Com uma leve batida, Margô fechou o portão do prédio de classe média alta onde mora, ali na Avenida Getúlio Vargas. Os relógios apontavam sete e meia da manhã. É cronometrado. Todos os dias a esta hora lá vai Margô e seus vinte e poucos anos passear com seu cãozinho, um poodle fêmea daqueles emperiquitados, cheio de nove horas, lacinhos para tudo quanto é lado, roupinha de grife e o escambau. Ela, Margô, parece que compete com o animalzinho de estimação no quesito indumentária. Na portaria, logo vem os comentários:
– Lá vai o teteuzinho.
– Pois é, que avião!
Margô mora sozinha. É solteira, ou melhor dizendo, viúva, e o apartamento foi herança do falecido juntamente com a aposentadoria do mesmo de fazer inveja a qualquer salário de deputado. Como companhia, somente a cadelinha poodle. E da portaria, as palavras seguem a trajetória do vento:
– Sortuda esta menina, né?
– Pois é, não bastava ser filha de gente rica e ainda por cima herda um dinheirão.
E Margô segue seu caminhar pela calçada central da Getúlio Vargas com o animalzinho de companhia. Vai garbosa, causando suspiros nos homens e nas mulheres. Nos homens, pelo rebolar provocativo e insinuante. Nas mulheres, pela inveja de não serem a Margô. E da portaria, as palavras alcançam os céus:
– Quem é aquele senhor que esteve ontem no apartamento dela?
– O cara se apresentou como seu tio e lá de cima ela confirmou.
Toda a Avenida Getúlio Vargas é pequena para Margô e seu cãozinho. Seus passos são lentos, simétricos e o movimento dos braços como a comandar uma orquestra. O cãozinho não fica para trás. Trota seguro por uma coleira com escudo do Milan, com a cabeça erguida como a procurar estrelas no céu ensolarado. Para os dois, Margô e o poodle, nem a imponência do Fórum Olympio Borges, do Marcolino de Barros e da Escola Normal fazem frente à beleza deles. E da portaria, as farpas começam:
– Tá chegando o momento da porcaria.
– Como é que pode, né, uma moça rica, que estudou nos melhores colégios e não aprendeu ainda certas coisas básicas da vida.
De repente, o poodle emperiquitado cessa o passo em frente ao Palácio dos Cristais. Margô também para. O cãozinho olha para cima com olhos sofridos. A garbosa acaricia a cabecinha do animal e faz um gesto afirmativo. Este, numa pose característica de cão rico, se arma, e solta em plena Praça do Coreto as suas porcarias intestinais. Findo o processo, o animal ergue novamente a cabeça e encontra os olhos de Margô que, emocionada, novamente lhe acaricia. Ambos aliviados, os dois reiniciam a caminhada, agora de volta ao prédio, e para trás fica a prova de que no aparelho intestinal da cadelinha, o poodle, havia excesso de produtos. Da portaria, só reclames:
– É mesmo uma falta de respeito, né? A mulher não tem consciência nenhuma de que está emporcalhando a praça.
– Imagine a raiva daquele que, desatento, pisa na coisa. E se uma criança pega naquilo e coloca na boca? Ou ainda se um senhor de idade escorrega no cocô, né?
O portão se abre para Margô e seu poodle. Soberbos, os dois passam pela portaria e a moça repara num olhar de desaprovação de um dos porteiros.
– Que foi, nunca me viu?
– Que é isso, dona Margô, eu só tava reparando como é bonitinho seu cachorrinho fazendo cocô na calçada.
– Por que, não pode não?
– Acho que não, né dona Margô.
– Pra mim, dane-se. Eu pago impostos e por isso tenho os garis da prefeitura para limpar.
E assim a dondoca Margô, puxando pela coleira de grife a sua preciosa cadelinha poodle, some ao fechar a porta do elevador, sem ter a mínima consciência do que são deveres e direitos de um cidadão, assim como acontece à quase totalidade daqueles que saem às ruas com seus animais de companhia. Da portaria vem o lamento:
– Fazer o que, né?
– É, meu amigo, acredito que isso nem é mais falta de educação. É falta de cultura mesmo!
* Texto: Eitel Teixeira Dannemann.
* Foto: Montagem de Eitel Teixeira Dannemann sobre foto publicada em 10/04/2017 com o título “Jardineira de Pedro Gomes Carneiro”.