CANHAMBORA

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Em 08 de outubro de 2016, a curiosidade me fez registrar fotograficamente o lado de baixo da antiga ponte do Rio Paranaíba¹, que historicamente é a terceira construção naquele mesmo local². Enquanto eu apreciava a triste degradação do outrora portentoso curso d’água, um negro aparentando setenta e poucos anos passou por mim montado em uma surrada bicicleta. No meio da ponte ele parou, olhou para trás e me disse em alto e bom som: – Cuidado com o Canhambora! Dito isso, seguiu seu caminho. De onde eu estava, gritei-lhe: – O que é Canhambora? O homem não respondeu, pedalando com firmeza a bicicleta. Um instinto desconhecido me fez entrar no carro e ir atrás daquele enigmático Canhambora. Alcancei-o no primeiro trevo pós-ponte. Insisti e muito para que ele me falasse sobre o Canhambora. Ele fixou-me um olhar profundo e misterioso, suspirou e disse: É apenas um legado apagado! Mirou o guidom da bicicleta no rumo de Boassara e durante um tempo apreciei-o até sumir das vistas.

A partir daquele momento, tornou-se mister para mim descobrir o significado de Canhambora. Por aqui, em vão, pois todos com quem conversei demonstraram desconhecimento sobre o assunto, quando muito diziam “esse nome não me é estranho”. Mas se o misterioso negro pronunciou aquele nome é porque ele teve a sua razão para tal. A História conta que desde o início da colonização brasileira, o Estado de Minas Gerais foi visitado por aventureiros em busca de riqueza, principalmente metais preciosos, como ouro, prata e esmeralda. Muitas minas de exploração foram abertas e nelas a mão de obra extenuante era quase que exclusivamente de escravos negros. A existência de população negra na nossa região, fugidos das minas de Paracatu, antes da chegada dos brancos, pode ser considerada inquestionável³. Os negros contribuíram e muito para a origem da cidade. Herdamos deles uma forte influência cultural usada e absorvida por todos nós como se fosse “nativa”, tão grande e forte está presente no nosso dia a dia. Os negros trabalharam muito sob as ordens de famílias ilustres, mas, infelizmente, a História oficial faz questão de “esconder” o legado4. Será que o Canhambora faz parte desse legado? Por que aquele velho negro me disse para ter cuidado com o Canhambora? Será mesmo que o legado Canhambora foi propositadamente apagado da Memória patense?

Depois de muito pesquisar, veio-me a resposta ao mistério, presente no livro Geografia dos Mitos Brasileiros, de Luís da Câmara Cascudo, editado em 1947 e reeditado em 2002. Nele está uma pequena dissertação sobre o verbete, de Dialeto Caipira (Amadeu Amaral), editado em 1920:

Canhambora, Canhembora, Canhimbora, s.m. – escravo fugido, que geralmente vivia em quilombos ou malocas pelos matos. Beaurepaire-Rohan registra as variantes “caiambola, calhambola, canhambola, canhambora, canhembora, caiambora”. Segundo Anchieta, citado pelo mesmo, o tupi “canhembara” significava fugido e fugitivo. Houve talvez alguma confusão com “quilombola”, determinando todas as variantes em ola, ora, que ficam consignadas.

À página 279 da segunda edição do livro de Luís da Câmara Cascudo, eis a narrativa convincente sobre o mistério:

Para os habitantes das vilas e pequenas cidades, fazendas de gado e de café, engenhos de açúcar, plantações de algodão, um dos grandes pavores era outrora o escravo fugido. Entre os pretos, velhos e crianças não abandonavam a senzala. Evadiam-se os fortes, os resistentes, os ousados. Conduzindo pouco mantimento, sem armas, o escravo-fujão era obrigado a rondar as cercanias da casa senhorial ou da vila em que vivia, furtando alimentos, carregando trapos para vestir-se, surgindo inopinadamente nas pequenas bodegas para exigir um gole de aguardente ou arrebatar a arma preferida, o facão de canavial, comprido, afiado, seguro de corte e de duração. Se escapava às pesquisas do Capitão do Mato, cercava-se de um halo prestigioso de valentia que era explicada como efeito de orações fortes, “pauta” com o Diabo. Hirsuto, faminto, seminu, o escravo fugido apavorava crianças e mulheres. Vezes o senhor era compelido a mandá-lo caçar, sacudindo contra ele grupos armados, pondo-o a prêmio. Com os anos as lendas multiplicam-se. O escravo desaparecia, indo para longe, morto pelas feras, moléstia ou sede, sucumbindo aos ferimentos recebidos nos encontros ferozes. Atacava, também, os viajantes solitários, os escravos “de confiança” e, quando a fome sexual o apertava, espreitava mulheres que iam buscar água ou tomar banho. Derredor do escravo fugido havia o terror. Contavam estórias que eram reminiscências do Curupira, do Caapora e do Saci-pererê. Pouco a pouco a figura, deformada pelo medo, já nada mais possuía de humano e de vulnerável. O escravo, sujo, bruto, fraco, em perpétuo regime de déficit orgânico, constituía-se um soberano das matas, dirigindo as caças, sabendo segredos conhecidos apenas pelos duendes tropicais do Brasil colonial. Era o Canhambora! Pelas terras mineira, carioca, fluminense e paulista, o Canhambora passava deixando um rastro de terror incontido. Seu nome fazia adormecer crianças e prender em casa moças dançadeiras. Muito rapaz espigado e alerta, recusava sair, ouvindo o rumor de uma visita do Canhambora pelas vizinhanças.

Nunca mais vi o negro misterioso da bicicleta que me disse para ter cuidado com o Canhambora e que “é apenas um legado apagado”. Será mesmo que o Canhambora é mesmo um legado apagado da Memória Patense?

* 1: Leia “Embaixo da Antiga Ponte do Rio Paranaíba”.

* 2: Leia “As Antigas Três Pontes do Rio Paranaíba”.

* 3: Leia “A Questão dos Quilombos”.

* 4: Leia “Negociação de Escravos nos Tempos da Vila”.

* Texto: Eitel Teixeira Dannemann.

* Foto: Rfitaperuna.com.br, meramente ilustrativa.

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