RISOLETA E ALGUMAS RECORDAÇÕES DE SUA JUVENTUDE

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TEXTO: RISOLETA MACIEL BRANDÃO (1981)

Recordações: Vêm e voltam… Umas persistentes, nítidas, quase palpáveis; outras fugidias e esmaecidas, retalhos de lembranças a se diluírem na fimbria do horizonte azulado. Vêm e voltam, na brandura do entardecer carinhoso, trazendo ambientes de suaves coloridos, revivendo seres amoráveis, entes afeiçoados: Meu pai… minha mãe. Ele, serenidade, amparo, respeito; ela, alegria, vivacidade, ternura. − “Pai, aí fora tem um homem perguntando pelo senhor”. − “Quem é?” − “Eu não conheço ele não senhor…” − “Manda entrar”. E o homem − branco, preto ou pardo − era recebido na cordialidade costumeira. “Manda entrar…”. Velhos tempos de simplicidade e do sossego em que muitos falavam da aparição de almas penadas e lobisomens nos becos, em horas mortais; até da mula-sem-cabeça lançando fogo pelas ventas, relinchando, estalando ferraduras nas imediações da cadeia, − trem doido que galopava numa volta de sete léguas ao derredor das povoações; − porém, de ladrão não se falava. De tal flagelo público ninguém dava notícia e a comunidade pacífica, hospitaleira, mantinha abertas suas portas, do amanhecer ao recolher. Nessa esfera de bonanças, em matinas, eu iniciava as atividades no quintal catando pitangas, umbus, coquinhos secos e amarelos derriçados na maciez da folhada. Naquela negação por qualquer tipo de calçados, os pés nus zanzavam espertos na frieza do orvalho das madrugadas. Comumente arriscava-me nas grimpas das galhas, na façanha de colher as jabuticabas mais doces, as laranjas mais graúdas, especialidades que oferecia à Mamãe. Diligente, varria a casinha de mentira ao pé da mangueira, a mais alta e copada. Aspirava a felicidade no aroma das flores do pessegueiro, na harmonia da natureza com o alarido da passarela e, condoída, assuntava o pintassilgo prisioneiro na arapuca do baianinho. O embezerrado, o malino urdidor de armadilhas, tinha a cachimônia de afundar um velho penico esmaltado na trilha das formigas-cabeçudas, abismo no qual o laborioso exército, disciplinado, precipitava-se com a pesada carga. Entre nossos domésticos via-se outro rapazinho: expedito mandalete, este, de boa catadura, todavia, nem olhava para o nosso lado. Soberbia de menino homem: “Ié com Ié, cré com cré”. As duas irmãs do baianinho, sim! Nessa época os três órfãos moravam conosco, sendo a maior deles uma graça de baiana em esparrames! um agente batuta no engenho das gangorras, das folias no terreiro e na vasta cozinha de piso atijolado. Ai, quando o batuque atingia as raias da matinada, o cozinheiro da fala mansa, experimentava por água na fervura: “Quieta co’essa sinagoga, sirigaitas!” E a antiga pagem (babá) do meu bem-querer, caçadeira de arengas, fula, explodia: “Sirigaita é o seu nariz, intriqueiro! deixa as coitadinha pagodiá.” E em pagodeiras varavam secas e verdes.

Na cidadezinha de aproximadamente, três mil e trezentas almas, não existiam (conforme hoje), clubes campestres, tampouco praças de esportes. Em compensação, o extenso, farto e umbroso pomar de cada moradia ofertava um campo de sadias distrações para o regalo da meninada; e o nosso Éden não fugia à rotina. À sombra das árvores pejadas de frutos, em ajuntamento de amiguinhas, havia guisados, cantigas de roda, batizados de bonecas com pequena mesa de peroba atulhada de pires de biscoitos, suspiros, doces e café nas xicrinhas. Para a rua destinávamos as correrias de pique, tempo-será, boca-de-forno, acusada; também pular corda e as “quedas de maré e do vagon”, riscados com caco de telha no passeio à frente da casa. No páteo, brinquedo de-cantinho, de cabra-cega, jogar peteca; no alpendre, passar-anel e berlinda; no quarto, costurar muitas roupinhas das minhas queridas tetéias; lindezas de biscuit já um tanto caolhas, capengas e de cabeleiras carcomidas.

