TEXTO: NEWTON FERREIRA DA SILVA MACIEL (2014)
Lá pelos idos de 1939 adveio um fato incomum aqui em Patos (ainda não era Patos de Minas). Governava o estado de Minas Gerais o interventor Benedito Valadares, nomeado pelo Presidente Vargas. Benedito era uma pessoa tida como de poucas letras, sempre motivo de muitas galhofas, mas homem arguto e talentoso pelo seu dom de exercer a política típica da época. O estado mineiro, como sempre, estava com suas finanças debilitadas e, em consequência, sua Excelência, como sói acontecer, ordenou que suas coletorias, hoje denominadas AFs (Agências Fazendárias), providenciassem uma vigilância fiscal bem ao estilo da ditadura da época, usando o máximo empenho para conseguir maior arrecadação do denominado IVC (Imposto de Venda e Consignações), atual ICMS.
Levando muito a sério tais determinações governamentais, o coletor de Patos, apelidado Tote, primou pelo exagero. A produção do município era pequena, porém diligentemente fiscalizada. Para quem ignora, os produtos que seriam vendidos recebiam quase todos, selos emitidos pelo estado, comprados nas coletorias, por importâncias variáveis, correspondente ao valor do imposto mencionado. O exagero era tão acentuado que até os queijos produzidos nas fazendas circunvizinhas eram selados, muitas vezes com a saliva do próprio produtor. O rigor da fiscalização foi tamanho que os comerciantes e produtores rurais já não aguentavam a pressão do fisco. À boca pequena, em algumas “rodinhas” da classe mercantil, muito sutilmente reclamavam da fúria arrecadadora, entretanto, ninguém ousava proclamar em voz alta seu descontentamento. Eis, que a gota d’água surgiu na forma do inesperado: certo dia, um carro de boi proveniente da zona rural, nas proximidades da cidade, conduzia um cadáver dentro de um caixão, com a finalidade de enterrá-lo no cemitério municipal, escoltado por um pequeno séquito.
Quando o triste cortejo chegou à cabeceira da ponte do Rio Paranaíba, surgiu bem acintosamente à sua frente, uma tora de madeira com peso em uma extremidade, de maneira a ser aberta somente para as pessoas autorizadas. Parou o séquito diante do obstáculo, aguardando a liberação. Um dos fiscais aproximou-se, perguntando se o conteúdo não era de mercadoria sujeita à tributação estadual. Recebendo resposta negativa não se contentou o funcionário da coletoria. Desejou abrir o caixão para confirmar se realmente tratava de um corpo humano ou mercadoria camuflada. Neste momento, tocados pela ira, reagiram aquelas pessoas rudes com o argumento que conheciam: quebraram a cancela, jogaram os dois fiscais dentro do rio e atravessaram a ponte almejada.
Ao seguir o caminho em direção à Avenida Brasil, revoltados, os acompanhantes mencionados relatavam em voz alta para os pequenos comerciantes postados à margem da estrada o acontecido, causando grande revolta popular, a qual propagou como um rastilho. Em resumo, a população foi se aglomerando em frente ao fórum, local em que funcionava a coletoria, exigindo que fosse removido o coletor responsável, bem como os fiscais, com grande alvoroço:
– Abaixo o coletor!
– Vamos pegar ele!
– Lincha!
E outras palavras não publicáveis contra o chefe da entidade estadual.
A manifestação espontânea do povo causou-me impacto, pois ouvindo tal alarido popular, dirigi-me para o fórum uma vez que morava a apenas um quarteirão do local¹, aguçado pela curiosidade de um menino de oito anos. Recordo-me bem do Coronel Farnese Dias Maciel, meu tio-avô, chefe político muito conceituado e respeitado por todos, de pé sobre o degrau mais elevado do edifício, pedindo calma aos rebelados manifestantes, solicitando que não houvesse violência e fossem todos para suas casas. Depois, fiquei sabendo que o Coronel Farnese, temendo não conseguir controlar a cólera grupal já havia providenciado um “carro de praça” (taxi) que se encontrava atrás do prédio, na Rua José de Santana, com a finalidade de conduzir a persona non grata até à estação férrea de Catiara. Segundo alguns, o atrevido coletor, já no para-lama do Ford 29, prometeu que voltaria e ameaçou aqueles que o apupavam. O condutor do veículo, logo em seguida, saiu em disparada com receio de agressões.
Relembrando o acontecido, afirmou-me o meu amigo João de Abreu, ter sido testemunha ocular do insólito acontecimento e que em torno de dez dias depois, o malfadado coletor chegou, como prometera, na companhia de 12 cavalarianos da Polícia Militar vestidos de uniforme amarelo, perneiras (espécie de botas que protegiam as pernas dos soldados, feitas de couro), conduzindo fuzis ostensivamente. Além de tal aparato colocaram os soldados uma metralhadora sustentada por um tripé, afixada na sacada do fórum. Contou-me, ainda, João de Abreu, que foi feito o inquérito policial, presos alguns homens que afrontaram os fiscais e, ainda mais, foi realizada nas principais ruas da cidade uma escandalosa passeata pelos policiais e funcionários da coletoria com a finalidade de atemorizar toda a população.
Ficou desta forma, vingado o coletor, aproveitando a força do poder de um despotismo que sabia intimidar os mais fracos e impotentes. Este real acontecimento me faz associá-lo, devido sua semelhança, não obstante em menor escala, do castigo sofrido pelos inconfidentes de Ouro Preto, cuja força impulsora foi a cobrança exagerada de impostos.
* 1: Newton morava no Casarão de Amadeus Dias Maciel, na esquina da Avenida Getúlio Vargas com Rua Olegário Maciel.
* Foto: Wikipedia: “O gabinete do coletor de impostos”. Pintura anônima, provavelmente de Marinus Van Reymerswaele (1490-1546), do Museu de Arte em Nancy, meramente ilustrativa.
* Edição: Eitel Teixeira Dannemann.