Casado com Filomena há mais de 15 anos e com três filhos, Juvenal sofria com a mão pesada da esposa que comandava o dia-a-dia da casa como se a tarefa fosse uma ordem divina. Ele se revoltava com a obrigação imposta pela mulher de executar inúmeras tarefas caseiras. O que mais chateava o Juvenal era ser pego por algum amigo executando as ordens da toda poderosa Filomena.
– O Juvenal está?
– Oi, Marcelo, ele está lá na cozinha terminando de lavar os pratos.
– O Juvenal lavando pratos? Essa eu quero ver.
– Não vem não, hêim Marcelo, estou apenas colaborando um pouquinho com a mulher.
– Colaborando com a mulher, né. Tem dó, sô, deixa de ser bobo. Só passei aqui para confirmar a sua presença na pelada de amanhã cedo.
– Que pelada é essa, Marcelo? − perguntou a Filomena.
– Amanhã é domingo, dia do nosso futebol semanal no campinho do Cristavo¹. Acontece que pelo menos uns cinco não vão. Então preciso que o Juvenal não falte, ele que já quase não vai, senão não vai dar para formar nem dois times.
– Ih! Marcelo, pode esquecer.
– Que esquecer coisa nenhuma, Filomena. − rebateu o Juvenal.
– Juvenalzinho da mamãe, por um acaso o senhor já se esqueceu de que amanhã de manhã é a sua vez de levar os meninos na aula bíblica?
– Mas Filomena, eu já te pedi para não marcar nada nas manhãs de domingo, você sabe muito bem que nas manhãs de domingo tem o futebol com meus amigos e mesmo assim você vive me arrumando compromissos para as manhãs de domingo.
– Num vem que não tem, bocó, você vai é levar os meninos na aula bíblica.
– Mas, Filomena eu…
– Escuta aqui, Marcelo, o Juvenal não vai jogar futebol amanhã porque ele já tem compromisso, está claro?
– Claríssimo, dona Filomena. Então, Juvenal, capricha aí nos pratos, hêim? Inté procê!
Esta atitude autoritária na frente dos amigos matava de raiva o Juvenal. Mas, pombas, por que ele aceitava tão candidamente os desmandos da esposa? Por que ele não reagia? Afinal de contas, ele era o homem da casa. Ou não era? De que adiantou começar a trabalhar aos 15 anos? De que adiantou estudar e se transformar em respeitado servidor público. Aos 49 anos, na flor da idade, mal podia jogar uma partida de futebol com os amigos. Milhões de pensamentos tomavam conta de sua mente a cada vez que a mulher lhe comandava uma ordem. E a cada vez que a mulher lhe comandava uma ordem, ele dizia a si mesmo que seria a última vez. Até que vinha outra ordem, e ele dizia a si mesmo que seria a última vez. Quando abriu os olhos, percebeu assustado que quinze anos haviam se passado, três filhos vieram ao mundo, e ele continuava dizendo que seria a última vez. Não, essa situação não poderia continuar assim. Era preciso fazer alguma coisa. Mas o quê? E como? Juvenal só tinha a noção exata que precisava calar a boca da esposa, mas não tinha a mínima ideia do procedimento correto indicado ao caso. E nisso, ele viajava, seus pensamentos sumiam na imensidão do espaço.
– Juvenal, agora deu pra dormir em pé, acaba logo de lavar esses pratos. − reclamou a Filomena.
– Hêim, o que houve, pra que esta gritaria toda?
– Você está aí com esta cara de besta olhando para as paredes. Acaba logo de lavar esses pratos e depois dê uma boa varrida no quintal. Escuta aqui, seu moço, ontem o senhor não limpou o cocô do Fofinho.
– Limpei sim senhora!
– Não limpou porcaria nenhuma. Escuta, eu e a Rosalva vamos passar a tarde na casa da Matilde para ajudar a preparar as roupas da quermesse. Quando a Rosinha chegar da escola, prepare um lanche pra ela. E mais uma coisa: presta bem atenção naquele amigo do Romualdo. Tô desconfiado que ele mexe com drogas. Fique de olho, pois não quero ver filho meu andando com gente ruim.
– Pode deixar, paixão da minha vida, vou fazer com muito amor tudo o que você pediu.
– Seu falso, você acha que não percebi cinismo nesse seu sorriso?
– Que é isso, paixão, dá um beijinho aqui no seu homem, dá.
– Vai caçar sapo no brejo, sô, tenho mais o que fazer. Vamos logo, Rosalva, já estamos atrasadas.
E lá se foi o Juvenal terminar as tarefas comandadas pela patroa. Enquanto a filha mais nova não chegava do colégio, ele pôde se dar ao luxo de deitar e aconchegar o corpo no sofá da sala. Fechou os olhos e entrou numa espécie de transe.
– Ô Filomena, meu sapato está com uma manchinha preta. Limpe-o agora.
– Sim, claro, meu querido Juvenal. Por favor, desculpe por esta manchinha preta ter aparecido no seu sapato marrom.
– Desta vez vou deixar passar. Agora, traga um café.
