MEU PAI

Postado por e arquivado em ARTIGOS.

TEXTO: OSWALDO AMORIM (1974)

Meu pai [Sebastião Amorim] morreu aos pouquinhos. Por razões pouco definidas (talvez a pancada no desastre automobilístico ocorrido há muito tempo, entre Patos de Minas e Belo Horizonte, lhe tenha afetado a irrigação do cérebro), ele foi perdendo progressivamente a consciência, mais tarde a fala, por fim os movimentos. Há mais de três anos jazia imobilizado na cama, numa vida que, nos últimos tempos, tornou-se totalmente vegetativa.

Por morar fora e distante, minha lembrança foi a primeira a perder-se nos descaminhos de sua evanescente memória. Mas talvez por intuição, Papai ainda sabia tratar-se de um parente. Sua mente já rateava como um motor em pane. Depois sua memória foi ficando cada vez mais débil, até apagar-se por completo, como uma gravura que sumisse de tanto desbotar.

Foi a primeira morte de meu Pai.

E agora que ele se foi também fisicamente, é tempo de lembrar algo sobre ele. Quando pequeno era muito ligado a Papai. (Depois de grande, bem menos, por um descompasso − que só muito mais tarde vim a perceber − entre o meu desenvolvimento intelectual e a sua decadência, ainda ignorada por todos).

Ainda bem pequeno, costumava acompanhá-lo em suas frequentes andanças a cavalo pela fazenda aqui pertinho da cidade. Também costumava levar-me à Fazenda do Córrego Fundo, em Lagoa Formosa. (Ali, o córrego desaparece num buraco, para ressurgir quilômetros adiante). Enquanto ele olhava o gado e resolvia problemas da fazenda (que vendeu mais tarde) eu passava horas e horas laçando carneiros. Um dia quando apartava o gado no quintal, teve a mão esquerda esmagada pela porteira atropelada por bois em fúria. Vi, horrorizado, sua mão transformada numa pasta de carne e sangue. Suportou tudo com estoicismo. E ainda tentou consolar-me, dizendo que ficaria bom. Na verdade, a mão ficaria defeituosa para sempre.

Numa das andanças pela fazenda da cidade, quando eu devia ter uns 6 anos, Papai mostrou-me, com visível encantamento, uma cena que nunca esqueci nem vi de novo: veados comendo sal no cocho, junto com o gado, num pasto cercado de mato. (Papai gostava de animais e aves vivendo em liberdade e a salvo de caçadores). Outra cena que ficou: Papai salvando rezes envenenadas por ervas, num pasto cheio de samambaias. As rezes estavam estendidas no chão, com o ventre enorme. Papai furou-lhe os vazios com um canivete e meteu ali um canudinho da planta mais â mão (o gás produzido pela planta tóxica vazou pelo canudinho, desinflamando a barriga das rezes e empestando o ar com o seu cheiro forte).

Papai era um homem educado. Mais que isso: era uma pessoa cordial. Nem de brincadeira ofendia os outros.

Era gentil com todos. Na farmácia ou na fazenda tratava os funcionários com imutável cordialidade e consideração. Nunca o vi gritando com ninguém. Nem mesmo elevando a voz. Era sempre discreto e polido. Certa vez, quando fomos para a fazenda a cavalo, cruzamos, na estrada de suas terras, com um homem levando um rolo de arame na cabeça. Cumprimentou-o com um sorriso e um comentário − “levando um aramezinho aí, hein companheiro”. O arame era furtado das cercas da fazenda. E ele sabia. Também nunca zangou com os pobres que iam tirar lenha em suas terras. Embora lhe doesse ver as árvores cortadas à volta do tronco por muito deles, para que secassem, depois, por inanição.

Como farmacêutico familiarizado com uma série de doenças comuns e seu combate, ajudou muita gente, indicando o tratamento (à maneira dos farmacêuticos antigos), ou recomendando o médico quando isso se fazia necessário. Para gente sem recursos, muitas vezes dava também o remédio.

Ele era um bom homem e por muito tempo será lembrado por isso. Em janeiro último eu estava à porta de casa com Mamãe, quando uma mulher mal vestida e descalça se aproximou e disse: “Boa noite, D. Fia. E Seu Tião, como é que está passando?”. Perguntei a Mamãe quem era essa mulher. Ela respondeu: “Não sei, Oswaldo. Gente humilde, que nunca vi, está sempre perguntando por seu pai, com um interesse que me comove”.

Pois a mim comovia também a dedicação de Mamãe por Papai nos últimos anos, apenas um morto-vivo, que nem remotamente fazia lembrar aquele homem apressado, simpático, discretamente alegre e cheio de vitalidade de outros tempos. E que não acenava sequer com a esperança de uma melhora − esse consolo dos enfermos. Sua doença era sabidamente irreversível. Pois Mamãe nunca se queixava da sorte e parecia até contente em poder cuidar de quem nem mesmo pertencia de todo ao mundo dos vivos (no que teve a inestimável ajuda do enfermeiro Geraldo e outras pessoas amigas). Portanto de alguém que jamais poderia retribuir-lhe os cuidados ou mesmo reconhecê-los.

Se ao meu pai faltassem outras realizações (que graças a Deus não faltaram) sempre lhe restaria o consolo de ter tido uma companheira de verdade, invariavelmente solidária nos momentos felizes ou nas horas amargas.  Ela foi sempre a boa mulher  de um homem bom.

* Fonte: Texto publicado na edição de 11 de julho de 1974 do jornal Folha Diocesana, do arquivo do Laboratório de Ensino, Pesquisa e Extensão de História (LEPEH) do Unipam.

* Foto: Do Livro “Oswaldo Amorim − Queixa ao Bispo”, de Oswaldo Guimarães Amorim.

Compartilhe