– Pode ter certeza que faz sim.
– Mas quem te contou?
– Ora, tá na boca do povo.
– Eu sabia que o Astolfo era pão duro, mas assim já é demais.
Pois é, o Astolfo em questão era um comerciante bem sucedido com uma loja de variedades ali na Praça Desembargador Frederico. Sovina ao extremo, já estava recebendo reclamações do saudoso Padre Walmir por não cumprir com a sua obrigação religiosa, que era pagar o dízimo. A cidade inteira comentava isso, mas o fulano não estava nem aí, e ainda por cima tinha a cara de pau de dizer a todo mundo que Deus não precisava do seu dinheiro.
– Tudo bem que o Astolfo é um tremendo mão de vaca, mas, venhamos e convenhamos, é uma boa companhia.
– Concordo, mas peraí, tomar cerveja quente e exigir desconto só porque o bar não gastou energia elétrica para gelar a dita é muito ridículo, para não dizer constrangedor.
– Pior é quando ele pede um quinto de porção de batata-frita e exige desconto porque não usou sal.
– Lembram quando ele chegou lá no bar do Cochala e perguntou pelo preço de um cafezinho? Aí o cara respondeu e ele emendou perguntando pelo preço de duas colherinhas de açúcar refinado. O atendente disse que o açúcar era de graça. E não é que ele teve a petulância de pedir cinco quilos para levar?
Assim era o Astolfo. E desse jeito, com todos os elogios pão-durinos à sua pessoa, era respeitado na cidade como comerciante de sucesso e que não explorava a clientela. Mas o Padre Walmir não estava satisfeito por ele, um homem de muitas posses, não pagar o dízimo. E ficava revoltado com a desculpa do sovina quando dizia que Deus não precisava do seu dinheiro. Toda vez que o padre lhe inquiria sobre o assunto a resposta era a mesma: – Deus não precisa do meu dinheiro. Até que chegou um dia em que Padre Walmir resolveu dar um basta naquilo e, literalmente, enquadrou o homem. No escritório da paróquia, o papo foi duro.
– Meu caro Astolfo, desculpe a sinceridade, mas que negócio é esse de dizer que Deus não precisa do seu dinheiro? Quero tudo bem explicadinho.
– Mas Padre, é a mais pura verdade.
– Onde já se viu uma coisa dessas? Como é que você pode saber que Deus não precisa do seu dinheiro? Por um acaso você está conversando com Ele?
– Não é nada disso, Padre. Quem sou eu para conversar com Deus. O negócio é que Ele deixa claro e evidente para mim que não precisa do meu dinheiro.
– Pelo amor de Deus, Astolfo, pare com esta brincadeira. Vamos lá que Deus não precise, e isto é mais do óbvio, mas a igreja precisa, e muito.
– Padre, pelo que aprendi a gente paga o dízimo a Deus, e aí Deus doa este dinheiro para a igreja.
– Santa mãe misericórdia, como pode um verdadeiro tapado que nem você ter ficado rico assim.
– Padre, que é isso, está me ofendendo.
– Desculpe, Astolfo. Agora, de uma vez por todas, diga lá e esclareça finalmente como você sabe que Deus não precisa do seu dinheiro.
– É simples. Todo último dia de cada mês eu pego cinco mil reais¹ em notas de cem. Seguro firme na mão e, ajoelhado, rezo a Deus e ofereço o dízimo a Ele com a maior satisfação do mundo. Aí me levanto, jogo todo o dinheiro para o alto e digo: pegue, Deus, é todo seu! Acontece, Padre, que eu faço isso há mais de dez anos, e nunca, nunquinha mesmo, Deus quis pegar uma única nota que fosse. E então, Padre, agora finalmente concorda comigo que Deus não precisa do meu dinheiro?
Essa foi muito forte para o Padre Walmir, que despediu o prezado Astolfo e nunca mais lhe cobrou o dízimo. Ele sabia que nunca, jamais e em tempo algum conseguiria arrancar um único centavinho do sovina comerciante.
* 1: Na época, o dinheiro usado era o cruzeiro. Aqui foi usado o real de hoje pra facilitar o entendimento do valor que o Astolfo oferecia a Deus e Este recusava.
* Texto: Eitel Teixeira Dannemann.
* Foto: Montagem de Eitel Teixeira Dannemann sobre foto publicada em 10/04/2017 com o título “Jardineira de Pedro Gomes Carneiro”.