– Claro, meu amor Juvenal. A minha doidice quer com açúcar ou adoçante?
– Que é isso mulher? É claro que é com açúcar. Adoçante engorda.
– Mas Juvenalzinho do meu coração, nunca ouvi falar que adoçante engorda. Não é o contrário?
– Claro que não, sua besta. Já reparou que a maioria que toma adoçante é gorda? Então, sua anta, é de se deduzir que este troço engorda.
– É isso mesmo, grande paixão, como você é inteligente, loucura.
– Cadê uns biscoitos?
– De chocolate ou de morango, minha vida?
– Um pouco de cada.
– Se eu demorar mais de meio minuto você pode danar comigo, viu razão da minha existência.
O som estridente de uma freada bem em frente a casa no Bairro Santa Terezinha trouxe o Juvenal de volta à realidade. Olhos abertos, ele parou de sonhar e pôs-se a imaginar possibilidades concretas. Ele tinha que dar a volta por cima. Ele tinha que parar com as ordens da patroa. Ele tinha… Bem, ele tinha. Mas como? A mulher foi mesmo aonde? Sim, preparar roupas para a festa junina da comunidade cristã da Igreja Santa Terezinha que aconteceria no próximo sábado. Sim, todos vestiriam roupas simplórias com características rurais. E sim, haveria um grande forró onde as famílias se confraternizariam na praça em frente à igreja. E mil vezes sim, o Juvenal, mente privilegiada, acabara de ter uma estupenda ideia para pregar uma peça na Filomena. Nisso, Rosinha, a filha de 8 anos, chegou da escola.
– Oi filhinha, meu grande amor, dá cá aquele abração. E aí, desta vez o ônibus da escola veio devagar?
– Papai, é verdade que a minha perereca chama vagina?
– Como é que é? Meu Deus do céu, de onde você tirou isso, filhinha?
– Foi a professora que falou.
– Falou isso?
– Foi na aula, papai. Ela falou também que o piupiu do papai chama pênis.
– Mas filhinha…
– Papai, a professora falou também que o piupiu do papai entrou na perereca da mamãe. Aí depois de nove meses eu nasci.
– Santa misericórdia, minha Nossa Senhora da Abadia. Vem cá Rosinha, vem cá que o papai vai preparar um lanche pra você. Você teve aula de matemática hoje? Ah, sua danadinha, fiquei sabendo que é a melhor aluna de matemática e…
– Papai, a professora falou que o senhor tem pematozoide.
– Não é assim Rosinha, é espermatozoide… minha nossa… filhinha, coma seu lanche e depois você vai tomar banho. Daqui a pouco a mamãe vai chegar, tá bom?
O que estava acontecendo? Onde já se viu uma escola ensinar sexo a crianças de 8 anos? Juvenal resolveu que contaria tudo a Filomena e que exigiria dela tomar uma atitude. Êpa, lá estava ele se rebaixando, lá estava ele afirmando a condição da esposa ser o homem da casa. Não, isso tinha que acabar. Por isso, tratou de articular um plano para pregar uma peça na Filomena na noite da quermesse.
Na véspera, Juvenal, sorrateiramente, pegou o vestido que a patroa iria usar. Reparou que ele era constituído de duas partes, a de cima e uma saia que ia até o chão, costuradas ao meio. Ardilosamente, ele separou as duas partes e as uniu com linha frouxa, não dando para se notar a artimanha. Devolveu a peça ao seu devido lugar e começou uma espécie de contagem regressiva para o momento da glória.
E a festa da quermesse estava muito animada. Tinha barraquinhas e inúmeras brincadeiras para as crianças. Estas, se sentiam num verdadeiro paraíso, pois corriam para todos os lados numa felicidade geral. E os amigos, nos bate-papos.
– Meu grande Juvenal, bão?
– Bão demais da conta, sô. E aí, conseguiu negociar o carro?
– Que nada. Também, eu queria oito mil e o sujeito, na maior cara de pau, disse que só dava cinco.
– Ô Barbosa, tenha vergonha nessa cara, homem, desde quando uma lata velha daquela vale oito mil?
– Vale sim senhor, seu Vinícius, você não viu ainda, mas eu dei uma garibada nele.
– Tá bão, Barbosa, não vou discutir.
– E aí, Juvenal, anda lavando muito prato?
– Pode parar, Bastião, num vem com gozeira não, tá bão?
– Que é isso, rapaz, fica nervoso não. E o quintal, deixou ele limpinho?
– Bastião, vai ver se estou lá na esquina.
– É agora, moçada, começou o forró. Vamos, Juvenal.
– Vem cá, Marcelo, vamos repetir para não dar errado. Quando eu for dançar com a Filomena você imediatamente se oferece. Se ela recusar, eu ajudo. Aí, bem, o resto você já sabe. E olha, te aconselho: quando acontecer, saia imediatamente de perto dela, porque nessa altura eu já estarei lá no Trevo da Pipoca. Vamos lá.
* 1: Leia “Campo de Futebol Carlos Roberto Falcão”.
* Texto: Eitel Teixeira Dannemann.
* Foto: Materiaincognita.com.br, meramente ilustrativa.