Em todas as residências onde eu ia sozinha, ou com Mamãe e irmãs, encontrava companheiras em disponibilidade para os folguedos. Brincava no adro da Igreja Matriz nas noites de leilão: nos recreios do Grupo Escolar era presença no meio da algazarra e dali costumava trazer colegas. “Esta sujeitinha é o próprio chamarisco! Aparece com meninas do Cerrado, da Vargem, de Tra-Banda da Lagoa…”. Comentava Mamãe, pasmada e satisfeita da popularidade da caçula, − décima da família. De tarefa cotidiana eu arrumava a mesa dos almoços e jantares e gostava de regar as begônias e tinhorões no jardim e, apesar de não pertencer à turma das melhores alunas, jamais me descuidava dos deveres da escola. Atraia-me a História do Brasil, (da coleção de Carlos Góis, adotada nos Grupos Escolares, em Minas); atenta, escutava a prosa dos adultos naquelas narrações de viagens, contando as grandezas das Capitais. Num deslumbramento, ouvia as estórias de bicharada, de príncipes encantados e, em arrepios, os casos de assombrações e do Capeta disfarçado num bode preto: vasto repertório cheio de acréscimos − particularidade da contadora, uma crioula empregada da casa de vis-à-vis à nossa. O certo é que, não obstante e impertinência dos irmãos, “Zoleta, conversa direito… Vai calçar os sapatos…” a vida sorria-me na perene floração de radiosas primaveras.

OS TEATROS: A epidemia dos teatros às vezes, grassava no Grupo Escolar “Marcolino de Barros” e raras disciplinas do afamado estabelecimento de ensino − único na cidade − saiam ilesas de um surto tão pegajoso. “Hoje é na casa da Fulana… amanhã da Sicrana…” e assim por diante. Minha mãe, apreciadora do civilizado divertimento, incentivava-me e eu improvisava o teatrinho criando e distribuindo as partes de cantorias e “sketch” entre primas e amigas. Levávamos adiante o nosso ideal sem nos afetar a impiedosa critica: “teatro broco-balofo”! Do último deles guardo indeléveis as cenas, como que ocorridas há pouco: os ensaios na meiágua do nosso jardim, a confecção do guarda-roupa das artistas − vestidos de papel de seda colados a grude − e a Grande Noite!

Tudo que cheirasse à festa a juventude aderia. Portanto não careceu segunda ordem de Mamãe para os manos transformarem a espaçosa sala-de-jantar em sofrível auditório com o palco adequado à circunstância. As manas, no entusiasmo da adolescência, exultavam cooperando nos enfeites do cenário e expedindo recados à vizinhança, aos pais das atrizes, familiares e pessoas da intimidade. Ninguém devia ficar esquecido e, avisado, ninguém se fez esperar…

Em afobação, a diretora supervisionava o movimento, com o corpo de baile fervilhando no camarim. “As Flores” (bailado e cantoria) foi o número de entrada, (este, da contribuição de Vanda Mourão): seguiram-se diálogos, monólogos, cançonetas; nada de criatividades nossas e sim, peças de verdade tendo a participação do elenco: Vanda e Célia Mourão, Maria Olímpia de Melo, Madalena Maria de Melo, Zenaide Bueno, Nair Alves de Oliveira, Iracema Barros, Zenóbia Caixeta, Carolina Araújo, Anita Campos.

Duas agradáveis surpresas contribuíram para o brilhantismo do espetáculo. Primeiro, a orquestra: o Maestro Randolfo Duarte Campos, trazendo os filhos músicos, surgiu no prazer de acompanhar as cantoras; em especial, sua filha Anita − voz meiga numa bela melodia que ele, o pai, ensinara. Segunda, a comédia em um ato, encenada por Carolina Araújo, em trajes de Barão e seu irmão Antônio Secundino no papel cômico de criado do Barão (Antônio, já então ginasiano do Colégio de Uberaba, em férias, de lá trouxera as novidades). Para encerramento, o mesmo, dedilhando um violão em estréia, cantou “A Tristeza do Jeca”, toada sertaneja de alta sensibilidade. (Este aplaudido ator extra programa, seria mais tarde o Dr. Antônio Secundino de São José, professor catedrático, presidente da Agroceres S.A. Nacional, etc.; e altamente conceituado no mundo da agricultura). Em expansões de contentamento findou-se o teatro de brinquedo e a fim de se prolongar a alegria da noite, rapazes e moças puseram-se a dançar. Meus pais, no aprazimento de verem a reunião de convivência da filha menorzinha, tudo na mais pura harmonia… os pares deslizando felizes ao ritmo das valsas, marchinhas e fox-trotes. Entrementes, no jardim, quem não perdia quadra de brincar, com a garbosa “troupe” em animação, soltava canteiros nos alvoroços do chicotinho-queimado.

* Fonte: Texto publicado com o título “Vivia para brincar” na edição n.º 36 de 15 de novembro de 1981 da revista A Debulha, do arquivo de Eitel Teixeira Dannemann, doação de João Marcos Pacheco.

* Foto: Arquivo da Família Maciel, publicada em 22/11/2013 com o título “Risoleta Maciel Brandão − 1”.

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