos cartazes. Foi tão veemente que assustei”, contou Xaulim.
Como na época tudo era impresso em silk-screen, era muito mais fácil corrigir problemas. Só precisou de o produtor ir à gráfica, mandar repintar tudo de preto e trocar o nome da banda naqueles cartazes que ainda não tinham sido distribuídos. Um destes foi entregue no ano passado à irmã de Renato, Carmem, para ser inserido ao material pessoal que, possivelmente, vai virar acervo de um museu sobre o músico. “O interessante é que foi o próprio Renato quem se lembrou do primeiro show, ao escrever no seu diário. E me lembro que na época ele foi incisivo dizendo que, mesmo que não conseguisse mudar os cartazes, ele fazia questão de dizer ao público que aquele era o primeiro show do Legião Urbana”, relembrou.
A lua cheia, linda, “uma bolota abençoando público e bandas”, como disse Xaulim, é a lembrança mais marcante daquele 5 de setembro. Dos shows, poucas pessoas conseguem se lembrar. Aliás, o tamanho da arena de rodeio faz a percepção de público ser ainda menor. Nas anotações de Xaulim, devia haver umas 1.500 pessoas. Nem mesmo Sérgio Moreira, que dividiu o palco com a Legião Urbana, consegue resgatar muita coisa de 24 anos atrás. “Lembro muito bem da atmosfera da época. Tinha uma energia incrível no público e uma sintonia benéfica entre as bandas. Todos no começo de carreira, tentando um espaço. Tempos depois que fui me ligar que aqueles garotos de Brasília eram os mesmos que estavam no auge do sucesso”, contou Sérgio Moreira.
O lapso de memória é quase que um remorso para quem esteve no show e se tornou fã da banda anos mais tarde. Ou para quem quer contar às filhas e sobrinhas como foi a primeira vez que o Legião Urbana, banda venerada até os dias de hoje, subiu num palco. É o caso de Sônia Pereira, que diz só se lembrar de ter gostado muito do som, algo novo, diferente, exatamente o que os adolescentes da época estavam ávidos. “Não era muita gente, mas quem estava lá gostou demais de todos os shows. O interessante é que minhas filhas nascerem muito tempo depois e mesmo assim as músicas da Legião as conquistaram. E quando digo que assisti ao primeiro show deles, logo querem saber se tinha conversado com o Renato. Se soubesse quem ele se tornaria anos depois, faria questão de tietar”, brincou Sônia Pereira.
“Foi uma viagem inesquecível com a turma. Fretamos um ônibus e junto foram outros amigos”, contou Marcelo Bonfá. Se o próprio Renato Russo fazia questão de falar sobre este primeiro show, os outros integrantes também se lembram bem, mesmo sendo há 24 anos. “A verdade é que tenho especialmente todo aquele momento na minha memória, que me marcou para sempre e não sei por quê. Contrariando o que dizia John Lennon quando perguntavam a ele sobre os anos 60 e ele dizia que…quem se lembrar de alguma coisa ou não estava lá ou estava mentindo… Foi nossa primeira viagem com uma turma de amigos e músicos. Eu tinha uns 15, 16 anos e por aí dá para imaginar o deslumbre de toda esta liberdade naquela época maluca”, lembrou Bonfá.
Quem também não esquece o início da própria carreira é Carlos Alberto Xaulim. O festival Rock no Parque foi um dos primeiros que produziu. Foi ele que buscou a turma de Brasília na rodoviária de Patos de Minas e a levou ao hotel. Ficaram pouco tempo no Hotel Magnífico, pois logo queriam conhecer a cidade. Só tomaram café da manhã, descansaram, almoçaram e já saíram direto para o Parque. Ficaram lá o dia todo até a hora do show.
A importância deste início de carreira deverá ficar marcado para sempre: Luis Fernando Borges, que está produzindo um filme que contará a vida de Renato Russo, planeja incluir o show de Patos de Minas no roteiro. “Ele já me entrevistou para saber todos os detalhes do evento. Até que tive um certo prejuízo com o festival. O certo é que, finalmente, este início de uma das bandas mais representativas do Brasil vai ser recontado para que todos saibam como é sofrido o começo de uma carreira”, finalizou Xaulim.
Vale a dica: o livro “Renato Russo: o Trovador Solitário”, de Arthur Dapieve é uma obra fantástica e conta a história da Legião em Patos de Minas e fala sobre toda a realidade do rock no Brasil naqueles anos, além de toda a vida e carreira do poeta Renato.
* Fonte: Texto de Luciana Tibúrcio publicado em 2006 no site www.cadoro.art.br com o título “A Anarquia se Organiza”.
* Fotos 1 e 2: www.cadoro.art.br.
* Foto 3: Carta de Renato Russo comprovando Primeiro Show no Rock no Parque, de www.rocknoparque.com.br.