DR. EUPHRASIO JOSÉ RODRIGUES SE REBELA CONTRA A LEI DO SORTEIO MILITAR NO SERTÃO

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TEXTO: EUPHRASIO JOSÉ RODRIGUES (1908)

Tornamo-nos timidos todas as vezes que temos de galgar a arena jornalistica, para fazer apreciação de assumptos de importancia tão transcendente.

Deante do “clama necesses” que constitue o artigo de fundo de todos os jornaes diarios, não podia “O Trabalho” manifestar em suas columnas largo vasio de indifferença e desdém; a causa publica e o bem estar social é que nos levam a fazer a apreciação desta lei¹, insubsistivel pela natureza dos encargos, pela indole do povo, e pela organisação actual da sociedade, e tanto que as cabeças pensantes que constituem a aristocracia intellectual do Paiz, são as primeiras a se levantar contra ella; a indolencia do povo brasileiro, o invencivel horror a farda, que tem o povo sertanejo, tornam-no inadaptavel á sua militarisação, e bom será que no interior do Paiz não surjam novos recintos entrincheirados, novos Canudos em miniatura, a causarem serios e violentos encommodos aos Governos dos Estados.

O sertanejo não carece absolutamente de precisão de manobras, nem de disciplina de caserna, bravo até o heroísmo quando se tracta da defeza da consorte e dos filhinhos, está sempre prompto a servir a patria, pedir a seus filhos que morram sem recuar; a guerra do Paraguay foi a prova dessa nossa asserção; mais tarde, nos dias angustiosos da Republica, quando postou-se o exercito nacional deante de Canudos, foram matutos bisonhos , que espantaram o exercito causando-lhes a atonia do assombro, e fazendo periclitar a animo dos mais valentes.

Arranquem o sertanejo de suas florestas onde o sentimento é vivo e a moral é purissima, fardem-no e colloquem-no no meio da sociedade que vós outros denominam de culta, que vereis fenecer o cerne de nossa nacionalidade, como a planta exotica a amaldiçoar essa patria que lhe amargurou os dias da mocidade, tornando-se madrasta, em logar de mãe carinhosa.

A falta de estradas de ferro, que cruzem no interior do Paiz, fazem com que estadistas de merito não veham estudar os costumes do povo do interior, antes de fazerem as leis que lhes devem ser applicadas.

O sertanejo, não é o individuo que anda nas capitaes, botas acalcanhadas, calças rotas, na ciscalhagem da rua, bebado ou cahido nas sarjetas, não; o sertanejo é o homem bruto, é verdade, passa porem privações sem conta, infatigavel no trabalhar, só para manter a consorte e os filhos, heroe sem o saber; constitue a familia, não pode abandonal-a aos perigos de toda especie que nos cercam aqui no interior, para vestir a farda de soldado.

O sertanejo não importa que o imposto pese sobre sua propriedade menos productora, até quasi esmagal-a, respeitador e obediente as leis do seu paiz, torna-se uma fera se lhe invadirem o lar pauperrimo, ou se lhe tentarem destruir as crenças arraigadas desde a infancia.

A lei da organisação militar é um perigo no interior do Paiz, e “O Trabalho”, jornal do sertão, avisa esse perigo enquanto é tempo de conjural-o.

* 1: Em 04 de janeiro de 1908 foi sancionada a Lei n.º 1.860, que instituiu o serviço militar obrigatório com a implantação de um sorteio de pessoas para preenchimento das vagas existentes em postos de menor grau hierárquico. A lei do sorteio militar era apresentada como a lei que reformularia as instituições militares, pois trazia um conceito de profissionalismo para forças armadas, e também mudaria um sistema que utilizava a “caçada humana” como meio de suprir suas necessidades de contingente. Argumentos a favor ou contra foram levantados a respeito da obrigatoriedade do serviço militar. Apenas em 10 de dezembro de 1916, quase nove anos após a aprovação da lei, foi realizado o primeiro sorteio, no Quartel-General do Exército, em solenidade aberta ao público a que compareceram o presidente da República, o ministro da Guerra, o poeta Olavo Bilac e outras autoridades. Em 26 de fevereiro de 1945 o decreto-lei n. 7.343 finalmente decretou, em seu artigo 1.º: “Fica extinto o sorteio militar.”, porém instituía de fato e de direito, a obrigatoriedade do serviço militar (conscrição) para todos os brasileiros do sexo masculino no ano em que completassem 18 anos e que deveriam apresentar-se para a prestação do serviço militar sujeito a sanções.

* Fonte: Texto publicado com o título “O Sorteio Militar e os Sertões do Brazil” na edição de 31 de janeiro de 1908 do jornal O Trabalho, do arquivo da Hemeroteca Digital do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, via Altamir Fernandes.

* Foto: Início do texto original.

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